Filho de família pobre, ele estava condenado a uma vida sem horizontes, mas talento e esforço o levaram a ganhar duas vezes a Bola de Ouro
Essa sua vaidade causa, por vezes, danos no jogo da selecção, porque ele se sente tentado a jogar sozinho
Para compreender Cristiano Ronaldo, jogador e homem, é preciso recuar às suas origens, para relembrar que ele nasceu na turística Ilha da Madeira, mas no lado errado: o lado das favelas, das casas de chapa de alumínio, onde as crianças como ele era jogam à bola na rua, com duas pedras a fazer de postes das balizas. Filho de uma família pobríssima, Cristiano estava condenado a uma vida sem horizontes, mas que o seu talento e o seu esforço transformaram num sonho dourado: o de Bola de Ouro do futebol mundial (ganho pela segunda vez em 2013).
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O sonho começou a tornar-se desmedido quando, aos 18 anos de idade e já depois de ter vindo para Lisboa para as escolinhas do Sporting, ele entrou em campo pela equipe principal do clube, num jogo amigável (ou amistoso, como vocês dizem no Brasil), celebrando a inauguração do Estádio de Alvalade contra o todo-poderoso Manchester United, treinado por essa instituição chamada sir Alex Ferguson. Ao intervalo, depois de ter visto Cristiano pôr a cabeça em água a toda a defesa inglesa, o capitão Ryan Giggs (hoje treinador interino do United) virou-se para sir Alex e disse-lhe o que todos os seus colegas estavam a comentar entre si:
– Ó, mister, comprem aquele miúdo com o número 28!
– Já estamos a tratar disso – respondeu o fleugmático Ferguson.
E, no final do jogo, o Sporting tinha vendido Cristiano Ronaldo ao Manchester por 15 milhões de euros. Seis épocas de glória depois, Cristiano trocava o United pelo Real Madrid, pela absurda quantia de 98 milhões de euros – a mais cara transferência de um jogador até então. Em Manchester, herdando o lendário número 7, que tinha sido de George Best ou Eric Cantona, Cristiano pulverizou todos os records de golos deles e deixou sir Alex siderado com a força de vontade daquele rapaz: quando a equipe terminava os treinos, ele ficava mais uma hora sozinho a treinar sprints, livres, remates. E, quando chegava a casa, onde tinha um miniginásio particular, ficava outra hora a malhar para desenvolver os músculos.
Em Madrid, onde vai na quinta época, Cristiano continuou a dar nas vistas pela sua aplicação quase doentia aos treinos e ao trabalho físico. Esse é seu grande mérito e a prova da sua seriedade e inteligência como profissional: embora tenha evoluído muito, Cristiano não é um jogador tecnicamente sobredotado, mas sim um atleta sobredotado, que põe as suas características físicas ao serviço do seu jogo. Ele não é forte, por exemplo, a driblar, se estiver parado frente à defesa; não tem uma excepcional visão de jogo para abrir espaços imprevistos em passes para os companheiros; não é exímio em progredir em tabelinhas; não saca truques de magia do bolso; não é sequer um especialista na cobrança de penalties. Em compensação, não há mais nenhum jogador no mundo como ele em velocidade e em potência e qualidade de remate, capaz de, sozinho, correr 40 metros com a bola dominada, ultrapassar em velocidade todos os que lhe saíem ao caminho e terminar com um míssil disparado ao canto da baliza. É isso que lhe permite, não sendo um centroavante, alcançar números estratosféricos de golos em cada temporada – terminou 2013 com 69 golos em 59 jogos, entre o Real Madrid e a selecção portuguesa. Mas o seu futebol precisa de espaço para poder explodir: contra equipes fechadas, defesas que marcam em cima, ele perde-se, esbarrando contra o muro. Na comparação com Messi, o seu eterno fantasma e rival, Cristiano não tem o dom de se mover num espaço apertado como um chefe de orquestra, inventando aberturas para os companheiros onde elas não existiam e abrindo brechas no muro adversário. Quando pega na bola, Messi está a ver toda a equipe e todo o movimento à volta; Cristiano não vê nada: só vê a baliza adversária. Se lha taparem, ele sufoca.
Cristiano Ronaldo ganha 21 milhões de euros de salário anual no Real Madrid, mais prémios. E ganha ainda mais do que isso em “contratos de imagem”. Porque a imagem é outra obsessão de quem descreve a si mesmo como “jovem, bonito e rico”. Em campo, ele está permanentemente consciente das câmaras de TV, posando para elas como se também fizessem parte da equipe. E, antes de entrar em campo, é célebre por passar uma hora a ajeitar o cabelo com gel, tendo chegado ao cúmulo de, num jogo pela selecção, ter mudado radicalmente de penteado ao intervalo. De todas as regras do futebol, a que ele mais detesta é a que proíbe levantar o jersey para celebrar um golo. Mas, mal o jogo acaba, ele corre a trocar de camisola com um adversário para poder exibir o seu tronco malhado à objectiva mais próxima.
Essa sua vaidade causa, por vezes, danos no jogo da selecção, porque ele se sente tentado a jogar sozinho. Mas também pode suceder o contrário: em outubro passado, num quarto de hotel no Recife, assisti pela TV a um dos melhores jogos de sempre do CR7 (a “griffe” que ele cunhou e a que deu o nome de um museu exclusivamente dedicado à sua pessoa, na Madeira): o Suécia-Portugal, que apurava uma das selecções para o Mundial. Cristiano começou por fazer 1 a 0 para Portugal, mas Ibrahimovic respondeu com dois golos e pôs a Suécia na frente. Os suecos, porém, precisavam de mais um golo e tiveram de abrir espaço lá atrás, que CR7 tratou de aproveitar, com duas correrias desenfreadas e dois remates portentosos que fixaram o resultado final em 3 a 2 para Portugal. Então, Cristiano parou onde tinha rematado: olhou para trás, estendendo os braços para os companheiros, que estavam todos a uns 40 metros de distância, apontou depois para o chão e para si, explicando por gestos qual deve ser a estratégia da selecção portuguesa – “Passem-me a bola, que eu ponho-vos a todos, a uma nação inteira, no Brasil”. E foi assim que chegámos ao Brasil, em 2014.
O português Miguel Sousa Tavares é escritor. Colunista do jornal A Bola – o maior diário esportivo de seu país -, publicou, entre outras obras, o romance Equador (Companhia das Letras, 2011)