Depois de uma era de contratações de peso e salários astronômicos, o futebol chinês ruiu e a seleção nacional voltou a fracassar; PLACAR investigou as razões
Matéria publicada na edição 1526 de PLACAR, de fevereiro de 2025, já disponível em versão digital e física em nossa loja
Em 4 de maio de 2012, uma reportagem do caderno esportivo do jornal americano The New York Times desvendava algo até então encoberto para o grande público. Enquanto rios de dinheiro jorravam pelo futebol chinês, recém-batizado de “novo Eldorado” por conta do ambicioso sonho do presidente Xi Jinping de transformar o país em uma superpotência futebolística, apoiado pela chegada de nomes de peso como do francês Nicolas Anelka e do marfinense Didier Drogba, a publicação alertava que o investimento desequilibrado em clubes de futebol do país poderia cobrar um alto preço no futuro.
“Os clubes estão ganhando manchetes com contratações surpreendentes, mas o país não seria mais beneficiado ao investir o dinheiro no desenvolvimento de seus próprios jovens jogadores?”, questionava o Times. Na época, o texto do jornalista americano John Duerden parecia completamente fora do tom. Hoje, soa como profecia cumprida.
Yifan Ding/Getty Images
A aparente imponência e a rica estrutura chinesa revelaram-se frágeis com o passar do tempo. Treze anos depois do alerta, o país com mais de 1,4 bilhão de habitantes, que investiu pesado na contratação de grandes talentos e estrutura para alavancar o esporte local, mal consegue encontrar 11 jogadores em boas condições técnicas de defender a seleção. O resultado? A China não disputará a primeira Copa do Mundo com 48 países. Nas Eliminatórias, ainda sobraram vexames como o 7 a 0 contra o Japão, em Saitama, e a derrota por 1 a 0 contra a Indonésia, atual 118ª colocada no ranking da Fifa.
“O país luta por uma vaga há mais de 20 anos (…) E eu, como treinador principal, tenho uma responsabilidade enorme (em não classificar ao Mundial)”, disse o técnico croata Branko Ivankovic, demitido pela federação chinesa um dia após falhar no sonhado objetivo. “Temos uma geração mais jovem de jogadores que injetaram energia no time. Com base nas atuações recentes, apesar da não classificação, acredito num futuro promissor para este time”, atenuou. A China contou na campanha com um brasileiro, o meia Serginho, ex-Santos, Vitória e América-MG, que passou a se chamar Sai Erjiniao após se naturalizar.
Apesar do otimismo do técnico Ivankovic, a conta não fecha. Não há mais grandes nomes no futebol local – os mais valiosos da atual edição Super Liga Chinesa são os atacantes romeno Alexandru Mitrita e o brasileiro Cryzan, ambos avaliados em 4 milhões de euros cada pelo site Transfermarkt. Anos atrás, o brasileiro Oscar, hoje no São Paulo, e o argentino Carlos Tevez, aposentado, ocupavam a lista de atletas mais bem pagos do planeta durante a estadia oriental. Para piorar, os atletas chineses não se desenvolveram como projetado e o destino que já foi atrativo por conta dos altos salários hoje perde com folga para “novos Eldorados” como a Arábia Saudita, que conta com estrelas internacionais como Cristiano Ronaldo, Karim Benzema, Sadio Mané, N’Golo Kanté, Riyad Mahrez e Yassine Bouno, além de jovens talentos como Marcos Leonardo, um dos quatro artilheiros da última Copa do Mundo de Clubes. No caso saudita, a seleção também se desenvolveu, tanto que bateu na estreia da última Copa do Mundo a Argentina, que se sagraria campeã.
A euforia por investimentos massivos na China começou antes mesmo de 2012, na esteira do sucesso dos Jogos Olímpicos de 2008. Um verdadeiro fenômeno, considerando-se que o país não disputou competições oficiais entre os anos de 1958 e 1980 por não estar associado à Fifa devido a conflitos políticos. Nos anos 1990, em meio a uma abertura econômica, um plano estatal de dez anos buscava dar profissionalismo ao esporte e sua primeira liga profissional de futebol começou apenas em 1994. Em 2022, a China disputou sua única Copa do Mundo, na qual levou nove gols, sendo quatro do Brasil, e não fez nenhum.
