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Pagos para brincar

Os campeonatos profissionais de videogames já movimentam 750 milhões de dólares por ano em todo o mundo — e atraem cada vez mais brasileiros

A primeira vez em que o gaúcho Gabriel Bohm, o Kami, entrou em um estádio não foi para torcer, mas para jogar. Era 8 de agosto de 2015 e ele, então com 19 anos, pisou, emocionado, no gramado do Allianz Parque, sede do Palmeiras, em São Paulo, ovacionado por 12 000 torcedores. Além desses, outros 850 000 o acompanhavam pela TV e em mais de vinte salas de cinema espalhadas pelo país. Kami é um craque, não no futebol, mas em uma nova modalidade, que tem crescido em ritmo impressionante nos últimos seis anos. Nela, vale mais o bom manejo de computadores, além da velocidade de raciocínio, do que um corpo esculpido com exaustivos exercícios físicos. Kami é um profissional dos chamados e-sports, os esportes eletrônicos. Traduzindo: videogames. Sim, ele ganha (em torno de 30 000 reais mensais) para brincar.

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Trata-se de uma atividade que avançou exponencialmente nas duas últimas décadas e, desde 2010, começou a se profissionalizar, impulsionada pela popularização mundial de League of Legends, o LOL, game de estratégia no qual Kami é especialista. Hoje, a atividade envolve treinamentos intensos, estádios cheios, transmissão ao vivo pela TV (com narração em estilo futebolístico) e cifras de dar inveja a muitos atletas desplugados. Kami e sua equipe, a Pain, formada por mais quatro jogadores, saíram do Allianz Parque como campeões brasileiros, com 60 000 reais no bolso. E classificados para disputar o Mundial na Europa, cuja premiação máxima, em outubro do ano passado, chegou a 1 milhão de dólares – a Pain caiu na fase de grupos, logo no início, mas levou 45 000 dólares (160 000 reais) de consolação.

“O fenômeno é recente, mas tem potencial para, em alguns anos, começar a disputar espaço e atenção entre os jovens com esportes como o futebol”, diz Kami. “Já nem consigo sair na rua sem ser abordado. Quando estou caminhando, muitos motoristas brecam o carro para gritar ‘Vai, Pain’ e, uma vez, fui chamado no aeroporto de Las Vegas por um fã do meu trabalho”, relata ele. Sua rotina, assim como a dos outros quatro titulares, de três reservas e do técnico do seu time, é digna de um atleta de alto rendimento. Com uma recorrente diferença: o dia começa às 11 da manhã, refletindo o costume de aficionados de videogame de dormir e levantar tarde.

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A partir daí, o regime de treinamento é regrado. Os jogadores da Pain moram na mesma casa, uma mansão branca, de portões pretos e vermelhos, as cores da bandeira da equipe, em um bairro nobre de São Paulo. Lá, dividem beliches dispostos em três quartos e contam com empregada, cozinheira e suporte técnico, que inclui um hacker, encarregado de enfrentar ataques virtuais de rivais aos computadores da casa. (No mundo real, eles mantêm em sigilo o endereço da sede, pois é comum os fãs se aglomerarem diante da residência de craques quando descobrem sua localização.)

Os atletas são obrigados, por contrato, a malhar, e o fazem em uma academia próxima, paga pelo dono do time, Arthur Zarzur, um ex-jogador de Dota 2 (game de estratégia similar ao LOL), que largou a faculdade de engenharia para investir na carreira e, depois, fundou a Pain, em 2011. As refeições são estipuladas por uma nutricionista, e há um grupo de psicólogos que atende os esportistas. Os treinos têm início às 13 horas, quando os jogadores assumem o papel de seu respectivo avatar virtual (nos retratos desta reportagem, eles aparecem ao lado de seu avatar), e se estendem até quase as 21 horas.

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“Somos exemplo do recente boom dos e-sports”, afirma Zarzur. “Quando começamos, mal tínhamos dinheiro para pagar o transporte até os locais de disputa.” Passados cinco anos, Kami tem contrato com multa rescisória de 1 milhão de reais e salário de alto executivo. Há ganhos extras, em decorrência do sucesso. Desde o mês passado, Felipe Gonçalves, de 25 anos, colega de Kami, estrela o comercial de uma conhecida marca de salgadinhos. “Eles são referência para uma geração que não está nem aí para a TV, vive ligada no YouTube e, claro, nos videogames”, diz Beto Vides, ex-funcionário da IBM e atual vice-presidente da Pain.

