Há 10 anos, Hernane brilhou no Flamengo campeão da Copa do Brasil
Edição de dezembro de 2013 narrou a trajetória do "Brocador", artilheiro e xodó da torcida rubro-negra; leia reportagem na íntegra
O Flamengo está novamente na final da Copa do Brasil e vai em busca do pentacampeonato da competição. Há dez anos, contra todos os prognósticos, o clube carioca ergueu a taça justamente no primeiro ano da gestão que pregava maior responsabilidade financeira e culminaria no momento atual de “vacas gordas” na Gávea. Com um elenco mais modesto, o Flamengo contou com o brilho de um artilheiro nato: Hernane, o “Brocador”, protagonista da reportagem de capa da PLACAR de dezembro de 2013.
No perfil escrito pela repórter Flávia Ribeiro, o atacante, descrito com “um artilheiro bem a gosto da torcida rubro-negra, com mais raça, coração e sorte do que propriamente habilidade”, conta detalhes de sua trajetória, incluindo as poucas chances que recebeu no São Paulo em seu início de carreira.
Ele também contou a origem do apelido “brocador” e exaltou sua sintonia com as redes do Maracanã. O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, reproduz na íntegra a reportagem com Hernane, abaixo:
Por Flávia Ribeiro, com foto de Daryan Dornelles
Em 2010, dona Merieme Vidal de Souza, hoje com 53 anos, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) e ficou internada em estado grave em um hospital de São Paulo. O primeiro pensamento de seu filho do meio ao chegar para visitá-la foi: “Vou largar tudo e ficar aqui cuidando da minha mãe”. Assim que acordou e soube da ideia do filho, dona Merieme o mandou voltar ao trabalho. “Vamos à luta, meu filho!”. Ele obedeceu. Para sorte da torcida do Flamengo, que, graças ao conselho, hoje pode contar com os gols de um Hernane iluminado.
“Eu senti que, com a mãe doente, era o sustento da família. Era eu que pagava o aluguel, que botava comida em casa. Estava passando por um momento difícil na carreira, não estava com a cabeça boa. Mas precisava continuar”, conta o goleador do novo Maracanã. Um artilheiro bem a gosto da torcida rubro-negra, com mais raça, coração e sorte do que propriamente habilidade. Na fase atual, parece que é só a bola bater nele que entra no gol adversário.
Mas para o técnico rubro-negro, Jayme de Almeida, a palavra que explica o sucesso do centroavante é dedicação. “O que eu acho fantástico no Hernane é que ele é um garoto que está sempre lutando pelo espaço dele, que trabalha duro mesmo quando não está jogando e que quer ajudar. Ele não é um jogador de grande habilidade, bom de drible, mas tem um ótimo senso de colocação na área, é um cara que define. E tem uma coisa que pouca gente comenta: ele tem grande importância tática, porque ajuda a atrasar o contra-ataque marcando os volantes. Tem enorme boa vontade para voltar e cumprir essa função e está muito bem preparado fisicamente, justamente pelo seu trabalho incansável”, analisa.
Até 12 de novembro, o Brocador já tinha 16 gols em 16 jogos no Maracanã, média de um por partida. E são gols com gostinho especial. Em 2001, aos 15 anos, Hernane teve a oportunidade de conhecer o Maracanã em uma visita com a AABB de São Paulo, onde trabalhava catando bolinhas de tênis e pela qual jogava o Interclubes de futebol. Andou pelas arquibancadas e pensou: “Será que um dia vou jogar aqui?”. A cada gol que entra, ele se pergunta por que seu faro é tão bom no estádio. “Queria descobrir. Acho que tem algum ímã que chama gol meu no Maracanã”, brinca.
Também até o fechamento desta edição, o atacante era forte candidato a ganhar a Chuteira de Ouro, prêmio dado por PLACAR ao artilheiro da temporada brasileira. Hernane já é o maior goleador do Flamengo num ano desde 1999, quando Romário marcou incríveis 48 gols. “E olha que fiquei 12 jogos sem entrar quando o Moreno chegou. (Quem sabe eu não teria chegado mais perto dos 48 gols do Romário?”, questiona Hernane.
A pergunta é feita sem indício de marra. Hernane fala baixo, devagar. Para a mãe, às vezes é tranquilo até demais. “Eu vivia ligando para ele depois de ver entrevista na TV para mandá-lo parar com aquela timidez. Tem que falar mais! E ele sempre me respondia: “A senhora é que fala demais, mãe”. Mas agora ele está falando melhor. Tenho ligado para dizer como ele falou bem e como ele fica bonito na televisão”, derrete-se dona Merieme.
Quando criança, o apelido de Hernane em Bom Jesus da Lapa, cidade onde nasceu, na Bahia, não era Brocador, e sim Neném. O irmão mais velho, Elândio, o chamava assim e logo toda a vizinhança acompanhou. Aos 8 anos, Hernane passou a morar com a avó, Manoelina, porque a mãe se mudou para São Paulo, para tratar um problema de saúde. Elândio e o caçula, Neilândio, a acompanharam pouco depois, mas Hernane não teve coragem de deixar a avó sozinha. “Todos os netos chamavam a vovó de Mãe Neca, porque ela cuidava da família toda. Fiquei muito dividido, porque sentia falta da minha mãe”, lembra.