Nos últimos anos, a derrocada do futebol chinês levou clubes a fecharem as portas e até a serem expulsos da liga local por conta de atrasos salariais e dívidas estratosféricas. O torcedor mais atento há de se lembrar do Guangzhou Evergrande, por onde passaram jogadores como Robinho, Paulinho e Talisca, além dos treinadores Luiz Felipe Scolari e Marcello Lippi. Entre 2011 e 2019, o clube ganhou oito títulos nacionais e uma edição da Liga dos Campeões da Ásia. Pois bem, a crise financeira do conglomerado da construção civil China Evergrande Group, que havia comprado o clube ainda em 2010, foi sua sentença de morte. Até 2021, quando ainda era permitido o uso de nomes de empresas em times locais, a equipe colorada atraía olhares e investimentos de dar inveja. Em 2022, porém, o time caiu para a segunda divisão e em janeiro deste ano anunciou que não disputará competições profissionais por não conseguir cumprir os requisitos financeiros.
O cenário futebolístico contrasta com o de outros esportes. Décadas de investimento fizeram com que o país se tornasse uma potência, capaz de conquistar 40 medalhas de ouro nos Jogos de Paris, mesmo número alcançado pelos Estados Unidos. Boa parte desse sucesso veio em esportes individuais, que exigem menos recursos se comparados ao futebol. “Essa decadência se dá por uma soma de acontecimentos. As empresas bancavam muitos clubes, da categoria de base ao profissional, especialmente no momento do boom imobiliário. Mas quando a bolha estourou, a consequência foi a quebra do futebol chinês. Sem dinheiro, esse trabalho de investimento foi abandonado”, analisa o jornalista Ubiratan Leal, dos canais ESPN.
Alex Caparros/Getty Images
Escândalos de corrupção envolvendo jogadores, treinadores e dirigentes também assolaram a liga chinesa nos últimos dois anos. Em setembro do ano passado, a Associação Chinesa de Futebol baniu 43 pessoas após a descoberta de envolvimento em apostas, manipulação de resultados e subornos. Outros fatores, como o crescimento desorganizado, sem a estruturação desde a base, além dos altos salários sem fontes de receitas seguras, são apontados como causas conjuntas da crise. Não à toa, na virada de 2019 para 2020, o teto salarial passou a vigorar na liga local.
Em entrevista à BBC, o jornalista esportivo Mark Dreyer, baseado em Pequim, foi taxativo ao apontar causas do declínio do futebol chinês: “Tudo tem que ser reportado para os chefes do Partido Comunista. Com isso, pessoas que não são do futebol tomaram decisões sobre o futebol, que precisa ser trabalhado desde a base, as coisas não podem ser feitas de cima para baixo”.
“Anos atrás, os salários na China eram fora da realidade, muito acima do mercado sul-americano. Os valores ainda são interessantes, mas o que mais pesou para mim foi a qualidade de vida”, comenta Bruno Nazário, meia-atacante do Henan FC desde 2024. “O campeonato me surpreendeu. Alguns dos clubes ainda têm estrutura e o jogo é intenso. Nos jogos da seleção, o nível cai, claro. Acho que futebol daqui de hoje me lembra a Série B do Campeonato Brasileiro: é competitivo, mas com bastante margem para crescimento”.
Recém-chegado ao Shanghai Shenhua, o atacante Saulo Mineiro não tem do que reclamar: fez 11 gols em 19 partidas disputadas e aponta a escolha como superior até mesmo ao consolidado futebol japonês, onde jogou por quase três temporadas no Yokohama FC. “Me surpreendi positivamente”, diz. Ele cita um colega de clube, Yu Hanchao, veterano da seleção local, como uma das gratas surpresas. “Ele tem 38 anos e muita qualidade, é o melhor asiático que já vi em campo.” O fator extracampo também fez diferença: “Me sinto muito mais seguro aqui. O Brasil é um país perigoso. Aqui, as pessoas nos respeitam dentro e fora do clube, independentemente da fase. A torcida tem interesse nos jogos, muitos delas são completamente apaixonadas”.
