Garrincha, o parceiro de Pelé em campo – e fora dele
PLACAR reuniu o Rei e antigos companheiros para relembrar o passado, mas também para ajudar a sonhar o futuro do futebol brasileiro
O mundo do futebol se despede de Pelé, que morreu aos 82 anos na última quinta-feira, 29. Como forma de homenagear seu legado, a revista PLACAR, de história indissociável à do camisa 10 – basta dizer que a edição inaugural, de março de 70, trazia Pelé na capa e vinha com um brinde, uma moeda com a efígie do craque – irá recuperar algumas reportagens publicadas na edição especial de setembro de 2020, quando o Rei do Futebol estava prestes a completar 80 anos. Boa leitura!
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Em 1971, PLACAR pôs frente a frente Pelé e Afonsinho. O Rei e o jovem barbudo, polêmico atacante que despontava no futebol, debateram formas de melhorar as condições de trabalho dos jogadores profissionais. Onze anos depois, a revista reuniu, no Rio, os dois maiores craques da nossa história, o camisa 10 e o camisa 7, ele e Garrincha. Juntos em campo, jogando com a camisa da seleção brasileira, eles nunca perderam uma única partida. Vestidos com o antigo uniforme canarinho da CBD, os dois se emocionaram, reclamaram da baixa qualidade do jogo naquele início dos anos 1980 e fizeram planos para o futuro. Em 1998, às vésperas da Copa do Mundo da França, a revista convidou Tostão para escrever sobre o companheiro do tri. O camisa 9 no México relatou a humildade do velho amigo e, elegante como sempre, bom de bola e bom de escrita, não teve dúvida em afirmar que, mesmo ganhando muitos títulos e contando com uma exposição exponencialmente maior na imprensa, era impossível um novo craque superar Pelé no panteão do futebol. Nas próximas páginas, PLACAR oferece uma seleção dos melhores momentos daquelas três publicações. Elas ajudam a entender um pouco melhor quem foi Pelé aos olhos de seus companheiros de vitórias e derrotas.
O NEGA ELISA E A ALEGRIA DO POVO
No início dos anos 1980, PLACAR promoveu uma conversa de Pelé com Garrincha, parceiro nas Copas de 1958, 1962 e 1966. O papo teve direito a música e lembranças, como escreveram Lemyr Martins e Hideki Takizawa
(Publicado em 19 de novembro de 1982)
Foi um reencontro comovente. Quando se viu diante de Mané, Pelé abriu um sorriso largo, estendeu os braços musculosos e enlaçou seu velho ídolo num abraço apertado, longo e emocionado.
Pelé — E a bola de hoje, Mané? Tá pequenininha, né? Cada vez mais sinto saudade de você, daqueles dribles, do povo nos estádios que vibrava com tuas entortadas nos “Joões”.
Garrincha — Olha, crioulo, eu sou instrutor da Legião Brasileira de Assistência e trabalho com 500 garotos, mas não aparece nenhum “tortinho” disposto a brincar na ponta.
Pelé — Cada vez vejo menos habilidade no jogador brasileiro.
Garrincha — A pelada está perdendo espaço, só tem garotos jogando em campos cercados. Cadê o moleque de pé no chão batendo bola em terra dura? Todo mundo põe a culpa na retranca, mas continua bolando esquemas cada vez mais fechados. Parece saudosismo, mas na Copa de 1958 também éramos muito marcados.
Pelé — Pois é, eu era um garoto de 17 anos, mas tinha gente boa fazendo a minha cabeça. Aliás, você lembra por que o Paulo Amaral (preparador físico) acabou com as corridas depois dos treinos?
Garrincha — Claro, o pessoal corria até o lago não para melhorar o preparo físico, mas para ver as garotas tomando banho nuas. Daí o Paulo Amaral proibiu a corrida, e o remédio foi aturar você tocando violão.
Pelé — Tocar não é bem a palavra: eu batucava no violão.
