A luta de Woodward contra o abuso sexual: ‘Sobrevivi e hoje salvo vidas’
Ex-zagueiro inglês foi uma das centenas de vítimas do treinador Barry Bennel na infância; ao denunciá-lo, iniciou uma campanha global
A fala mansa e o sorriso amável não combinam com um ex-zagueiro das truculentas ligas de acesso do futebol inglês. Muito menos com um homem vítima de abuso sexual durante a infância e adolescência, que sofreu calado até os 27 anos e pensou no suicídio uma dezena de vezes. Hoje, aos 44 anos, Andy Woodward é um homem feliz e orgulhoso de seu novo trabalho. Nesta semana, ele esteve no Brasil para dar palestras, promovidas pelo Sindicato dos Atletas de São Paulo, sobre como conseguiu superar o trauma causado pelo ex-treinador Barry Bennel, o pedófilo que abusou do jogador durante seis anos e ainda se casou e teve filhos com sua irmã – hoje está preso, graças às denúncias feitas por Woodward e ao apoio de outras centenas de ex-atletas que se encorajaram a abrir o jogo.
Woodward foi uma criança alegre e louca por futebol, especialmente o brasileiro. “Meu ídolo era o Zico”, revela, animado com os primeiros dias de encontros com crianças brasileiras. Ele jamais abandonou o sonho de se tornar atleta profissional, mas a paz de espírito lhe foi roubada na primeira visita à casa do treinador. “Aquela noite mudou minha vida para sempre”. Barry Bennel era o chefe das categorias de base do Crewe Alexandra, clube da cidade de pouco mais de 90.000 habitantes, a 235 quilômetros de Londres, no noroeste da Inglaterra, que hoje disputa a quarta divisão. Bennel viu Andy jogando no bairro e o convidou para ingressar na equipe, que tinha uma espécie de convênio com o Manchester City – Andy era torcedor do rival United, mas nutria um desejo inabalável de ser profissional. Introvertido, tornou-se presa fácil para o tutor criminoso. “Barry escolhia os garotos mais vulneráveis e enganava suas famílias”.
A trágica história ainda ganharia um capítulo surreal: o monstro que abusou de Andy dos 10 aos 16 anos ainda manteve uma longa relação com a irmã do garoto, com quem teve dois filhos. Andy chegou a conversar com a família para tentar evitar o casamento, mas não conseguiu revelar toda a verdade. “Quando uma pessoa tem o poder de realizar ou destruir seu sonho, você de certa forma bloqueia o sofrimento.” As perguntas sobre a irmã e os sobrinhos foram as únicas que Andy se recusou a responder, de forma extremamente educada. Recentemente, ele perdeu o pai, que passou seus últimos anos remoendo a dor de não ter percebido a tempo os perigos que Bennel representava para seus filhos.
Já longe do abusador, Woodward realizou seu sonho, mas não passou de um zagueiro esforçado de ligas menores, com passagens por Bury, Sheffield United, Halifax Town, entre outros. O trauma causado pelos abusos sempre foi seu maior adversário. “Estava mentalmente destruído, não sabia nem se era gay ou não. Tenho certeza de que se minha cabeça estivesse no lugar, eu teria jogado a Premier League (primeira divisão inglesa)”. Sofrendo de crises de pânico e surtos suicidas, ele se aposentou aos 29 anos, pouco depois de finalmente abrir o jogo à polícia e à família, quando Barry foi preso pela primeira vez.
Em 2016, ao saber que o treinador estava novamente solto, topou narrar seu sofrimento aos jornais ingleses. O efeito foi imediato: centenas de outros jogadores também disseram ter sido vítimas de Barry Bennel – e ao menos quatro atletas treinados por ele cometeram suicídio, incluindo Gary Speed, ídolo do Newcastle e do Leeds United, que na época de sua morte era treinador do País de Gales. O escândalo deu início a uma série de campanhas na Inglaterra contra o abuso infantil no esporte. E Bennel, hoje com 64 anos, que vivia foragido sob um nome falso, foi encontrado pela polícia e condenado a trinta anos de prisão. “Eu me senti aliviado, porque tenho certeza que, se ele estivesse nas ruas, abusaria de outras crianças.”
Woodward se tornou um símbolo mundial em defesa dos jovens e diz se emocionar com os relatos que recebe. Como o de um garoto que desistiu de se matar ao ouvir uma entrevista. Exaltando diversas vezes as palavras “positividade” e “otimismo”, o ex-zagueiro, casado e pai de cinco filhos, conta que o sofrimento jamais será esquecido, mas que, após dezoito anos de terapia, consegue usá-lo a seu favor para fazer o bem. Confira a entrevista:
A partir de que momento o senhor se deu conta de que havia algo errado? Desde o primeiro dia. Aconteceu quando eu tinha 10 anos. Nessa idade, você não entende exatamente o que está acontecendo, que se trata de um crime, não entende nada sobre sexualidade. Mas tem a noção de certo e errado, e eu já sabia que aquilo era errado. Aquela noite mudou a minha vida para sempre.
Nunca pensou em desistir do futebol? Não. Não sei como nem de onde vem, mas tenho uma força interior muito grande para lutar por meus objetivos e ser jogador de futebol sempre foi meu sonho. O Brasil tem grande influência nisso: cresci vendo o futebol brasileiro e admirando seus jogadores, especialmente o Zico. Eu amava seu estilo de jogar.
