Rembrandt, Pelé e Drummond
O que há de tão mágico numa tela de Rembrandt que é o imã do Museu Hermitage, em São Petersburgo?
Para onde afluem as hordas de hunos – ops, desculpe, os torcedores, mas os jornalistas também – entre um jogo e outro em São Petersburgo? As filas que serpenteiam pelas ruas da cidade, interrompidas por semáforos que demoram uma eternidade para abrir, correm paralelas ao rio Neva a caminho do Palácio de Inverno, como as multidões friorentas de 11 de novembro de 1917. Só que há mais gente, acredite. O Palácio, que no primeiro dia do que viria a ser Leningrado, virou sede do governo provisório de Alexander Kerensky, abriga a coleção do Museu Hermitage. São mais de 1,1 milhão de peças que começaram a ser juntadas, compradas e surrupiadas por Catarina, a Grande, em 1764. E no meio daquela imensidão, distribuída num lindo edifício sustentado por escadas inacreditáveis, os torcedores do Brasil, do Peru, do Egito, do México etc etc. parecem atraídos pela sala 254 do segundo andar. Há coisas extraordinárias nas paredes e, de repente, o espanto: A Volta do Filho Pródigo, a tela de 1662 de Rembrandt, o Cristiano Ronaldo do chiaroscuro. Com o devido pedido de desculpa para quem conhece arte e não gosta de futebol – mas os adoradores do CR7 também podem se ofender, porque talvez fosse o caso de pô-lo ao lado de Leonardo da Vinci. Mas e Messi? E Neymar?
O filho pródigo de Rembrandt é a pintura mais conhecida do Hermitage. Dói ver o filho de joelhos, de costas, arrependido por ter dilapidado o dinheiro da família, tendo as mãos do pai como único consolo. Emana uma luz da tela que parece de filamento, e é só a tinta a óleo. Lá vem a turba, com camisas do Egito, da Rússia, do Brasil, do Flamengo e num efeito quase mágico todo mundo fica quieto e para a respiração. Não é figura de linguagem, é assim mesmo. Daria para comparar o silêncio que se faz com algum outro, do futebol? Pelo que contam, quem sentiu e escreveu, só o da Copa de 1950, no Maracanazo – mas aquele foi triste e esse, o de São Petersburgo-Petrogrado-Leningrado, uma epifania. É uma das coisas mais bonitas que o ser humano já fez, algo assim como o drible de corpo de Pelé no goleiro uruguaio Mazurkievski, ou o chute de Pelé do meio de campo contra o goleiro tcheco Viktor, ou a cabeçada de Pelé para a defesa de Banks, todos os três na Copa de 1970.
Mas o que tem a ver o Rembrandt do Hermitage com a Copa do Mundo da Rússia? Tudo, porque não dá para viver só de gols, de pênaltis, de cabelo à miojo ou de VAR. A Volta do Filho Pródigo é necessária. É uma dessas telas pelas quais, como os gols de Pelé – “o difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé; é fazer um gol como Pelé”, escreveu Carlos Drummond de Andrade – não há outra igual. Mil vezes a Copa do Mundo pode voltar a São Petersburgo porque há Rembrandt. Não havia melhor lugar para estar na tarde gelada de terça-feira, o frio do verão petersburguense, antes de Rússia x Egito. Do jogo já nem me lembro – talvez da partida infelizmente apagada de Mohamad Salah, saindo da contusão no ombro –, mas aquela tela a óleo de 2,62 metros de altura por 2,05 de largura não se apaga.