Garrincha — E já aprendeu? Lembro que o teu apelido era Nega Elisa, porque a gente te achava parecido com a torcedora-símbolo do Corinthians.
Pelé — Tocar eu ainda não toco, mas componho mais ou menos.
Garrincha — Já ouvi o Jair Rodrigues cantando uma música tua. Pega o violão e mostra aí, que eu te acompanho no cavaquinho (e simula dedilhando um instrumento de brinquedo).
Pelé — Bons tempos…
Garrincha — Na Copa de 1962 foi uma pena você ter se machucado. Eu dei sorte, fiz gols… Mas jamais vou esquecer da partida contra os russos em 1958.
Pelé — Foi a primeira partida que disputamos juntos. Era a estreia de nós dois na Copa e vencemos por 2 a 0, dois gols do Vavá. Você enlouqueceu os russos. Logo na primeira bola, entortou três.
Garrincha — Nunca te perguntaram se hoje conseguiríamos jogar da mesma maneira que jogávamos há dez, quinze anos?
Pelé — Me perguntam a toda hora.
Garrincha — Acho que não teria nenhuma diferença.Pelé se emociona, abraça Garrincha, olha fixamente nos olhos daquele homem de 49 anos e acaricia seu rosto gordo, num gesto de sincera admiração. Subitamente, o Rei do Futebol, o tricampeão do mundo, o Atleta do Século é de novo uma criança magnetizada pela presença do velho ídolo. É apenas a Nega Elisa, o crioulinho que Garrincha mandava para o ataque aos berros.
JOGADOR TAMBÉM É GENTE
Os repórteres Michel Laurence e Aristélio Andrade e o fotógrafo Lemyr Martins reuniram Pelé e o craque Afonsinho para uma conversa em torno da vida dos profissionais — a grande maioria —, que não ganhavam o suficiente para garantir a aposentadoria(Publicado em 3 de dezembro de 1971)
Foi em São Paulo. Afonsinho, um rapaz barbudo, cabeludo, de ideias revolucionárias, e Pelé, um homem inteligente, profundo conhecedor do futebol, já em fim de carreira, discutiram vários problemas da vida de um jogador profissional. Não foi fácil chegarem a uma conclusão sobre o que precisa ser feito para melhorar as condições da classe, mas o ponto de partida emerge do diálogo: unir os jogadores de futebol em torno de seu sindicato (e de uma Federação Nacional) e, principalmente, conseguir do governo federal a regulamentação da profissão.
PLACAR — O que vocês acham da lei do passe?
Afonsinho — Bem, o problema é um só: não podemos discutir problemas parcelados da profissão se não existe a regulamentação dessa profissão, se não existem leis para ela.
Pelé — É verdade. Como pode ser enquadrado o jogador de futebol, se sua profissão não é nem mesmo reconhecida pelas leis do país? Não existe nenhuma base feita para que sejam apontadas soluções.
Afonsinho — O jogador, apesar de ser um profissional, é um marginal. Um marginal que só excepcionalmente ganha muito bem. Segundo uma pesquisa de vocês mesmos, apenas quarenta jogadores, num total de 6 000 e qualquer coisa, ganham razoavelmente bem.
Pelé — Além de ser uma classe muito desunida. A gente não consegue reunir todos os jogadores em torno de uma causa, de uma ideia. Não se consegue nem mesmo reuni-los em torno do sindicato aqui em São Paulo.
Afonsinho — Nós temos de lutar para que a classe, por inteiro, seja favorecida.
Pelé — Mesmo tendo melhorado muito, a nossa classe continua composta, na maioria, de gente humilde, que ainda não tem uma mentalidade de classe formada.
Afonsinho — Verdade. A grande maioria dos nossos colegas não consegue alcançar a profundidade do problema. Nossa carreira é muito curta e isso obriga a pessoa a pensar em termos imediatistas.