Se o mundo pós-pandemia de Covid-19 ainda sofre com consequências políticas e econômicas, o futebol chinês foi destroçado pelo vírus. De lá para cá, mais de 40 clubes profissionais faliram, muito por conta da desaceleração econômica local no período e a retirada de investimentos de empresas apoiadas pelo Estado e da queda no apoio do setor privado ao futebol chinês.
Zagueiro do Gazisehir Gaziantep, da Turquia, Bruno Viana jogou no Wuhan Yangtze River em 2022 e não guarda grandes recordações da cidade onde o vírus surgiu: “Peguei a pior fase. Na pandemia, ficamos um tempão confinados dentro de um hotel e depois ainda tivemos atraso de salários. O campeonato não ficava tão atrás de outras competições, mas o técnico (o chinês Li Jinyu, atualmente no Liaoning Tieren) era muito pobre taticamente, não tinha nenhuma ideia de jogo. Fiquei ainda com dois salários por receber. Era visível que começaram a largar o futebol”, lamenta. “Sinto que há uma questão cultural importante: os chineses não gostam de se arriscar. Você não vê jogadores indo tentar carreira fora como os brasileiros, é cultural. E isso interfere porque não há um intercâmbio tão grande com outras culturas”, complementa.
Viana toca em um ponto relevante. Se a Coreia do Sul tem hoje Son Heung-min, grande estrela do Tottenham, e o Japão já se gabou de contar com nomes como Hidetoshi Nakata e Keisuke Honda em grandes clubes da Europa, a China teve poucos atleta de mínimo destaque no Velho Continente. Quem mais se aproximou disso foi o ex-zagueiro Sun Jihai, que jogou pelo Manchester City e se tornou o primeiro jogador chinês a marcar um gol na Premier League. Antes dele, o atacante Yang Chen já havia alcançado a marca de primeiro nome do país a atuar em uma das cinco principais ligas do Velho Continente ao jogar pelo Eintracht Frankfurt, da Alemanha, no fim da década de 1990.
Wu Zhizhao/VCG Getty Images
O ex-meio-campista Zheng Zhi, com passagem por Charlton e Celtic, e o atacante Wu Lei, que jogou por três temporadas pelo Espanyol, também tiveram carreira reconhecida fora da China. O Brasil até importou uma “revelação” local, Chen Zizao, num golpe de marketing furado do Corinthians em 2012. Atualmente, as maiores estrelas da seleção são Wu Lei, que está no Shanghai Port, o zagueiro Zhang Linpeng, o goleiro Yan Junling e os atacantes Zhang Yuning e Wei Shihao, todos em atividade no futebol chinês.
Se em janeiro de 2017, o país havia investido 388 milhões de euros em contratações, superando a movimentação da Premier League naquele mês, desde 2021 o quadro mudou drasticamente. A federação local impôs limites financeiros que dificultam ainda mais. Cada equipe pode contar com no máximo seis estrangeiros, sendo cinco deles relacionados por partida e quatro em campo de forma simultânea. O teto salarial por atleta despencou para 3 milhões de euros anuais (R$ 19,4 milhões), enquanto os chineses só poderão receber, no máximo, 10 milhões de yuans (R$ 7,8 milhões) por ano.
Quanto ao futuro do futebol chinês, dá para ser otimista? “Pode ser que daqui a pouco apareça um jogador formado da base, impactado pelo trabalho da década passada. Mas falta muita coisa. O futebol chinês está distante dos países vizinhos e do topo da Ásia. E se não houver um trabalho sério, essa distância tende a aumentar”, explica Ubiratan Leal.
Em um curto prazo, dificilmente a China conseguirá recuperar o status que ostentou um dia. Se numa manhã tediosa de 2025, você tiver vontade de curtir uma boa partida de qualquer parte do mundo, fica a dica: fuja daquele em que as placas de publicidade estão em mandarim.
