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Há 25 anos, PLACAR visitou Jamaica e seu ‘pastor do reggae’

Técnico brasileiro Renê Simões contou como conseguiu colacar a seleção jamaicana no mapa do futebol mundial, com a estreia na Copa de 1998

O futebol da Jamaica viveu uma semana histórica com a classificação das “Reggae Girls” na Copa do Mundo feminina, eliminando o Brasil de Marta e companhia na primeira fase. Há 25 anos, o país caribenho vivia clima de euforia semelhante, desta vez graças à seleção masculina, e com um treinador brasileiro como guru: Renê Simões, uma “espécie de pastor do reggae”, como bem definiu a edição de março de 1998 de PLACAR, durante a visita a Kingston.

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O treinador carioca, que anos mais tarde dirigiria a seleção brasileira feminina medalhista de prata nas Olimpíadas de Atenas-2004, foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento do futebol na Jamaica, que culminou na inédita classificação à Copa do Mundo de 1998, na França. Renê detalhou seus métodos na divertida reportagem assinada pelo editor Sérgio Xavier Filho e pelo repórter fotográfico Alexandre Battibugli, que o blog #TBT PLACAR reproduz na íntegra, abaixo:

O pastor do reggae

Com um jeitão de missionário, o técnico Renê Simões faz o milagre de dar força a um time indolente e coloca a festeira Jamaica no mapa do futebol mundial

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Por Sérgio Xavier Filho, de Kingston

Na noite de 3 de fevereiro, a pregação não foi como de costume. Em vez de falar dos adversários, dos perigos que se avizinhavam, o pastor preferiu mergulhar no passado. Buscou na Bíblia a imagem de Davi e de Golias, o grandão levando pedrada do nanico. Por trás do bigode do pastor, escondia-se o sorriso sarcástico de quem está provocando o seu rebanho. “Vocês não acreditam que podem derrubar o gigante?”, atiçou o pastor. “Não será impossível no momento em que vocês acreditarem que podem.” Pois nessa noite em que Miami, nos Estados Unidos, aguardava um furacão do Oceano Atlântico, o vento forte não veio e Golias tombou. A Seleção da Jamaica, o Davi da história, estreou na Copa Ouro contra o Golias, ou melhor, a Seleção Brasileira, tetracampeã do mundo. A Jamaica não só segurou o inacreditável empate em 0 x 0, como foi prejudicada pelo juizão, que fez que não viu um escandaloso pênalti no final da partida, sofrido pelo atacante Paul Hall. Dias mais tarde, o mundo descobriria que um time que empata também com a Guatemala e perde para os Estados Unidos não é tão Golias assim. E que o outro, que chega às Semifinais da Copa Ouro, também não é tão Davi assim. O pastor da história? Bem, apesar de ser presbiteriano e usar camisetas com a inscrição “Jesus salva”, o técnico da Jamaica, o brasileiro Renê Simões, não é pastor profissional. Ou pelo menos não ainda. Com os milagres que vem processando pelo Caribe, já tem muito jamaicano confundindo fé com futebol.

A Jamaica já não é mais a mesma. O país que trouxe ao mundo Bob Marley, revolucionou a musica pop mundial com a batida malandra do reggae e vendeu a imagem da maconha como ração básica do povo jamaicano anda escolhendo ídolos bem caretas.

Renê Simões em festa com atletas da Jamaica em Kingston - Alexandre Battibugli/PLACAR
Renê Simões em festa com atletas da Jamaica em Kingston – Alexandre Battibugli/PLACAR

O herói do momento chama-se Renê Simões. Sua mágica? Dirigir o time de futebol jamaicano e classificar para a Copa da França a ilha do Caribe pela primeira vez na história.
Está certo, a Jamaica não mudou tanto. O reggae toca tanto nas rádios da capital Kingston quanto o “É o Tchan” costuma monopolizar o dial brasileiro. Comprar um charuto de maconha nas ruas é tão fácil quanto encontrar um acarajé em Salvador. A diferença está na nova idolatria. O povo pede autógrafos para quem faz o diabo com a bola. Quando a Jamaica jogou um amistoso, contra a Suécia, a torcida vibrou com o lance fenomenal do meia Whitmore. Foi à loucura, porém, no momento em que uma bola foi chutada pela lateral e Simões dominou e, sem deixar cair, a devolveu para o campo. O astro do reggae, Jimmy Cliff, entrou em campo no mesmo jogo.

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Aplausos? Sim, mas só quando abraçou Simões e os jogadores. Ele pegou uma seleção indolente que levava ferro de rivais como Honduras e trabalhou em quatro frentes:
1) Disciplina: expulsou jogadores arruaceiros e chegados numa cannabis sativa.
2) Organização: mostrou para os jogadores que zagueiro também ataca e atacante também defende.
3) Mutirão: convenceu os dirigentes jamaicanos que era necessário passar o pires e arrecadar dinheiro para chegar à França.
4) Talento: percebeu que o time precisava de algo mais. Renê viajou para a Inglaterra e garimpou seis filhos jamaicanos que jogavam por lá.
“Somos a 32ª seleção das 32 classificadas para à Copa 98”, provoca o técnico. É, de fato, remota a chance de passar para a Segunda Fase em um grupo em que Argentina e Croácia devem espancar Japão e Jamaica. O milagre foi ter chegado à Copa desbancando os favoritos de sempre da América Central e do Norte.