Pelé — Tem mais. Quando fomos falar com o presidente da República, muita gente deturpou, dizendo que estávamos argumentando em causa própria. Ao contrário, eu fui pedir em favor da regulamentação da profissão de jogador de futebol.
Afonsinho — Se não existe a profissão de jogador, como é que alguém pode se aposentar por sofrer um acidente nessa profissão? Por isso a iniciativa tem de partir desses jogadores que ganham mais, esses quarenta aí de que PLACAR falou.
PERFEIÇÃO E SIMPLICIDADE
Em artigo escrito pouco antes da Copa da França, Tostão lembrou como conheceu Pelé, tratou da parceria dentro de campo e, ao destacar a simplicidade do gênio fora dos gramados, garantiu que nunca haverá outro jogador tão grande
(Publicado em junho de 1998)
“Conheci o Rei Pelé na Copa de 1966, quando fui convocado pela primeira vez para uma seleção brasileira. Eu tinha 19 anos e, obviamente, ele já era um jogador consagrado, o Rei do Futebol. Naquele ano, o Cruzeiro ganhou a Taça Brasil, vencendo o Santos por 6 a 2 no Mineirão. Após o título, fui fotografado com uma coroa e, no dia seguinte, vi no jornal a manchete: ‘Tostão, o novo Rei do Futebol”. Fiquei envergonhado e constrangido, sentindo- me um usurpador do trono. Logo que o encontrei, na convocação para a Copa de 1966, fiquei fascinado com sua presença, simpatia e simplicidade. O Rei era alegre e brincalhão, igual aos seus súditos, e me colocou à vontade na roda dos outros craques da sua geração: Garrincha, Bellini, Orlando, Djalma Santos, Gilmar, que estavam se despedindo da seleção.
Em Caxambu, cidade mineira onde o Brasil treinava, recebi a visita do meu querido pai. Apresentei-o a Pelé e, ao vê-lo, papai ficou emocionado, com os olhos cheios de água. Pelé, com sua simpatia, brincou, e o deixou à vontade, feliz. Eu imaginava: “Será que ele é assim mesmo, natural, humilde, ou é tudo uma questão de marketing?”. Hoje os jogadores vivem cercados de seguranças e secretários, não atendem o telefone, como se fossem reis. Antes da Copa de 1966, tive a primeira oportunidade de jogar ao lado de Sua Majestade num amistoso na Suécia. Na época, eu era considerado seu reserva e diziam que não poderíamos jogar juntos, pois tínhamos a mesma característica.
Pelé voltou a brilhar no Santos e, em 1969, durante as Eliminatórias, estava no auge de sua forma. Eu ficava impressionado com sua qualidade técnica. Ele tinha todas as características de um grande atacante: driblava curto e em velocidade, tinha uma visão periférica ampla, um passe preciso, chutava forte, saltava alto e cabeceava com os olhos abertos. Era imaginativo, sempre surpreendendo o adversário. Logo nos entendemos pelo olhar. Antes de a bola chegar aos seus pés, ele me mirava, indicando o que ia fazer e para onde eu deveria ir. Além disso, Pelé era um guerreiro em campo, e seu futebol crescia quando muito marcado. Sua perfeição confundia-se com a simplicidade. Além do brilho e da magia, o Rei jogava com grande objetividade. Quase não fazia embaixadas, não driblava para os lados, mas sempre em direção ao gol. Sua genialidade e condição física eram naturais, geneticamente determinadas. A natureza lhe deu quase tudo, e ele fez a parte que lhe cabia, jogando com alegria, garra, determinação e humildade.
É muito comum os ídolos, qualquer que seja a área em que atuam, serem angustiados e se sentirem divididos na sua identidade. Perdem a referência do cidadão comum. Queixam-se da fama, mas gostam e não abrem mão da posição de estrelas. Pelé me pareceu ser uma exceção — ele sempre demonstrou felicidade e alegria em ser Rei.”
Publicado em PLACAR de junho de 2020, edição 1467