Futebol nas alturas: como a altitude impacta o rendimento de jogadores
Últimos campeões, Flamengo e Palmeiras estreiam na Libertadores em Quito e La Paz; PLACAR ouviu especialistas sobre o tema
A fase de grupos da Libertadores de 2023 começa nesta terça-feira, 4, com 32 equipes em busca da glória eterna. Obsessão de muitos, o torneio de clubes mais querido do continente é enriquecido por algumas particularidades, dentre elas a altitude, elemento que Flamengo e Palmeiras, os últimos campeões, encaram já na primeira rodada.
Ambos finalistas de estaduais, os times “sobem a serra” entre as decisões. Na próxima quarta-feira, 5, o Rubro-Negro enfrenta o Aucas, em Quito, no Equador, a 2850 metros acima do nível do mar, enquanto o Palmeiras encara o Bolívar, em La Paz, na Bolívia, a 3637 metros.
Em 121 partidas de times do Brasil na Libertadores disputadas a mais de 2.500 metros do nível do mar, clubes brasileiros saíram derrotados 59 vezes, vitoriosos em 35 e o empate prevaleceu em 27 ocasiões. Houve dois encontros na cidade boliviana de Al Alto, a mais alta a receber um jogo da competição, a 4.090 metros de altitude. Foi lá que o Always Ready venceu o Internacional, em 2021, e o Corinthians, em 2022, ambos por 2 a 0.
O desempenho baixo, apenas 29% de vitórias, tem raízes fisiológicas, ligadas diretamente ao relevo do local. PLACAR foi atrás de especialistas da área para buscar a explicação: por que a altitude impacta no rendimento de jogadores de futebol?
As causas científicas
Contrariando alguns mitos, não há menos oxigênio a 3.000 metros do mar do que em altitudes moderadas. Em ambos os casos, o oxigênio do ar atmosférico corresponde a 20,93%, o que muda de acordo com a altitude é a pressão atmosférica. Ou seja, quanto mais alto, menor a pressão e menos moléculas de oxigênio na inspiração.
Assim, a baixa concentração de O2 causa um efeito chamado hipóxia. Para dar uma visão científica, PLACAR entrevistou o Doutor Rodrigo Aguino, professor do Centro de Educação Física e Desportos da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ciências no Futebol (@gecif.ufes).
“Os estudos mostram que os principais efeitos causados nos jogadores estão relacionados aos componentes físicos, fisiológicos e cognitivos. Por exemplo, a alta altitude tem um impacto negativo no desempenho aeróbio dos jogadores (metabolismo predominante durante um jogo de futebol) e na capacidade de recuperação entre esforços de alta velocidade (atividades determinantes durante um jogo de futebol)”, contou o professor que ocupa lista dos 10 pesquisadores com maior número de publicações científicas relacionadas ao futebol.
Procurado pela reportagem, Felipe Rabelo, coordenador de performance do Red Bull Bragantino, com uma visão de dentro da comissão técnica, explicou os motivos e atribuiu à queda natural de rendimento à falta de adaptação dos organismos. Segundo o profissional que já trabalhou no Athletico Paranaense e no Real Valladolid, o corpo tende a trabalhar mais para suprir as exigências físicas durante um jogo.
As condições pioram com o impacto das longas viagens e problemas de logística. Palmeiras e Flamengo, que nesta semana viajarão cerca de 4.700 km e 9.000 km, respectivamente, também precisarão driblar empecilhos para a recuperação.
Em entrevista a PLACAR, em maio de 2021, Daniel Gonçalves, coordenador de perfomance do Palmeiras, falou sobre os impactos do calendário do futebol brasileiro e das longas viagens. “Um jogo de futebol promove uma fadiga bastante acentuada, porque o atleta é exigido em potência e resistência, o que causa dano muscular e metabólico. Precisamos de físico, mental e tático para seguir vencendo”.
Como diminuir os impactos?
Os impactos começam a ser sentidos em altitudes a partir de 1.500 metros acima do mar e a partir de 2.000 metros a exposição já é substancial. Nesse sentido, para a adaptação dos atletas de times brasileiros, que atuam em condições semanalmente distintas a essas, existe um período de tempo, basicamente impossível de ser cumprido no atual cenário.
