O jornalismo, tão maltratado ultimamente, é profissão de oportunidades inesquecíveis. A Croácia me faz lembrar uma delas. Na madrugada do domingo de Páscoa de 1991, 29 de março, há pouco mais de 27 anos, fui acordado pelo repórter fotográfico que me acompanhava numa viagem de Belgrado a Zagreb, de modo a acompanhar o desmanche da Iugoslávia, que se acelerava inapelavelmente. Ele já tinha vasta experiência, trabalhava para a agência Sipa e, como todo profissional de bom faro, sabia estarmos diante de algo relevante. Era um sujeito discreto, um tanto fechado, quase mudo, descoberto pela fina percepção de Pedro de Souza e Alvaro Teixeira, diretor e produtor da sucursal de VEJA em Paris, onde eu trabalhava, e que faziam as coberturas acontecerem. Não passava das 6 horas da manhã, ouvi o toque na porta do quarto e saímos correndo. Estávamos hospedados numa pousada dentro do Parque Nacional dos Lagos de Plitvice, a 130 quilômetros de Zagreb, ainda coberto de neve tardia, embora já fosse primavera. Meu companheiro de viagem, sempre alerta, fora avisado de um entrevero a menos de um quilômetro de onde dormíamos.
Receoso, com medo do que nos esperava, segui a toada, movido a adrenalina que chegava a picos inimagináveis. Mas, afinal de contas, o que houve ali? Um grupo paramilitar sérvio, acompanhado de companheiros da região vizinha de Bihác, tinha assumido o controle do parque nacional croata. Naquela madrugada, uma emboscada pegou de surpresa um batalhão de policiais da Croácia. Houve troca de tiros. Um deles, Josip Jovic morreu na hora. Há hoje, no ponto exato onde Jovic foi executado, um memorial de louvação ao que tratam como herói da recente trajetória da Croácia. Naquele 29 de março, havia sangue vermelho na neve branca. Sentimos, o fotógrafo e eu, estarmos realmente diante de uma notícia forte. Mas não tínhamos certeza da dimensão, mesmo depois de termos conversado com as autoridades e moradores locais (o relato daquele episódio de Páscoa sairia numa reportagem de VEJA, quase dois meses depois, mas apenas como rápida referência dentro de um texto maior).
Anos depois, folheando um livro editado pelo jornal francês Le Monde é que me dei conta de termos flagrado um instante decisivo, e agora confirmo no Google. A Guerra Civil pela independência da Croácia teria começado naquele domingo, e a ele lhe colaram um nome: Plitvicki Krvavi Uskrs, em croata, a “páscoa sangrenta de Plitvice”. Menos de uma semana depois das mortes, as forças croatas recuperaram o controle do parque, mas não haveria mais volta: a Iugoslávia começava a morrer. Há quem aponte o 29 de março como o ponto zero, há quem vá um pouquinho mais para trás, em 13 de maio de 1990, quando uma partida na capital croata entre o Dínamo de Zagreb e o Red Star de Belgrado terminou em pancadaria, com mais de 60 feridos. O estádio Maksimir viveu cenas de horror, em que os torcedores croatas do Bad Blue Boys e os fanáticos sérvios do Delije eram a metáfora perfeita do que se veria a partir daquele momento.
Pode não ter sido num estádio de futebol, pode não ter sido no parque de Plitvice – afinal, nem mesmo se sabe exatamente se a faísca da I Guerra Mundial tenha sido o assassinato por nacionalistas sérvios do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-húngaro, numa ponte de Sarajevo, em 28 de junho de 1914. Outro episódio é mais comumente associado ao início da Guerra Civil. Borovo Selo era um lugarejo perdido de 9 000 almas, que integrava uma parte da Croácia cuja população, etnicamente ligada à Sérvia, se rebelou contra o movimento separatista daquele início dos anos 1990 – a Croácia era uma das seis repúblicas que compunham a Iugoslávia. Em 2 de maio de 1991, um tiroteio entre policiais croatas e milicianos sérvios deixou quinze mortos. Não morria tanta na gente na Iugoslávia por motivos políticos, num só dia, desde a II Guerra Mundial. O bangue-bangue começou quando um micro-ônibus lotado de policiais croatas cometeu a imprudência de entrar em Borovo Selo, desfiando a população local, armada até os dentes desde aquele domingo de Páscoa do Parque Plitvice. Em Zagreb, capital da Croácia, a notícia foi recebida com juras de vingança. “É o início de uma guerra contra nosso povo”, disse Franjo Tudjman, presidente croata, evidentemente separatista. Em Borovo Selo, um dos milicianos sérvios que participou da pancadaria ameaçou. “Se os croatas voltarem, nos os mandaremos de volta dentro de caixões”.