To be or not to be
Aos 12 anos, os irmãos avisaram: se ele não fosse para São Paulo, a mãe ficaria ainda mais doente, de tanta saudade que sentia. Neném foi e virou To Be (verbo ser ou estar em inglês) alguns anos depois. Tudo porque era o único menino entre todos os colegas da escola estadual onde estudava, no bairro pobre de Jardim São Luís, que fazia cursinho de inglês. Levou o apelido para a várzea, onde jogava bola no time CDHU Jardim São Luís, enquanto tentava peneiras. Foram sete, em times como Palmeiras, Juventus, Guarani e São Paulo. Durante esse período, trabalhou como ajudante de pintor e como boleiro das quadras de tênis da AABB.
“Às segundas, o clube fechava, aí os funcionários podiam praticar esportes. Aprendi a jogar tênis lá, e olha que eu até levo jeito. Nas folgas, uma das coisas que mais gosto de fazer é jogar com o Adryan [colega de Flamengo]. Tem uma quadra no condomínio do pai dele”, conta Hernane, que só não gostava de dividir as tarefas domésticas com
“ irmãos. “Ele fazia de tudo para não lavar a louça. Sempre me dizia: “Mãe, eu vou ser craque de bola, tenho que me concentrar nisso, não posso “ajudar em casa’. Ou falava para o irmão mais novo: “Faz para mim que te dou 1 real’ E o pior é que ele sempre me driblava mesmo”, diz dona Merieme.
Em 2007, teve sua primeira grande chance: estava com seis gols em seis jogos pelo pequeno Atibaia quando Edson Mendes, o Tupã, olheiro do São Paulo, foi observar um volante do time adversário do Atibaia. Voltou avisando que o volante não tinha condições de ir para o clube, mas que um atacante chamado Hernane merecia ser observado.
Brocador
Começou aí uma rotina na vida do Brocador: começos e recomeços. Hernane não é mais um menino. Tem 27 anos. Nos últimos seis anos, se acostumou a cavar seu espaço em cada time, sem reclamações. Sem chance no São Paulo, o atacante foi emprestado para o Rio Preto em 2008, o Toledo em 2009 e o Paulista de Jundiaí em 2010 e 2011. “Apareci bem no Paulista, fui artilheiro do time nos dois anos. Voltei para o São Paulo, novamente sem chance, e percebi que minha carreira precisava andar. O São Paulo queria renovar comigo, mas escolhi sair. Sou muito grato ao São Paulo, que foi fundamental na minha forma. Não aprendi fundamento lá. E entendo não ter tido uma chance naquele time, que era muito bom, estava muito certinho. Fui para o Paraná disposto a recomeçar do zero, mas não fiz um bom campeonato. Foram só dois gols em 17 jogos”, lembra.
Hernane conversou com a mãe e o tio, trocou de empresário e resolveu, de novo, começar do zero. Foi para o Mogi Mirim com o sonho de ser artilheiro do Paulistão em 2012. Botou essa ideia na cabeça e só não conseguiu porque Neymar ainda estava no Santos e marcou 20 gols, enquanto ele ficou na vice-artilharia com 16. Mas, naquela época, ele não era ainda o Brocador – palavra que, no dicionário, significa “aquele que corta mato”, e que no linguajar informal do futebol nomeia um goleador como Hernane, que acha espaço em campo e “fura” a rede (broca é a peça da furadeira que abre o rombo na parede).
Nem era mais o To Be ou o Neném. Era só o Hernane. A não ser para o goleiro Fabiano, hoje no Porto, com quem jogou no Toledo, em 2009. “Ele deu o apelido, mas só ele e o outro goleiro, Leo, me chamavam assim. Só agora, anos depois, virei Brocador de vez”, conta.
E não foi de uma hora para outra. “Também cheguei no Flamengo disposto a recomeçar do zero”, comenta. Para o treinador rubro-negro, Jayme de Almeida, essa humildade de Hernane nas suas tentativas de encontrar um lugarzinho em cada time a que chega explica seu sucesso com a torcida do Flamengo. “Ele chegou na dele, caladinho, sem badalação. Como o Paulinho. Os dois trabalharam duro, sem reclamar, para conquistar um espaço no time e o coração do torcedor. E torcedor gosta quando vê jogador dar a vida pelo grupo”, afirma Jayme.
Agora Hernane até quer um pouquinho de badalação. Sentiu que 2013 é seu ano. É reconhecido nas ruas, destaque do time mais popular do país. Sonha terminar a temporada como artilheiro e campeão da Copa do Brasil (até o fim desta edição, o Flamengo estava na final com o Atlético-PR), goleador da temporada e do Maracanã. Sonha até com seleção. E ainda tenta a artilharia do Brasileiro. Até a 33º rodada, estava na segunda posição, com 14 gols, empatado com Gilberto (Portuguesa) e William (Ponte Preta), atrás de Éderson, do Atlético-PR (17 gols). Se conseguir, vai se juntar a uma lista de goleadores inesperados do Brasileiro, como Dimba (Goiás, 2003) e Dill (Goiás, 2000).
Mas Hernane diz que, se precisar, corre atrás de novos recomeços na carreira. Sempre com a bênção de dona Merieme. No braço, a tatuagem diz: “Mãe, amor eterno”. Em campo, os gols são para ela e para Denise, sua mulher.