O trauma o afetou também dentro de campo? Sim, inclusive tive muitas contusões, que podem ser definidas como “lesões mentais”. Durante minha carreira, houve momentos em que meu corpo estava bem, mas mentalmente eu estava sofrendo e não entendia o motivo. Claro que eu me lembrava da infância, mas não identificava o trauma que isso me causava. E depois que contei tudo à polícia, aos 27 anos, passei a ter ataques de pânico e isso basicamente acabou com a minha carreira. Eu me aposentei jovem, aos 29 anos.
Até os 27 anos, o senhor nunca contou sobre o ocorrido a ninguém? Não, nem mesmo a um amigo. Vou tentar explicar por que: quando eu tinha 8 anos, meu único desejo era ser jogador de futebol e aquele homem era reconhecido como o melhor treinador de jovens do país. Quando uma pessoa tem o poder de realizar ou simplesmente arruinar seu sonho, você fica vulnerável e de certa forma bloqueia o sofrimento. Deixa trancado em sua cabeça. Assim passa a ter o controle, guarda essa dor para você.
Como se não bastasse, ele ainda entrou para sua família… Sim, ele casou com minha irmã, tiveram dois filhos, foram momentos horríveis. O relacionamento deles só acabou quando contei a verdade. Ela ficou arrasada, mas esse é um assunto em que não gosto de tocar, porque ainda me faz mal.
Quando Barry Bennel foi condenado, sentiu-se aliviado? Sim, claro. Porque sabia que, se estivesse pelas ruas, ele abusaria de outras crianças. O que ele fez não afeta apenas as crianças, mas os pais, as famílias. Ele mata sonhos e pessoas. Sou um sobrevivente.
Qual seria para o senhor uma pena justa para este tipo de criminoso? Não sei dizer, os sistemas judiciários são diferentes em cada país. Nós somos as vítimas e não estamos no controle dessa situação, não cabe a nós julgar. Mas, quanto mais luz for jogada nesse assunto e mais culpados forem denunciados, mais as autoridades vão olhar o tema com atenção. Porque há vários criminosos como Barry Bennel pelas ruas.
Conseguiria perdoá-lo? Ele nunca me pediu perdão. Se pedisse, não sei se seria possível perdoar. O que é possível é seguir a vida, colocar um ponto final. Não posso mudar o que aconteceu e o que fez comigo. Tento não pensar nisso de forma negativa, quero fazer algo positivo a respeito. Depois que me tornei o primeiro ex-jogador a falar sobre o assunto, centenas de outros se encorajaram a denunciar. Com isso, vidas foram salvas.
A revelação o deixou em paz? Sim, sinto muito orgulho de ajudar a salvar a vida de crianças. Não podemos matar seus sonhos e estamos apenas começando, queremos organizar uma comunidade global para acabar com esse problema. Estou viajando a vários países, centenas de pessoas me procuraram para contar suas histórias.
Qual delas mais o comoveu? A de um adolescente de 12 anos, que estava assistindo a uma entrevista minha, em um quarto escuro, enquanto seus pais estavam na sala. Ele estava prestes a tomar pílulas e tirar a própria vida, como cheguei a fazer algumas vezes. Mas, ao me ouvir dizer que as pessoas abusadas poderiam ter esperanças, ele desistiu. Essa única vida já valeria a pena a minha revelação.
Recentemente, casos semelhantes foram revelados no Brasil e na Argentina. Em países ainda em desenvolvimento, o risco de abuso é maior? Não sei. No Brasil, o futebol está na veia de todos, a maioria das crianças sonha em ser jogador. Isso aumenta os riscos de haver abuso, estão mais vulneráveis. Mas acredito muito em positividade, sou otimista e espero que os clubes brasileiros apoiem as campanhas do Sindicato dos Atletas e investiguem, orientem as crianças, os pais e os treinadores.
Seus filhos gostam de futebol? O senhor incentiva a seguir carreira? Sim, eles adoram. Os gêmeos têm problemas respiratórios e não podem praticar esportes. O mais novo é muito bom em rúgbi, acredito que seguirá esse caminho. E não tenho qualquer receio em relação ao que aconteceu comigo, porque eu os acompanho muito de perto, converso com eles. Os pais precisam ficar atentos.
O senhor parece uma pessoa muito alegre. Como conseguiu superar isso tudo? Tive a sorte de fazer dezoito anos de terapia e entender exatamente o que aconteceu. Consegui aceitar e perceber que a culpa não era minha. Foram muitos anos até me tornar a pessoa feliz que sou hoje. Claro, quando a pessoa tem um trauma, nunca esquece completamente. Às vezes tenho pesadelos, tenho meus dias ruins, como qualquer ser humano. Mas consigo me recuperar e sempre penso que cada dia é um novo dia.
Também está otimista em relação à seleção inglesa na Copa? Nem tanto (risos). Amo o futebol e a Copa do Mundo. E o Brasil é sempre meu segundo time, sempre foi. Então, se a Inglaterra for eliminada, e acredito que isso vai acontecer, vou torcer muito pelo Brasil.