‘Ronaldo é produto de marketing’, cravou Careca à PLACAR, em 1999
Na ocasião, o ídolo de Guarani, São Paulo e Napoli disse que o novo dono da camisa 9 da seleção era "apenas um bom jogador, mas limitado"
Ao longo de 53 anos de história, PLACAR publicou uma infinidade de entrevistas bombásticas com estrelas da bola. Em alguns casos, os protagonistas erraram feio em previsões ou exageraram na dose das críticas. Em agosto de 1999, Careca, ídolo de Guarani, São Paulo e Napoli, com duas Copas disputadas pela seleção brasileira, não mediu palavras ao avaliar seu sucessor com a camisa 9. Para ele, àquela altura, Ronaldo Fenômeno não passava de um “produto de marketing”.
Recém-aposentado, gerindo um projeto em Campinas, Careca considerava que naquela época estava “muito fácil jogar bola”. “O futebol brasileiro só tem marketeiros em campo. Os jogadores que são considerados craques ainda precisam fazer muita coisa. Se o atleta estiver bem assessorado em termos de marketing, tem tudo para se consagrar. Na minha época, craque que era craque precisava fazer 25 ou 30 gols para chamar a atenção. Hoje não, com 10 gols o jogador já ganha espaço na mídia e o seu passe fica valendo um absurdo. A qualidade do futebol está muito baixa”, cravou, em entrevista ao repórter Fábio Pescarini.
Na ocasião, Ronaldo já convivia com os primeiros problemas físicos na Inter de Milão, era a grande estrela da seleção e havia vencido duas vezes o prêmio de melhor jogador do mundo, aos 23 anos. “Esse é um grande caso de marketing no futebol. Já vi o Ronaldo ser comparado a Maradona, Zico e até mesmo a Pelé. Isso é um absurdo. É apenas um bom jogador, mas limitado. Só joga quando está com plenas condições físicas. Aí, ele se transforma em um tanque. Caso contrário, é apenas mais um em campo” disse Careca.
No papo, o histórico goleador também relembrou a parceria com Diego Armando Maradona no Napoli e brincou que ambos eram donos da cidade ao sul da Itália. “O Maradona era dono de 90%. Eu ficava com os outros 10%. Acho que é um dos poucos casos onde não existiu a rivalidade entre brasileiro e argentino. Todas as quintas-feiras ele ia à minha casa para tomar cerveja, fazer uma feijoada ou um churrasco. Foi uma amizade diferente, verdadeira.”
O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera algum tesouro de nossos arquivos, reproduz abaixo a entrevista na íntegra:
“Ronaldo é marketing”
Com duas Copas na costas e um passado de sucesso estrondoso no futebol italiano, o ex-centroavante Careca diz que a qualidade do futebol brasileiro está baixa e que Ronaldo, o Fenômeno, é uma grande jogada de marketing
Fábio Pescarini
Às vésperas de completar 39 anos, chuteiras penduradas, Antônio de Oliveira Filho, o Careca, não consegue ficar quieto. No ano passado, por exemplo, tornou realidade o antigo ditado “pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube”. Defendendo as cores do Campinas, clube-empresa de sua propriedade, Careca marcou um gol de penalidade máxima na disputa da Quinta Divisão paulista. Este ano, aceitou o convite para jogar no “Zequinha”, o São José de Porto Alegre, no último Gauchão. Careca lamenta o fato de o corpo não corresponder mais ao seu raciocínio. Se dependesse só da vontade, ainda estaria jogando. O que não o impede, de vez em quando, de irromper no meio dos treinos do Campinas. “Jogo no time reserva, para mostrar como é que se faz.”
Na entrevista que se segue, o ex-jogador lembra suas passagens pela Seleção e discute o que é ser ídolo no país dos Ronaldos. Para Careca, aliás, o Ronaldo da Inter de Milão é apenas um atacante comum, catapultado ao estrelado pela força do marketing.
Careca também fala do amigo Maradona e recorda o tempo em que os dois eram os donos da cidade de Nápoles. Diz que, mesmo sendo boêmio, iria deitar e rolar no Campeonato Brasileiro se ainda jogasse. E aposta, é claro, nos novos talentos que estão sendo lapidados no Campinas Futebol Clube ou na sua escolinha de futebol, que hoje conta com cerca de 750 garotos. Sonha em ver alguns deles disputando uma Copa do Mundo, do mesmo modo que ele já fez.
