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O destino do “efeito casa” em jogos sem torcida nos estádios

Com as arquibancadas vazias, sem a natural ajuda do público, já há um fenômeno dentro dos campos e quadras

Há um ruidoso silêncio nas arquibancadas de ginásios e estádios e, até que os torcedores sejam autorizados a acompanhar as partidas, de acordo com os protocolos de saúde, vive-se um momento de profundas transformações. Na experiência ao vivo, sem dúvida, mas também diante da televisão. É esquisito, para dizer o mínimo, ouvir em casa as vozes de jogadores e treinadores em alto e bom som, é estranho acompanhar o ruído de cantos da torcida virtual ou ver aqueles bonecos sorridentes de papelão pousados nos assentos (ideia simpática, emocionante e, no entanto, um tanto melancólica). Depois da pandemia, e com as restrições impostas para a gradual retomada, o esporte ganhou outro rosto — é o que veremos no Campeonato Brasileiro de 2020, o primeiro da história entregue às moscas, com previsão de retorno no domingo 9 de agosto. É o que se vê na “bolha” da NBA, em Orlando, na Disney, com atletas constantemente testados para a Covid-19 e torcedores dentro dos ginásios transportados de suas casas por meio de webcams — pode quase tudo, menos palavrões e gestos obscenos. É revolução esportiva que mexe com os fãs e já começa a alterar também os resultados dentro de campos e quadras.

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Uma pergunta se impõe: qual o destino do chamado “efeito casa”, aquela suposta vantagem de jogar em seus domínios, com a pressão popular? Há algumas respostas. No Campeonato Alemão, a primeira grande liga do mundo a ser retomada, em 16 de maio, houve uma queda significativa no rendimento dos anfitriões. Antes da paralisação, até a 25ª rodada, o aproveitamento dos mandantes era de 43% de vitórias, 22% de empates e 35% de derrotas. Sem público, o quadro se inverteu: os visitantes venceram 44% dos jogos, com 32% de reveses e 23% de igualdades. Houve uma rodada, a 31ª, em que apenas o campeão, Bayern de Munique, conseguiu vencer em seu terreno. Segundo dados da empresa de análises Gracenote, o número de passes aumentou e o de dribles caiu na Bundesliga às moscas — a conclusão lógica é que, sem ninguém para aplaudir, o jogador tende a atuar de forma mais coletiva, em ritmo de treino.

GRITO PELA WEBCAM - A NBA jogada na Disney: torcedores virtuais no telão – NBA/.

A estatística comprova que, em todos os esportes, em uns mais do que outros, o fato de jogar em casa aumenta as probabilidades de sucesso. Em Copas do Mundo, o Uruguai (1930), a Itália (1934), a Inglaterra (1966), a Alemanha (1974), a Argentina (1978) e a França (1998) chegaram à glória diante de seus fãs. O Brasil fracassou retumbantemente nas oportunidades que teve, em 1950 e 2014. Em Olimpíadas, porém, obteve sua melhor classificação nos Jogos do Rio-2016, com sete medalhas de ouro (entre elas a do futebol), seis de prata e seis de bronze. As explicações para esse fenômeno vão além do impulso das arquibancadas. “Jogando em casa, o atleta tem uma referência espacial diferente, está habituado à iluminação, à qualidade e à temperatura do gramado, é poupado de uma viagem desgastante”, diz Bruno Vieira, psicólogo especializado em esporte, com dezenas de atletas entre seus clientes. A presença do público, no entanto, é um grande aliado. “O atleta de alta performance está acostumado à cobrança e tem basicamente dois estímulos: os internos, como sua ambição de ser campeão, e os externos, como o apoio da torcida. O fato de jogar em casa gera uma espécie de crença, o atleta tira uma força que talvez nem exista, e o efeito contrário ocorre no visitante, que inconscientemente se retrai. Agora, sem a vibração da torcida, o visitante se encoraja e as forças de igualam.”

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Os protagonistas confirmam as teses que brotam da academia e dos consultórios. Até mesmo o Flamengo, o clube mais poderoso do país na atualidade, sofreu nesta retomada. “Este novo cenário afeta um pouco nosso aspecto emocional, pois estamos acostumados a jogar com 60 000 pessoas nos empurrando no Maracanã e, a cada chance criada, o grito do torcedor nos contagia. Nos últimos jogos, sentimos o adversário mais relaxado para arriscar”, disse o atacante Vitinho, autor do gol que garantiu o título carioca ao clube rubro-negro após jogos tensos e equilibrados diante do Fluminense. Ainda é cedo para tirar conclusões, mas já há indícios de que ao menos duas estrelas do espetáculo possam se beneficiar da ausência de torcedores: o goleiro e o árbitro. O arqueiro, devido à facilidade de comunicação. “É um fato, sem torcida dá para orientar e organizar melhor o time”, explica o experiente goleiro Fernando Prass, do Ceará. Já os juízes, sem a pressão externa e as tradicionais “homenagens” às suas mães, tendem a tomar melhores decisões. Esse, aliás, é um outro fator relacionado à queda de rendimento dos mandantes — o número de faltas e pênaltis assinalados para os mandantes caiu na retomada das ligas europeias. “Existe um fator psicológico fundamental que é o subconsciente. Tanto a torcida quanto os atletas sentem quando o árbitro está inseguro e tentam pressioná-lo para ganhar no grito. Não é questão de desonestidade, ser ‘caseiro’ é da natureza humana. O estádio sem torcida vira um campo neutro”, afirma o ex-árbitro Arnaldo Cezar Coelho. Trata-se de uma realidade que perdurará durante um bom tempo. É provável que os torcedores só voltem aos estádios brasileiros em 2021. Ao menos por ora, o 12º jogador permanecerá no banco, calado.

Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699

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