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“Se tivesse VAR, não seria pênalti”, diz Pelé sobre o gol 1000

O passeio sentimental do ex-jogador àquela noite mostra como os grandes feitos são eternos — e como o Brasil pode piorar as coisas já ruins

Carlos Drummond de Andrade já tinha cantado as dores dos ombros que suportavam o mundo, escrevera sobre João que amava Teresa que amava Raimundo, tratara de José, para quem a festa acabara — e então se aproximou o gol 1 000 de Pelé. Numa crônica de 28 de outubro de 1969, publicada no Jornal do Brasil, Drummond escreveu: “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Um poeta, o maior deles, lidando com futebol? Passados cinquenta anos, difícil mesmo é medir a relevância estrondosa daquela marca, estabelecida em 19 de novembro, uma quarta-feira, às 23h23 — um mísero golzinho, de pênalti, celebrado no Brasil com a mesma pompa e circunstância que o planeta oferecera à chegada do homem à Lua, exatos quatro meses antes? O milésimo representava o apogeu do rei do futebol, o selo definitivo de mito, antes ainda da atuação que o coroaria eternamente, o espetacular desempenho com a camisa da seleção na Copa do tri, em 1970. E havia o ambiente político, o cotidiano esmagado pela ditadura militar — as honrarias em torno do camisa 10 do Santos, naquele contexto, seriam um respiro.

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E foram. Na edição seguinte ao tento sofrido pelo goleiro argentino Andrada, do Vasco da Gama, aos 34 minutos do segundo tempo — o Santos venceu por 2 a 1, de virada, em partida pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o equivalente ao Brasileirão de hoje —, VEJA circulou com uma reportagem de capa inspirada em Pelé. O primeiro parágrafo: “O pênalti foi o melhor prólogo para a grande festa. A torcida que viu o jogo no Maracanã, quem assistiu à partida pela televisão, quem ouviu pelo rádio, jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas, dirigentes, jogadores, todos puderam preparar-se diante da inevitabilidade do gol número 1 000”. Como num filme de suspense, houve longa perseguição ao ponto culminante. Quinze dias antes, em jogo contra o Santa Cruz, no Recife, Pelé havia feito dois gols — saíra de 996 para 998. Apenas 48 horas depois, contra o Botafogo da Paraíba, em João Pessoa (amistoso marcado às pressas, caça­-níquel), em 14 de novembro, ele converteu um de pênalti (o 999) e terminou a partida como goleiro. “Eu não queria aborrecer os baianos, que me esperavam para um jogo oficial, então parei de chutar em gol”, diria Pelé. “Tinha medo que os jogadores do Botafogo saíssem da frente da bola e a deixassem entrar.” Contra o Bahia, em Salvador, em 16 de novembro, placar de 1 a 1, sem a marca do Rei. E então veio o Maracanã. Estudiosos do futebol, afeitos a histórias reversas, depois recontariam todos os gols de Pelé, para estabelecer uma correção que nunca colou, porque estragaria a mágica: o 1 000 teria vindo antes, talvez no Recife, talvez em João Pessoa.

Como todo grande instante indelével, e aqueles anos 60 foram pródigos deles, aquele gol — o gol — também foi atrelado a uma frase que se perpetuou. Depois de a bola entrar à esquerda de Andrada, Pelé foi até a rede, pegou a pelota, beijou-a e, cercado por microfones, avisou: “Não quero festas para mim. Acreditem que eu acho muito mais importante ajudar as crianças pobres, os necessitados. Vamos pensar no Natal dessa gente toda”. Foi o primeiro pronunciamento, digamos assim, político de Pelé. É o caso de medi-lo a olhos contemporâneos. As crianças que passavam fome em 1969 eram retrato de um país desigual que, no índice Gini, usado para medir a pobreza, estava em 0,581. Piorou. Agora está em 0,625.

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Em entrevista aos repórteres Luiz Felipe Castro e Alexandre Senechal, de VEJA, Pelé, aos 79 anos, entra num túnel do tempo particular para justificar o famoso comentário social. “Dias antes, em Santos, vi uns garotos tentando roubar uns carros. Eu falei: ‘O que vocês estão fazendo aí, moleques?’. Eles ainda tentaram se justificar, dizendo que estavam mexendo só com veículos de São Paulo. Eu disse que não podiam roubar ninguém, caramba. Os garotos nem ficaram com medo. Pode um negócio desse? Por isso veio a mensagem do gol 1 000.” Para Pelé, se fosse hoje, seria mais dramático, “porque está todo mundo com arma, muito mais violento”. Instado a aproximar ainda mais aquela noite aos dias atuais, o eterno craque faz uma confissão bem­-humorada que, ela sim, representa um terremoto revisionista, um irresponsável desmancha-prazeres: “Se tivesse VAR, não sei se seria pênalti”.

Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661

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