A nova arrancada de Jayme Netto
Termina nesta semana a punição de sete anos imposta ao treinador marcado por glórias olímpicas e por um dos maiores escândalos de doping do atletismo brasileiro. Agora, ele só pensa em formar novos campeões e na Rio-2016.
Em 5 de agosto de 2009, Jayme Netto Júnior iniciou a mais longa e dura prova de sua vida ao confessar sua parcela de culpa num dos maiores casos de doping da história do atletismo brasileiro. Treinador consagrado com duas medalhas em cinco Olimpíadas, Jayme Netto viu sua carreira desmoronar às vésperas do Mundial de Berlim, quando três de seus atletas foram flagrados em exames antidoping pelo uso de eritropoietina recombinante (EPO), substância que estimula a produção de energia aeróbica. Réu confesso, Jayme chegou a ser banido do esporte, depois de quase 30 anos dedicados ao atletismo, mas a pena foi reduzida. Entre diversas passagens por tribunais e dramas pessoais, o calvário de Jayme Netto chega ao fim depois de sete anos: termina nesta quinta-feira a punição a um dos treinadores mais vitoriosos do atletismo nacional. Aos 55 anos, o técnico quer deixar os problemas para trás e garante: voltará às pistas.
Jayme era treinador da seleção brasileira de atletismo de revezamento 4×100 metros, que faturou a medalha de bronze em Atlanta-1996 e a histórica prata em Sydney-2000. Seu status de mago das pistas sofreu o duro golpe quando Bruno Tenório Lins, Jorge Célio Sena e Lucimara Silvestre, seus atletas da Rede Atletismo, de Bragança Paulista (SP), foram pegos no doping. Jayme alegou que as doses de EPO foram receitadas pelo fisiologista do clube, Pedro Balikian, mas admitiu que tinha conhecimento de que a substância era proibida e concordou com o tratamento mesmo assim. “Cometi o maior equívoco da minha vida.”, conta, sete anos depois.
Ele e outro treinador da equipe, Inaldo Justino de Sena, foram condenados a quatro anos de suspensão pela Comissão Nacional Disciplinar (CND) da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt). No entanto, um recurso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) ocasionou o banimento vitalício da dupla, em caso contestado por Jayme. O treinador recorreu ao Tribunal Arbitral do Esporte e teve a pena mantida em quatro anos, que terminou em 2013. No entanto, uma nova suspensão, esta do Conselho Regional de Educação Física (Crefi), o manteve proibido de atuar como treinador até esta semana.
Os primeiros anos de afastamento foram sofridos. Jayme teve depressão, se divorciou e teve de superar a morte do pai. No período mais dramático de sua vida, o profissional formado em Educação Física e Fisioterapia chegou a ficar afastado da função de professor universitário por nove meses até ser readmitido (é professor do departamento de Fisioterapia na Unesp de Presidente Prudente). Jayme mergulhou nos livros, fez diversos cursos e se reinventou. Agora, diz estar animado para retornar à profissão, menos de cinco meses do início da Rio-2016.
Passados sete anos do caso de doping, ainda há algum tipo de remorso?
A repercussão foi exagerada, há muitos casos de doping e nunca houve nada parecido. Não inventei desculpa, não botei culpa na soja contaminada ou qualquer coisa do tipo. Assumi o erro e contei a verdade desde o início, mas parece que isso não é bem aceito nesse país. Paguei por isso, até mais do que deveria, porque houve excesso na minha punição.
Mas o senhor sabia desde o início que se tratava de doping?
Sim, mas quem receitou o EPO foi o doutor Pedro Balikian, que era meu colega, coordenador do departamento de Educação Física da Unesp. Eu sabia da competência dele como fisiologista, nossa relação foi se estreitando e ele sempre me sugeriu alguns tratamentos. Na época, dois atletas estavam com anemia e ele sugeriu um tratamento com eritropoietina. Na hora eu disse: ‘Mas isso é doping’. Ele disse que não era doping de velocidade, era para ciclistas, maratonistas, para atletas de provas de longa duração. A função dessa substância era aumentar a hemoglobina e, com isso, tratar a anemia. Depois, ele me convenceu a aplicar um tratamento com doses moderadas, não para aumentar desempenho, mas para auxiliar no tratamento dos atletas. Eu estava extremamente sobrecarregado na época, e me deixei levar pela ambição, dei abertura, perdi o controle. Sabia que era uma substância proibida, mas via pela perspectivava do tratamento. Se quisesse fazer doping, não usaria EPO em velocista. Mas assumo meu erro e já paguei por ele.