O seu jogo de despedida, em Nápoles, foi em fevereiro. Mas você voltou a jogar. Afinal, você encerrou ou não a carreira?
Só voltei ao Zequinha (apelido do Esporte Clube São José, de Porto Alegre) para fazer quatro ou cinco partidas. Apenas para ter o gostinho de uma experiência nova. Lotei as arquibancadas. Pena que o corpo não ajude mais. Não consigo jogar por uma questão médica: sofro uma série de contusões. Se estivesse bem fisicamente, estaria dando baile em todo mundo.
Você se considera melhor do que os jogadores em atividade no Brasil?
Está muito fácil jogar bola. O futebol brasileiro só tem marketeiros em campo. Os jogadores que são considerados craques ainda precisam fazer muita coisa. Se o atleta estiver bem assessorado em termos de marketing, tem tudo para se consagrar. Na minha época, craque que era craque precisava fazer 25 ou 30 gols para chamar a atenção. Hoje não, com 10 gols o jogador já ganha espaço na mídia e o seu passe fica valendo um absurdo. A qualidade do futebol está muito baixa.
Por que essa falta de foras-de-série?
Aqui no Campinas estamos sempre em busca de novos talentos. O Reginaldo, um atacante de 21 anos que emprestei ao Bandeirante de Birigui, marcou 28 gols na Série A-3 (Terceira Divisão) do Campeonato Paulista. Para ele, eu tiro o chapéu. O Ronaldinho do Grêmio é outro bom exemplo de craque.
Existe algum jogador hoje com características semelhantes à suas?
O Ronaldinho do Grêmio é um jogador diferente. Está começando agora e com muita personalidade. Ele faz palhaçadas e não é para humilhar o adversário. Na minha época, eu fazia isso porque não havia outra saída. Os adversários eram bons. Era preciso mostrar algo diferente, dar um chapéu para ganhar respeito. O Dodô é outro que ainda vai se consagrar. Espero que isso aconteça no Santos, o clube do meu coração.
O Ronaldo, da Inter de Milão, é outro jogador “diferente”?
Não. Esse é um grande caso de marketing no futebol. Já vi o Ronaldo ser comparado a Maradona, Zico e até mesmo a Pelé. Isso é um absurdo. É apenas um bom jogador, mas limitado. Só joga quando está com plenas condições físicas. Aí, ele se transforma em um tanque. Caso contrário, é apenas mais um em campo.
Hoje é mais fácil chegar à Seleção?
Muito mais. Quando fui convocado em 1981 (aos 21 anos, jogando pelo Guarani), a concorrência era maior. Eu brigava por uma vaga com Reinaldo (Atlético Mineiro), Dinamite (Vasco), Serginho Chulapa (São Paulo), Jorge Mendonça (Guarani)…
Dizem que a Seleção perdeu a Copa de 1986 porque vocês abusavam nas comemorações.
Tínhamos uma liberdade muito grande. Após os jogos, cada um ia para o seu lado, tomava sua cerveja, mas às 10h da noite todo mundo estava de volta à concentração. Não foi por isso que perdemos a Copa. Foi por falta de sorte e pelo Zico estar machucado.
Porque você não cobrou aquele pênalti perdido pelo Zico, contra a França, que eliminou o Brasil? Você já havia feito um gol de pênalti contra a Polônia.
O cobrador oficial era o Sócrates. Bati contra a Polônia mais para brigar pela artilharia da Copa. O jogo contra a Polônia já estava ganho. Se errasse, não haveria problema. Contra a França, deixamos o pênalti para o Zico mais para motivá-lo. Era um grupo unido e queríamos ajudá-lo.
Na Copa de 1990, faltou união?
É uma Copa para se esquecer. O time era bom, mas aos poucos cada um foi cuidando de seu interesse. Nós perdemos para nós mesmos.
Você exigiu o Müller como titular?
Falaram muito que isso abalou o meu relacionamento com o Bebeto, mas não é verdade. A única coisa que pedi foi a presença do Romário no grupo. Ele estava se recuperando de uma contusão. Achei que ele poderia ajudar nas próximas fases, apesar de o Lídio Toledo (médico da Seleção) ser contra. O técnico Lazaroni aceitou nossa argumentação.