Há três anos, o goleiro da equipe, Barrett, não passava de carregador de malas do Holiday Inn de Montego Bay, no norte da ilha. Ganhava apenas o suficiente para não passar fome. Seu reserva, Lawrence, era motorista de táxi e, como Barrett, jogava aos domingos na precária Primeira Divisão jamaicana. “É bom nem lembrar esses tempos”, fala um sorridente Barrett. Hoje o goleiro tira 3 200 dólares mensais jogando exclusivamente na seleção. Como prêmio pela classificação para a Copa, recebeu 70 000 dólares e mais um terreno para construir uma casa. Lawrence tem uma frota de táxi.
É claro que toda a história de cinderela tem seu preço. Depois da classificação, obtida em novembro, os jogadores e a Comissão Técnica (além de Simões, o preparador físico Alfredo Montesso, o assistente Walter Gama, o massagista José Luís Camargo e o treinador de goleiros Chico Santos são brasileiros) têm se submetido a um circuito de festas. Na semana anterior à Copa Ouro, foram três animados compromissos com patrocinadores. Durante a Copa Ouro, mais três festanças. Não fosse assim, a Federação Jamaicana não teria arrecadado os 4,5 milhões de dólares necessários para classificar a equipe para a Copa. O Projeto França ainda deve ficar mais caro com hospedagem na Europa, jogos amistosos etc.

Mas dinheiro não será problema. Só da Fifa a Jamaica receberá perto de 4 milhões de dólares para disputar o evento. “Os patrocinadores precisam colher o retorno com as aparições dos Reggae Boyz”, explica Horace Burrell, presidente da Federação da Jamaica. E vale a pena. Nessas festas, está incluso no preço um pequeno show dos jogadores. Liderados pelo baixinho Paul Hall, os craques improvisam uma espécie de repente nordestino em ritmo de rap.

René Simões, técnico da Jamaíca, no jogo contra a Croácia

Patrocinar uma equipe com tanto apelo não é mau negócio. A campanha lançada no ano passado –  Adote um jogador – foi um sucesso e atraiu parte dos dólares que entraram na federação. O atacante Williams é craque do Citibank; o meia Messam joga para o Burger King; Young veste a camisa da Shell; e Barrett defende a cervejaria Red Stripe. O time virou atração mundial. Jornais, revistas e emissoras de TV têm seguido a caravana do reggae por onde ela vai. No Brasil mesmo a Jamaica fez barulho. Na turnê pelo país, em janeiro, a Seleção teve jogos transmitidos pela Record e, contra o Corinthians, a audiência chegou aos 26 pontos, batendo a TV Globo.

“O pessoal da Record me disse que as pessoas queriam ver a Jamaica, e não o Corinthians”, conta Simões. É provável que a farra jamaicana termine cedo na Copa. Pode ser também que os Reggae Boyz tenham servido para fins mais nobres. Pela primeira vez na história, os jamaicanos têm achado mais graça em ver uma bola rolando do que acompanhar os tradicionais jogos de críquete. Quanto ao pastor Simões, um futuro diferente se avizinha.

Ao se tornar o milagreiro do Caribe, esse ex-técnico do Catar e de seleções de base do Brasil passou a valer mais do que os 30 000 dólares mensais que recebe dos jamaicanos. Simões tem admitido a amigos que acharia imoral ganhar mais do que isso em um país miserável como a Jamaica. Seu caminho deve ser, depois da Copa, o futebol inglês, de onde tem recebido sondagens. É o pastor Simões procurando novas ovelhas para o seu rebanho.

Rápidos e ingênuos

Qual é a verdadeira Jamaica? A que fez bonito na Copa Ouro ou a que apanhou em janeiro perdendo cinco dos sete jogos numa turnê pelo Brasil?
” Força Inglesa – Antes de tudo, é preciso lembrar que seis jogadores que atuam na Inglaterra não puderam jogar no Brasil.
” Craques – O atacante Burton, que joga no futebol inglês, é chamado de “Ronaldinho dos pobres”. Mas o melhor do time é o meia Whitmore. Habilidoso, ele dá a cadência do time, ainda que seja um tanto desligadão. Inexperiência – Eles são fortes, rápidos, sabem tocar a bola. O problema é a tradição de perder. “Eles entregam jogos porque não estão acostumados a ganhar”, afirma Simões.
” Tática – A estrela do time é o esquema tático. Quando se defende, a equipe joga em um 4-4-2 e, quando ataca, vira um 3-5-2. O curioso é que as peças dos dois esquemas não são fixas. Há uma rotação constante de jogadores e o zagueiro pode virar de repente atacante. “Se não fizermos algo diferente na Copa, ficaremos apanhando na defesa”, diz Simões.

Abaixo de zero

Vivendo sob um calor de 30 graus centígrados, quatro jamaicanos resolveram disputar uma competição de trenó no gelo na Olimpíada de Inverno de 1988. Essa é a história do filme Jamaica abaixo de zero. O que começou como extravagância virou coisa séria. Quatro velocistas jamaicanos se tornaram feras. “De 1992 para cá, disputamos todas as competições e ficamos em 14º nos Jogos de 1994, à frente até dos Estados Unidos”, conta Ricky McIntosh, o responsável pelo freio do trenó que atinge quase 130 km/h. Ricky vive em Kingston e admira o time de futebol. “Eles começaram com o mesmo descrédito que nós e chegaram lá.”

 

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