São Paulo e Crespo: um novo caso de amor portenho no Morumbi
Com bom futebol, carisma e quebra de tabu, ex-atacante devolve o orgulho ao torcedor tricolor e rememora época de adoração a argentinos
O torcedor do São Paulo acordou orgulhoso e aliviado nesta segunda-feira, 24. O título do Campeonato Paulista diante do rival Palmeiras findou um jejum de nove anos sem taças, desde a Copa Sul-Americana de 2012, e foi celebrado com entusiasmo, mesmo em tempos de pandemia. A façanha tem marcado sotaque castelhano, apesar do elogiável esforço de seu protagonista em aprender o português. Em pouco mais de três meses de casa, o treinador argentino Hernán Crespo já caiu nas graças da torcida tricolor e, com a garra demonstrada à beira do campo, devolveu certa aura portenha que, no passado, já foi bastante apreciada no Morumbi.
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Apesar de o São Paulo ter ficado mais ligado ao Uruguai, devido às passagens de enorme sucesso de Pedro Rocha, Pablo Forlán, Dario Pereyra e Diego Lugano, o clube também mantém forte ligação com o outro lado do Rio da Prata. Os argentinos Antonio Sastre, Jim Lopes e José Poy foram nomes importantes na época em que o São Paulo entrou de vez para o grupo de grandes do estado, nas décadas de 40 e 50.
Poy, aliás, fez história tanto como goleiro quanto como treinador tricolor – ele, em 1975, e Jim Lopes, em 1953, foram os outros técnicos argentinos a erguer o Paulistão pelo São Paulo antes de Crespo. O português Joreca, em 1943, 1945 e 1946, e o húngaro Bela Guttman, em 1957, são os outros gringos campeões estaduais no comando tricolor.
Nos últimos anos, alguns argentinos como os atacantes Lucas Pratto e Jonathan Calleri e o técnico Edgardo Bauza fizeram relativo sucesso no Morumbi, mas não conseguiram impedir a seca de títulos. Hernán Crespo, porém, já caminha firme para entrar no grupo de ídolos tricolores. Ex-atacante vitorioso, com passagens pela seleção argentina e grandes clubes como Milan, Inter de Milão e Chelsea, o técnico ainda jovem (45 anos) enfrentou certa desconfiança em sua chegada, mesmo com a conquista da Copa Sul-Americana pelo modesto Defensa y Justicia na bagagem.
Era uma aposta, claro. E como tudo no futebol, podia demandar mais tempo para o entrosamento entre as ideias do técnico e a equipe. Em sua apresentação, Crespo deixou claro que a diretoria tinha noção disso e apoiava o trabalho. “Vou respeitar o futebol que gosto, que me apaixona, que é o de ser protagonista e buscar o gol. Isso requer tempo e paciência, os dirigentes estão de acordo.”
Tempo praticamente não existiu. Em um calendário intenso, sem espaço para treinamento, Crespo precisou refinar ideias do trabalho anterior, de Fernando Diniz, e aos poucos inserir seu modelo, tentando ao máximo proteger a saúde física de seus atletas. Hernán teve um grande mérito: o feeling em relação ao que o torcedor tricolor desejava: vencer, seja como e o que for. Pra isso, com reforços pontuais e a potencialização do elenco, formou um time competitivo e com alma de vitória, algo que faltou ao time nos últimos anos.
Paulistinha? Que nada
No Campeonato Paulista, o tricolor paulista enxergou a possibilidade de levantar um troféu após nove anos. O estadual, que não era comemorado desde 2005, valeria muito. Pra isso, a estratégia foi poupar em alguns jogos da fase de grupos da Libertadores, torneio amado pelo são-paulino. Deu certo. O título sobre o Palmeiras foi a coroação, o fim da fila, finalmente o grito que estava na garganta do torcedor pôde ser solto.
Crespo conseguiu colocar suas ideias e testar jogadores. Respeitando processos, reforços e promessas, o tricolor liderou muitas estatísticas no Estadual. Dono da melhor campanha (37 pontos), do melhor ataque (38 gols marcados) e da segunda melhor defesa (11 gols sofridos), o São Paulo também foi líder em grandes chances criadas, posse de bola e finalizações. Superior, jogou 16 partidas, venceu 11, empatou quatro e perdeu apenas uma.
Humildade e respeito ao Brasil
Como atacante, Crespo sempre teve suas qualidades exaltadas, desde seu surgimento nas categorias de base do River Plate até a consagração na Europa. Contudo, quando decidiu ser treinador, deixou de lado um pouco de prestígio e começou de baixo. Sem soberba, estudou em Coverciano, quartel-general da Federação Italiana de Futebol, em Florença. Por lá, formou-se e conseguiu a licença Uefa Pro de treinadores. Em sua dissertação “O jogador moderno: identidade, nacionalismo e internacionalização”, o ex-atacante repassou sua experiência como atleta em diferentes contextos, concluindo que deseja formar equipes e atletas competitivos em nível global, ou seja, em mais de uma situação.
Hernán é adepto de um futebol de pressão alta e usa da posse de bola para controlar a partida. É extramente detalhista e dedicado. Desde sua chegada, demonstrou preocupação com as relações interpessoais no elenco e com o público. Se prontificou a aprender o português, diferentemente de alguns conterrâneos que passaram pelo Brasil, como Carlitos Tevez e Jorge Sampaoli, e manteve trato cordial com imprensa e torcida.
“É muito difícil, porque ao mesmo tempo posso falar em espanhol com o Dani e com o Rojas e em italiano com o Eder. Depois preciso aprender português, para falar com todos. Vou tentar, porque acho que é uma questão de respeito a esse país, ao lugar que estou e às pessoas. Além disso, culturalmente eu gosto de aprender”, disse o ex-atacante.
A importância de quebrar o tabu
Com a vitória por 2 a 0 sobre o Palmeiras, com gols de Luan e Luciano, o São Paulo tirou um enorme peso das constas. “Nove anos é muito tempo para um gigante do Brasil, espero e desejo com todo meu coração que seja o primeiro passo, que seja o primeiro título de muitos”, disse Crespo após a conquista, celebrada por ele no gramado em chamadas de vídeo com as filhas, na Itália, e com a mãe, na Argentina.
Outro grande ídolo tricolor deu o tom da importância da conquista. O ex-jogador e treinador Muricy Ramalho, atual coordenador técnico da equipe, caiu em lágrimas ao ver o time voltando ao êxito.
Nós te amamos! 🇾🇪❤️ pic.twitter.com/MDqaSYE4HU
— São Paulo FC (@SaoPauloFC) May 24, 2021
Para uma equipe repleta de jovens, como Luan, Liziero, Rodrigo Nestor e Igor Gomes, e com ídolos do futebol, como Miranda, Dani Alves e Hernanes, o tricolor voltou a sonhar com dias de glória. Crespo agora torce pelo retorno do público para poder sentir ainda mais o afeto que vem atraindo. “Sabemos que o momento é muito difícil, e o futebol tem a possibilidade de fazer as pessoas felizes. Neste caso, temos 20 milhões de torcedores felizes e festejando o título. O futebol é fantástico. Deus permita que pandemia passe para ver este Morumbi lotado e festejar com eles.”