Você se arrependeu por ter aberto mão de disputar a Copa de 1994?
Na verdade, pedi dispensa nas Eliminatórias porque não estava bem fisicamente e sabia que iria atrapalhar. Mas não imaginava que ficaria fora da Copa. Independentemente do título, queria disputar aquele Mundial. Só que acabei abrindo espaço para o Romário. Ele soube aproveitar o momento certo e se consagrou. Ele tem explosão, tem força e vai continuar a marcar gols por muito tempo ainda.
Como foi sua despedida em Nápoles?
Consegui reunir quase todos os jogadores que se consagraram no clube na minha época (1987 a 1993, período em que ganhou um Campeonato Italiano, em 1990, e uma Copa da Uefa, em 1989). Levei quase 50 000 pessoas ao estádio. Foi um presente à torcida napolitana.
Mas o Maradona, seu grande parceiro na Itália, não foi.
Ele tem os problemas dele, problemas na Itália, e eu não poderia forçá-lo. Também não teria lugar na arquibancada. Precisaria fazer quatro partidas de despedida para todo mundo ver o Maradona.
Que tipo de ajuda você poderia dar ao Napoli, que, hoje, não consegue sair da Segunda Divisão Italiana?
Para ser bem sincero, tive muitos problemas nos meus últimos anos no clube. O presidente (Conrado Firlaino) me jogou contra a torcida. Faltou respeito com um grupo que consagrou o Napoli. Ele não assumiu a responsabilidade quando a situação não era boa. A culpa era sempre dos jogadores, nunca dos dirigentes.
Até que ponto a máfia napolitana se envolvia com os jogadores?
Ela manda na cidade inteira, no clube, mas não nos envolvíamos com isso. Acho que, até hoje, os jogadores agem assim.
Careca e Maradona eram os donos de Nápoles, não?
O Maradona era dono de 90%. Eu ficava com os outros 10%. Acho que é um dos poucos casos onde não existiu a rivalidade entre brasileiro e argentino. Todas as quintas-feiras ele ia à minha casa para tomar cerveja, fazer uma feijoada ou um churrasco. Foi uma amizade diferente, verdadeira.
Você tentou ajudá-lo quando ele se envolveu com a cocaína?
Esse é um assunto muito particular, que importa só ao Maradona. Conversei algumas vezes sobre isso, mas ele já estava em um estágio muito avançado da dependência, difícil de se livrar da cocaína. O Diego sabe que sou contra as drogas, mas a única maneira de fazê-lo parar com isso é dando um tiro na cabeça.
Você já o viu em estado alterado?
Não. Somos amigos, mas ele nunca me ofereceu drogas. Ele só faz mal para si mesmo. Acho que a cocaína é uma saída para os seus problemas particulares, como a falta de liberdade. É um desabafo e por isso o Maradona não consegue sair dessa. Talvez, conseguisse se deixasse a Argentina e ficasse um tempo longe de tudo. No ano passado, ele veio a Campinas para a inauguração do Careca Sport Center, meu centro de treinamento, e ficou uma semana em total liberdade. Tomou cerveja, jogou futebol, tênis e não se sentiu preso. Foi uma semana maravilhosa para o Diego. Acho que falta isso em sua vida.
Quem é melhor: Pelé ou Maradona?
Pelé é um jogador sem comparações.
É difícil conviver com a fama?
É preciso muita estrutura e apoio. O Ronaldo, por exemplo. Se alguém não ajudá-lo, não sei se vai suportar esse tipo de vida por muito tempo. Ele não consegue namorar em paz. Você vê que ele não está feliz em campo. É muita cobrança. Acho que falta uma boa assessoria, que deveria ser feita pelos seus empresários. É o que eu tento fazer com os garotos que estão iniciando a carreira no Campinas ou no Careca Sport Center.
O Campinas Futebol Clube, com um ano de vida, já consegue se sustentar?
Aos poucos o clube está se estruturando. Já vendemos o passe de alguns jogadores, como o Daniel, um meio-campista habilidoso, de 19 anos, que foi para o Marítimo, de Portugal. O clube tem um bom patrocinador, o Carrefour, que só está comigo devido ao meu nome e ao do Edmar (ex-Corinthians, ex-Seleção e vice-presidente do Campinas), porque a Quinta Divisão do Paulista é uma luta. O time não tem divulgação nem aparece em lugar nenhum.
