A atribuição de notas às apresentações, alvo de histórica controvérsia, pode ganhar já em Tóquio-2020 um decisivo auxílio da inteligência artificial
Houve espanto, um interminável óóó de incredulidade, em 18 de julho de 1976, no ginásio olímpico de Montreal, quando a romena Nadia Comaneci, de 14 anos, soltou as mãos das barras assimétricas e pousou no solo. Depois de trinta segundos, o placar eletrônico transformou em números aquele momento histórico: 1.00, simples assim. Como o equipamento trabalhava apenas com três dígitos, e não quatro, foi impossível mostrar ao mundo o 10.00. “Senhoras e senhores, pela primeira vez em uma Olimpíada, Nadia Comaneci recebeu a nota 10 perfeita”, anunciou uma voz pelos alto-falantes, de modo a corrigir a discrepância. Naqueles Jogos, Nadia repetiria em mais seis ocasiões a nota máxima. O aprimoramento das técnicas fez surgir outras Nádias, nenhuma como ela, nem mesmo a fenomenal americana Simone Biles.
Depois de Montreal, porém, o 10 virou algo recorrente (para não dizer banal) na ginástica artística. Até a Olimpíada de Barcelona, em 1992, foi distribuída mais de uma centena de avaliações máximas. Tornou-se necessário, então, mudar o sistema de pontuação: o veredicto final passaria a ser a diferença entre o chamado “valor de partida”, referente à dificuldade dos movimentos a ser apresentados, e as deduções por erros cometidos durante sua execução. A partir dessa alteração, nunca mais se viu um “10 perfeito”.
No centro do problema, ontem e hoje, está a subjetividade da avaliação do desempenho dos ginastas, submetidos ao olhar de jurados. É a subjetividade que abre porta para algo pior, porém frequente na história do esporte: a manipulação de resultados. Há dezenas de estudos estatísticos segundo os quais juízes de determinado país tendem a atribuir notas mais altas a seus compatriotas em competições internacionais. Antes que alguém aponte o dedo acusador para todos os avaliadores das competições de ginástica, um alerta: às vezes, a “corrupção” é inconsciente. Não raro, as maiores notas foram dadas aos atletas que se apresentaram por último. Também já foi comprovado cientificamente o comportamento mimético dos jurados. No livro The End of the Perfect 10 — The Making and Breaking of Gymnastics’ Top Score — From Nadia to Now (ainda sem tradução para o português), a americana Dvora Meyers, especialista na cobertura do esporte, descreve o hábito: “Os árbitros costumam atuar como se estivessem em um jogo de adivinhação, no qual o objetivo é apontar não a resposta correta, mas sim aquela idêntica à escolhida pelo juiz ao seu lado.”
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Nos Jogos de Tóquio, que se iniciam em julho deste ano e para os quais são prometidas novidades tecnológicas em diversas áreas, os dirigentes da Federação Internacional de Ginástica (FIG) querem ver em prática uma nova ferramenta já testada durante a mais recente edição do Campeonato Mundial da modalidade, realizada em Stuttgart, na Alemanha, em outubro de 2019. É um sistema eletrônico, um “VAR”, ou “juiz robô”, como já foi apelidado pelos ginastas, que usa uma série de sensores tridimensionais para alimentar um programa de computador comandado por inteligência artificial. A partir dele será possível saber, por exemplo, de modo inequívoco, se um atleta aterrissou com o corpo reto ou não, algo que os árbitros têm de decidir sem replay (veja os detalhes sobre seu funcionamento no quadro acima). “É um passo adiante em direção à justiça através da tecnologia”, disse o presidente da Federação Internacional de Ginástica, o japonês Morinari Watanabe. Laurent Landi, técnico da estrela Simone Biles, candidata a ser o maior nome da próxima Olimpíada, diz que, quando as máquinas de fato começarem a ser utilizadas com eficiência e confiança, nascerá uma nova era para a modalidade. “Sabemos quanto uma pontuação pode ser subjetiva”, afirma Landi. É a tecnologia a serviço da honestidade no esporte.
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670
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