Qual é a sua relação com Pedro Balikian hoje?
Quando eu soube do escândalo, ainda na Alemanha, tentei falar com ele para entender o que tinha acontecido. Mas ele nunca me atendeu. Ele foi demitido da universidade e não falei mais com ele.
O senhor se envergonha do que aconteceu?
Eu cometi o maior equívoco da minha vida, mas todos podemos errar, estamos sujeitos a isso. Vergonha é o que acontece no Congresso, no Senado. Na época eu era professor universitário havia 28 anos e nunca tive qualquer problema disciplinar. Fui afastado da universidade e tive de lutar muito para provar que o caso não tinha nada a ver com a função de professor para voltar a trabalhar.
Qual foi o momento mais difícil neste período?
Eu sofri muito, tive depressão, meu pai adoeceu e morreu de câncer. Minha filha também ficou doente, e me divorciei… Passei por muitas dificuldades. Hoje estou equilibrado, de cara limpa e muito mais preparado. Como dizia Nietsche, o que não mata, fortalece. Quando algo assim acontece, temos duas opções: a asa ou a muleta. Eu escolhi a asa.
O que o senhor fez nos últimos anos?
Estudei muito, fiz cursos, publiquei vários artigos. Desde que acabou a punição disciplinar, em 2013, já estava apto a assessorar alguns atletas e queria ajudar. No ano passado, assessorei três atletas que estiveram no Mundial, Bruno Lins, José Carlos Moreira e Rodrigo Pereira. Aos 55 anos, nunca me senti tão maduro e preparado para contribuir com as pessoas. Estou apto a voltar, de cara limpa, sem medo de nada.
Mas pensa em voltar à seleção brasileira de atletismo?
Sim, estou aberto até para novas funções. Vamos conversar assim que acabar a minha punição. Espero receber um convite e estou à disposição para contribuir com a missão olímpica já em 2016. Uma pessoa que tem a paixão pelo esporte e a experiência de cinco Olimpíadas não vai querer disputar os Jogos no seu país? Ainda mais com o atletismo em baixa, sinto que posso ajudar.
Como o senhor avalia o atletismo brasileiro no momento?
Entre as mulheres, nunca esteve tão forte, tem chances reais de chegar a finais. O masculino não está no mesmo nível. Houve uma evolução importante, mas numa faixa intermediária. Há um grupo grande de atletas correndo na casa de 10s30, 10s50. Mas na casa de 10s20 ou menos tem um ou dois. Melhorou em quantidade, mas não em qualidade.
Tem grandes atletas ainda muito jovens. É preciso depurar esses atletas e elevá-los a outro nível. Essa geração precisa de uma atenção diferente, olhos experientes e avanço em aspectos científicos.
Quais são as maiores dificuldades que o atletismo nacional enfrenta?
Historicamente, o esporte sempre foi polarizado. Prudente era um polo, São Paulo era outro. Mas alguns treinadores muito experientes foram afastados, como eu e Luiz Alberto de Oliveira. Falta continuidade, competitividade. O atletismo entrou em uma zona de conforto. Há uma lacuna, falta experiência, falta intercâmbio. Os atletas e os treinadores não têm amadurecimento internacional. Essas coisas fazem diferença de segundos na pista.
A crise econômica atrapalha?
Sim, atrapalhou sobretudo nos últimos dois anos. Nós do interior sofremos para viajar. Não dá para ir a provas em São Paulo, as viagens e hospedagens estão caríssimas. A logística é muito complicada para um atleta se não tiver apoio.
Seu trabalho mais marcante foi a medalha de prata em Sydney-2000? Por que aquele time (Vicente Lenilson, Claudinei Quirino, Edson Luciano e André Domingos) conseguiu um resultado tão expressivo?