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A explosão dos e-sports reflete o amadurecimento do mercado de games. Hoje, já chegaram à meia-idade os primeiros jogadores aficionados (os “gamers”), adolescentes nas décadas de 80 e 90, quando surgiram consoles famosos, como o Nintendo. Junto a isso, o setor tomou maiores dimensões. Hoje, 60% dos gamers brasileiros têm entre 25 e 54 anos. Ou seja: jogar pode ser uma brincadeira, mas não é exclusividade de crianças. No mundo todo, a indústria de games movimenta 90 bilhões de dólares – 10 bilhões acima da soma alcançada pelo cinema e pela música juntos. Apenas o LOL conta com 67 milhões de jogadores. Há, ainda, uma variedade enorme de gêneros de videogame, tanto os voltados para os amadores quanto aqueles que comportam campeonatos profissionais, organizados pelos desenvolvedores dos próprios jogos.

“No Brasil, o viés esportista ainda é incipiente, se comparado ao cenário americano e asiático”, avalia o paulista Gabriel Sguario, o Fallen, de 24 anos, que mora na cidade de Lancaster, na Califórnia. Dos 750 milhões de dólares movimentados todos os anos pelos campeonatos de games, somente 29 milhões vêm de fora dos Estados Unidos e da Ásia. Fallen, que chegou a cursar engenharia, mas abandonou para se dedicar aos jogos, é um exemplo de como podemos perder talentos para os mercados mais tradicionais. Praticante do jogo de tiro CS:GO, ele se destacou após vencer partidas on-li­ne e classificar-se para uma disputa nos EUA, em 2014. Seu desempenho chamou a atenção do time americano Luminosity, que o contratou. No mês passado, sagrou-se campeão mundial. O salário de Fallen: 22 000 reais por mês. Sem contar premiações, nem os 30 reais mensais que fatura de cada um dos 2 500 amadores que lhe pagam por treinamentos ministrados on-line – ou seja, ao todo, são 75 000 reais.

Kami e Fallen, entretanto, são astros. O início da carreira não é tão glamouroso. Para quem começa, o salário raramente ultrapassa os 3 000 reais. “Só chego a 2 000 reais mensais porque complemento a renda gravando vídeos de partidas para o YouTube, em que faturo com anúncios”, explica o fluminense Allan Castello, de 25 anos, gamer de Fifa 16, de futebol (veja os quadros desta reportagem). Mesmo assim, é preciso dedicação se o objetivo for enfrentar os melhores. O paulistano Leandro Gouveia, de 21 anos, treina Call of Duty, de tiro, dez horas por dia, e chegou a disputar dois Mundiais nos EUA. Entretanto, ainda recebe apenas 3 000 reais de uma equipe ligada ao Santos – sim, o clube de futebol paulista resolveu investir em e-sports.

A jogada do clube não é exceção. Aposta-se pesado no que esse mercado pode vir a ser. “Esperamos trazer, a médio prazo, uma receita inédita e usar essa estratégia para atrair jovens torcedores”, afirma o marqueteiro Rafael Burri, responsável pela iniciativa no Santos. Nos EUA, na Europa e na Ásia, organizações tradicionais têm ingressado na área. Universidades da Califórnia e de Illinois concedem bolsas a atletas digitais. Há duas semanas, a liga europeia de e-­sports, a ESL, anunciou a criação de um canal de TV dedicado a transmitir partidas. No ano passado, um dos campeonatos internacionais de LOL foi vencido por uma equipe patrocinada pelo Besiktas, clube da Turquia. Aliás, em outubro último, a final do mundial da categoria foi transmitida para 36 milhões de espectadores, o dobro dos que assistiram à da NBA, a liga de basquete americana. Prevê-se que logo não serão raras as premiações de dezenas de milhões de dólares, como já ocorre no Dota 2 (aquele que era jogado pelo dono da brasileira Pain). Em 2015, o mundial desse videogame distribuiu 18 milhões de dólares. Resume Kami: “A brincadeira está virando coisa séria. Pais demoram a aceitar que seu filho queira seguir carreira jogando games. Minha família só mudou de opinião quando assistiu, pela TV, a milhares de torcedores gritando o meu nome”.

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