“O período de aclimatação seria o mais importante. Os estudos apontam que são necessários aproximadamente 16 dias (400h) de exposição progressiva à altitude elevada para que haja adaptação do corpo. Porém, se torna inviável na rotina de um clube de futebol profissional, em que a equipe joga em uma cidade e um país diferente três dias antes”, detalha Felipe Rabelo, do time de Bragança Paulista.
Reconhecendo que o longo período em um local de altitude é inviável, Aquino apresenta duas outras possibilidades . “Uma estratégia é viajar o mais perto possível da data e hora da partida e retornar logo após o jogo, conhecida como ‘fly-in, fly-out’. E existe outra, ainda pouco explorada no esporte, que é a utilização de tendas simuladoras de alta altitude. No Brasil já há alguns projetos e estudos, com o objetivo de potencializar o desempenho de diferentes atletas e minimizar esses efeitos negativos causados pela alta altitude.”
O período ideal de aclimatação não é algo viável em contextos do futebol de clubes, mas foi uma realidade para a seleção brasileira da Copa do Mundo de 1970. Em um trabalho físico revolucionário, o time de Zagallo viajou para o México um mês antes da estreia do torneio, visando a adaptação do grupo às altitudes que variaram de 1500 a 2250 metros acima do nível do mar durante o torneio e ao forte calor. O resultado foi uma campanha brilhante, na qual o o Brasil sobrou, além de tecnicamente, fisicamente, e conquistou o tricampeonato.
Esse período de adaptação está perfeitamente ligado ao bom desempenho de clubes “da casa” nessas condições. Rabelo, especialista na área, explica: “Os jogadores que atuam em clubes situados em altitude elevada, principalmente aqueles que nasceram nessas regiões, estão mais acostumados com essa condição por passarem por um processo adaptativo de longo prazo. Eles apresentam mais hemácias, células responsáveis pelo transporte de oxigênio, que permitem o melhor funcionamento do corpo nessa condição específica.”
Polêmica
A altitude é um tema controverso e partidas nessas condições já foram proibidas pela Fifa. Em maio de 2007, a entidade proibiu a realização de jogos em locais que estivessem a mais de 2.500 metros acima do nível do mar, o que causou revolta.
Evo Morales, presidente da Bolívia à época, encabeçou a briga contra a decisão, realizando partidas em altitudes ainda maiores, com forte apoio do craque argentino Diego Maradona. A pressão surtiu efeito e houve mudanças na restrição, que chegou a liberar partidas a 3.000 metros acima do nível do mar, mas recuou para 2.750.
Todas as restrições foram revertidas em abril de 2008, após Evo Morales contar com a ajuda de Lula, presidente do Brasil. A decisão desagradou dirigentes brasileiros, como Márcio Braga, ex-presidente do Flamengo, que chegou a tratar a campanha para jogos em altitudes elevadas como uma “brincadeira com a vida das pessoas”, o que rendeu até uma viagem do político rubro-negro à sede da ONU. Desde então, equipes que têm sede em regiões altas não precisaram ser mandantes em outros locais e partidas em grandes altitudes acontecem com frequência.
Em março de 2022, antes do Brasil enfrentar a Bolívia, em La Paz, pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo, uma declaração de Tite causou polêmica. Ao falar sobre o estilo de jogo a ser adotado, utilizou a palavra “desumano” e gerou revolta. “Repudiamos que Tite, técnico do Brasil, diga que é desumano jogar futebol em um lugar onde vivem milhões de pessoas. A grandeza se reconhece nas palavras, por isso recordamos o maior, Diego Armando Maradona, que disse: ‘Vocês têm que jogar onde nasceram, irmãos'”, publicou Evo Morales. Semanas depois, Tite se desculpou.
A altitude para brasileiros em 2023
Além de Flamengo e Palmeiras, que escalarão altas atitudes para encarar Aucas e Bolivar, Fluminense e Corinthians também enfrentarão essa adversidade.
O Tricolor de Fernando Diniz, que já perdeu uma final de Libertadores, em 2008, contra a LDU (o jogo de ida, derrota por 4 a 2, foi na altitude), viaja para La Paz, onde encontra o The Strongest, a mais de 3600 metros do nível do mar. Enquanto isso, o Corinthians vai a Quito, a mais de 2800 metros acima do mar, para enfrentar o forte Independiente Del Valle, atual campeão da Copa Sul-Americana, contra o São Paulo, e Recopa, contra o Flamengo.