Ubiratan Leal, jornalista da ESPN
A decadência do futebol chinês se dá por uma soma de acontecimentos. Até a década de 1990, o país brigava sempre por vaga em Copas do Mundo. Era uma seleção competitiva, que conseguiu realizar esse sonho em 2002. Mas começou uma transição no investimento esportivo local, dando mais destaque às modalidades olímpicas. O país melhorou no atletismo, na natação e em outros esportes individuais, que valem muitas medalhas olímpicas, mas os esportes coletivos chineses caíram de rendimento. Não é só o futebol.
O vôlei feminino, por exemplo, já não é tão bom quanto antes. Ainda se compete em alto nível, mas não como no passado. Outro exemplo é o basquete feminino, que em 1994 foi vice-campeão do mundo em uma final contra o Brasil. Mas tanto no feminino como no masculino, mal se classificam para as Copas do Mundo, e olha que o país ama esse esporte. E até no futebol feminino a China despencou. Era uma potência, foi vice-campeã do mundo. Hoje não chega longe porque o olhar mudou.
Também há outra particularidade: como o financiamento estatal estava nas modalidades olímpicas, no futebol ficou tudo com a iniciativa privada, ainda que houvesse ações da federação local. As principais empresas que bancavam desde as categorias de base eram do mercado imobiliário, como a Evergrande. Elas montaram grandes centros de treinamento, contrataram profissionais qualificados, recrutaram jogadores midiáticos a peso de ouro. Só que a bolha imobiliária chinesa estourou e o dinheiro acabou. Aí, o futebol chinês também quebrou.
Zhizhao Wu/Getty Images
Atletas brasileiros em atividade na China listam nomes locais que podem vingar.
Saulo Mineiro (Shanghai Shenhua)
“Tem, pelo menos, três jogadores novos de qualidade surgindo na minha equipe: os meio-campistas Haoyang Xu e Haoyu Yang e o atacante Chengyu Liu. A ordem aqui é colocá-los debaixo de nossas asas para que possam evoluir e para que a China consiga seguir um modelo de formação de jogadores qualificados. Isso, consequentemente, trará evolução para a seleção chinesa. A própria imprensa aqui bate muito nessa tecla. Nos perguntam o que fazemos para ajudá-los, o que ensinamos aos mais novos. Acredito que para o próximo ciclo de Copa algo possa mudar”
Bruno Nazário (Henan FC)
“O (volante) Shangyuan Wang é o capitão do time, e com toda a justiça, um cara que tem uma leitura de jogo muito boa, se posiciona bem e dá equilíbrio para a equipe. Entre os jogadores chineses, ele é um dos poucos que realmente se destacam e conseguem fazer diferença em campo. Também destacaria o nosso goleiro (Wang Guoming), que tem muita segurança e qualidade técnica. É outro nome que, pra mim, poderia estar sendo mais aproveitado na seleção.”
Visual China Group – Getty Images
1º Hulk (Zenit-Shanghai SIPG)
€ 55 milhões (R$ 207 milhões)
2º Alex Teixeira (Shakhtar-Jiangsu Suning)
€ 50 milhões (R$ 218 milhões)
3º Jackson Martínez (Atlético de Madrid-Guangzhou Evergrande)
€ 42 milhões (R$ 183 milhões)
4º Paulinho (Barcelona-Guangzhou Evergrande)
€ 42 milhões (R$ 180 milhões)
5º Ramires (Chelsea-Jiangsu Suning)
€ 28 milhões (R$ 123 milhões)
*cotação do real na época
Faz muito tempo, mas a China e Ásia já tiveram um rei do futebol. Trata-se de Lee Wai Tong, um nem tão conhecido atacante que fez sucesso nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Nascido em Hong Kong, mas filhos de pais chineses, optou por defender o país durante toda a carreira. Foi capitão da seleção chinesa durante uma sequência invicta que durou 13 anos, entre 1923 e 1936.
Em 1939, chegou a marcar sete gols em uma goleada contra a Malásia. Abandonou os gramados em 1947, com 45 anos. No ano seguinte, passou a trabalhar na comissão técnica da seleção chinesa. Também chegou a ocupar cargos diretivos na Confederação Asiática de Futebol e na Fifa. Segundo relatos não oficiais, ele superou a marca dos 1.000 gols.
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