Vale a pena ter tantas divisões?
Acho que as divisões de baixo deveriam ser regionalizadas. No ano passado, dei a sugestão para que o campeonato fosse disputado apenas por garotos e os clubes aceitaram. No ano anterior, você encontrava jogadores com 32 ou 33 anos ganhando 200 reais e, muitas vezes, nem recebiam. Agora, não. O campeonato é limitado a atletas de, no máximo, 23 anos. Passamos a revelar talentos. Se o cara não conseguir jogar na B1-B (Quinta Divisão) é melhor voltar a estudar.
O que é mais difícil, jogar no disputado Campeonato Italiano ou encarar a Quinta Divisão de São Paulo?
Jogar na B1-B é fácil. Em uma partida contra o Flamengo de Guarulhos, um zagueiro disse que iria me quebrar porque eu era milionário não deveria estar ali. Chamei o cara, mostrei a imprensa no estádio e disse que ela estava lá por minha causa. Disse para o camarada que aquele seria o jogo da sua vida porque nunca mais ele iria aparecer na televisão. O coitado não seguiu meus conselhos e foi expulso.
Com a nova lei do passe, os lucros dos clubes que revelam jogadores, caso do Campinas, não irão diminuir?
Para tudo se dá um jeito. A lei vai ajudar o jogador, mas o dinheiro vai falar mais alto. Uma proposta de cem reais a mais pode tirar o craque do seu time. Para os clubes do interior, como o meu, vai ser mais difícil, porque o jogador vai ter que estourar rápido para ser negociado logo.
Por que você não aceitou a presidência do Guarani quando o Beto Zini anunciou que iria renunciar ao cargo?
O Guarani até que não tem tantos problemas. Conta, se não me engano, com uma dívida de 10 milhões de reais, e parcelada. Isso é pouco. O problema é que me deram apenas um final-de-semana para pensar e eu não poderia aceitar o cargo no escuro. Na quarta-feira seguinte, eu já teria que conseguir 180 000 reais para cobrir a folha de pagamentos. Teria que tirar dinheiro do bolso logo de cara.
O Beto Zini fez bem ou mal ao Guarani?
Fez parcerias que não concordo. Em alguns acordos, o empresário era dono de 80% do passe e o Guarani, que dava o nome e sustentava o jogador, ficava com a menor parte. A torcida já estava cansada desses onze anos com o Beto no comando. Sua saída fez bem ao clube.
Você vai apoiar o Guarani agora que o Beto Zini não está mais lá?
Devo muito ao Guarani e coloquei o Campinas Futebol Clube à disposição. Já emprestei até um jogador, o Fabinho. Quem sabe, em breve, não surja uma parceria entre os dois clubes?
Você tinha fama de amante das noitadas quando jogava no São Paulo. É verdade?
Meu pai jogou até os 40 anos (Oliveira, ex-jogador da Ponte Preta e do Comercial-SP) e era conhecido como o rei do salão (de baile, não o futsal). Eu não poderia ser diferente. Sempre gostei da noite, sempre tomei cerveja. Mas garanto que nunca cheguei atrasado a um treino por ter ficado até de madrugada em uma discoteca. O problema é que a noite de São Paulo não me deixava dormir mais cedo.
Então você é um péssimo exemplo para os alunos do Careca Sport Center e para os jogadores do Campinas.
Transmito tudo o que passei em vinte anos como jogador. Digo que eles precisam ser profissionais. Se não fumar, não usar drogas e no outro dia estiver em condições de treinar no horário certo, pode fazer o que quiser. Tomar dois litros de Coca-cola também faz mal.
Então, você não é linha dura.
O Edmar é quem dá bronca. Eu cobro dentro de campo. Participo dos treinos, sempre no time reserva, para mostrar como se faz. Mesmo fora de forma, se o zagueiro me der espaço, eu deito e rolo.
Jogar no Santos foi um sonho?
Realizei dois sonhos antes de parar. O de jogar no time do meu coração e no meu próprio clube. Posso dizer que estou realizado. Agora, meu sonho é ver um jogador do Campinas disputar uma Copa do Mundo, como eu fiz.