Montado com os cacos dos impérios turco e austro-húngaro no fim da I Guerra Mundial e convertido ao marxismo depois da II Guerra, o quebra-cabeça iugoslavo conseguiu se segurar até o início da década de 80. Com a morte do marechal Tito – presidente durante 35 anos e fiador da unidade da federação, nascido na Croácia –, a crise econômica no país e a derrocada do comunismo pelo mundo afora, as peças foram deixando de se encaixar. A ferida das questões nacionais mal resolvidas, que assolavam o mundo desde a União Soviética até o Oriente Médio, reabriu rapidamente. As duas repúblicas mais ricas, a Croácia e Eslovênia, decididas a enterrar o socialismo, foram as primeiras na fila da secessão.
Isso tudo foi outro dia, há pouco mais de um quarto de século. Não houve tempo para tratar as dores do parto de um novo desenho geopolítico – e, naturalmente, eles entraram no vestiário da seleção croata. Logo depois da vitória contra a Argentina, o zagueiro Dejan Lovren, do Liverpool, apareceu em vídeo entoando os versos de uma canção da banda Thompson, de Mario Percovic, que cuja letra faz referência ao tempo de independência dos anos 1990: “Por nossas casas, por nossos irmãos, por nossa liberdade, estamos todos lutando”. A canção se inicia com uma saudação à Ustasha, a organização paramilitar croata que colaborou com os nazistas durante a II Guerra e depois manteve forte influência. A Ustasha tinha como escudo a shahovnica, com um desenho xadrez vermelho que depois seria adotado pelo movimento nacionalista que chegaria ao poder com o desmantelamento iugoslavo. O xadrez é marca do brasão de armas do país, e por isso compõe o uniforme número 1 da seleção dos balcãs. Não que celebre o nacionalismo radical, não, mas o desenho quadriculado é referência croata onipresente.
Não é justo tomar a parte como um todo, e a estupidez política de Lovren não é unanimidade. Nem todos, entre os 23 convocados ou no país de pouco mais de 4 milhões de pessoas, pensam igual. Nem todos são nacionalistas vocacionais ou simpatizantes de ideias atreladas ao nazismo, evidentemente não. Mas são filhos de uma história muito recente para ser esquecida – a presidente croata Kolinda Grabar-Kitarovíc, tão celebrada esses dias, tem esqueletos no armário. Ela é moderada – foi eleita por um partido de centro-direita, não muito distante das ideias políticas e econômicas de Emmanuel Macron –, mas no passado recente posou ao lado de defensores do ultranacionalismo, sorrindo animadamente.
O zagueiro Lovren, que tanto barulho produziu fora do gramado, nasceu em 1989. Tinha dois anos quando o sangue começou a correr em Plitvice e Borovo Selo. Tinha um ano quando torcedores do Dínamo e do Red Star quase se mataram. Nasceu durante a Guerra Civil. É quase impossível que o caldo de cultura que move essa linha do tempo seja esquecida – e não há território mais propício para a exposição do que o mundo tem de pior e de melhor do que os gramados e as arquibancadas de futebol. A Croácia, além do VAR e das 423 vezes que Neymar rolava a cada falta que sofria, são marcas indeléveis da Rússia em 2018. Ambos, a história da Croácia e o comportamento infanto-juvenil de Neymar, merecem ainda muito estudo.