Aquele time vinha sendo trabalhado desde 1995, foram cinco anos de propostas diferenciadas de técnica, filosofia. O treinamento era muito desgastante e era difícil trabalhar com a questão da individualidade. O atletismo se alimenta do treino e também de individualidade, rivalidade entre os atletas. Quando passa para o coletivo é complicado, porque os quatro eram adversários brigando por vagas.
É difícil implantar o conceito de coletivo no atletismo?
É bastante. Tivemos de colocar na cabeça deles que o revezamento é outra energia. Ali não tem Oliveira ou da Silva, o time é o Brasil. É difícil porque quebra uma característica essencial do atletismo. O revezamento tem de ter união, motivação, é diferente. Fizemos um grande trabalho.
O senhor retorna ao atletismo no momento em que acontece um escândalo mundial de doping, com a Rússia como protagonista. O doping é um problema generalizado?
Não, nem todo mundo se dopa. Eu diria que a minoria se dopa. Isso é um problema que sempre existiu, o que mudou foi a conscientização dos processos de controle. Hoje há bem menos doping que 30 anos atrás. Tudo evoluiu, a nutrição esportiva, o sistema de treinamentos, hoje há métodos permitidos que melhoram o rendimento do atleta. O doping é menor e mais controlado atualmente. Vejo esses escândalos de doping com otimismo, porque sempre houve, mas agora está sendo mais fiscalizado.
Doping ganha título?
Não, definitivamente não. O doping mais destrói a possibilidade de evolução dos atletas do que ajuda. Os resultados são como cometas: podem aparecer, mas em seguida somem e não voltam.
Jayme e a prata que valeu ouro
A maior glória da carreira de Jayme Netto é também o último grande feito do atletismo brasileiro de velocidade: a medalha de prata do revezamento 4×100 metros conquistada por Edson Luciano, Vicente Lenilson, Claudinei Quirino e André Domingos, nos Jogos de Sydney, em 2000, perdendo apenas para os americanos, imbatíveis na época. André, que começou a trabalhar com Jayme em Barcelona-1992, garante que o pódio não seria possível sem o treinador. “Ele era muito detalhista. No time de 2000, ele estudou a característica de cada um de nós para definir a ordem de quem entraria na pista. Isso foi fundamental.”
André conta que Jayme se baseava em conceitos científicos para convencer seus atletas a trabalhar duro. “Ele sempre se preocupou muito com o organismo dos atletas. Treinávamos muito forte e fazíamos trabalho de recuperação. Ele sempre foi muito técnico, cuidadoso e inovador. No início, pensamos que ele era doido”, brinca André. “O segredo do sucesso dele era a curiosidade, ele estudava, se informava. E a força de vontade dele nos inspirava”, reforça Claudinei Quirino.
André e Claudinei consideram que o escândalo servirá de aprendizado para o treinador. “O Jayme era o cabeça do time e, por isso, teve de abraçar tudo sozinho. Ele teve sua parte de culpa, sim, mas pagou. Ele foi muito nobre em assumir a culpa em nome dos atletas e tem meu respeito. Falei com ele esses dias, olho no olho: ‘Jayme, espero que você tenha aprendido com tudo isso a ser uma nova pessoa e se cerque de pessoas boas’”, conta André. “Não tenho capacidade para julgar o que ele fez, mas se ele errou, já pagou. Temos de olhar para trás e valorizar o que ele fez”, completa Claudinei.
Ambos lamentam o declínio do atletismo nacional na última década, mas apontam qualidade para as próximas gerações e acreditam que Jayme é o homem ideal para recolocar a modalidade nos trilhos. “Deixem o homem trabalhar porque ele tem capacidade e já provou isso muitas vezes”, diz Claudinei. “Olhe como está a seleção depois da saída dele. E isso não é culpa dos atletas. O Jayme tem de voltar. Ele é único, tem estrela, sabe o que faz. É um gênio. Por mais que muita gente torça o nariz, ele vai voltar e vai recuperar o atletismo brasileiro”, disse André.