Eu morri e voltei
Nenhuma mulher surfou onda tão alta quanto Maya Gabeira, 31 anos — um recorde que saiu caríssimo
Sou surfista de ondas gigantes e passei muitos anos perseguindo a maior de todas. Cismei que ia ter esse título, mais difícil ainda por eu ser uma mulher disputando em um mundo de homens, e fui atrás dele com persistência. Quase morri em 2013 no mar de Nazaré, em Portugal, hoje o local onde se formam as ondas mais altas do mundo, e mesmo assim não desisti. Neste ano, aconteceu: surfei uma onda de mais de 20 metros, a maior da minha vida. Eu consegui, mas a conta não foi nada barata. Tive meu primeiro contato com o oceano revolto de Nazaré há exatamente cinco anos. Era um mar ainda pouco explorado, mas cheguei e pensei: se eu quiser ser reconhecida como surfista de onda grande, é aqui que tenho de praticar.
Fui a primeira mulher a enfrentar as ondas de lá. Depois de vinte dias treinando, o mapa meteorológico apontou uma ondulação enorme para o dia 28 de outubro daquele 2013. Levantei quando ainda estava escuro e entrei na água por volta das 7 horas. Não sabia direito onde pisava. A ansiedade era imensa. O mar estava em fúria. Esperei meia hora, e minha chance se materializou: deparei com a maior onda que já tinha visto. Não me sentia segura, mas quando se espera tanto por um momento não há que pensar muito. Desci e, a cada instante, minha prancha ia deslizando com mais velocidade. Segurei dois voos e fui ganhando confiança. Mas no terceiro, no impacto com a água, eu me desequilibrei e caí. Acho que foi ali que quebrei o tornozelo. Começaram naquele instante as cenas do afogamento que ficaram famosas e até hoje podem ser vistas em vídeo na internet. Fiquei nove minutos tomando ondas na cabeça e acabei apagando. Finalmente o Carlos Burle (surfista da mesma equipe) conseguiu me resgatar de jet ski e me levou para a areia. Fizeram-se os procedimentos de ressuscitação, e eu recuperei a consciência. Lembro-me de abrir os olhos e ver a praia extensa, o dia nublado, só areia e céu. Entendi que estava viva e fiquei surpresa, porque eu já tinha me despedido. Morri e voltei.
Uma fissura na fíbula e as lesões na coluna me afastaram de lá por dois anos. Foi difícil retornar. Precisei vencer o medo e a insegurança, mas sempre soube que tinha de superar e recomeçar a busca pela onda que me daria um lugar na história do surfe. Em 2015, mudei-me para a mesma Nazaré e retomei os treinos. Dessa vez com mais prudência, devagar, reavendo a confiança aos poucos. Testei pranchas, melhorei os métodos de segurança, tive tempo para conhecer bem o lugar, tudo o que faltou da primeira vez. Em 18 de janeiro deste ano, as peças se encaixaram. Entrei no mar decidida a pegar uma onda — uma só, a certa — e completar. Depois de esperar quatro horas, vi a parede de água se formar. Era enorme. Pensei: é agora. Desci, e parecia que a onda ia se fechar sobre mim, que a espuma ia me engolir, mas consegui terminar.
Aí começou minha outra batalha. Quis registrar meu recorde no Guinness Book e deixar um legado — até então só os recordes masculinos contavam no surfe de ondas gigantes. Descobri que, para entrar no livro, a Liga Mundial de Surfe tinha antes de reconhecer o recorde. Fiz o pedido. Em abril, veio a decepção: na premiação Big Wave Awards, o recorde masculino foi anunciado (24,3 metros), mas o meu foi ignorado. Viajei para a Califórnia, onde se localiza a sede da liga, expliquei a situação, eles se mostraram receptivos e até surpresos — mas ficou por isso mesmo. Meses se passaram e nada. Continuei insistindo e, na segunda-feira, dia 1º de outubro, depois de nove meses de luta, a Liga Mundial reconheceu, enfim, meu recorde e gravei meu nome no Guinness. A maior onda surfada por uma mulher: 20,7 metros. Surfista: Maya Gabeira. Valeu a pena.
Depoimento dado a Fabio Codeço
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603