Em 1978, Muricy Ramalho era tratado como ‘eterna promessa’ do São Paulo
Vitorioso como treinador, cria tricolor foi badalado no início dos anos 70 e cogitado como "sucessor de Pelé", mas lesões atrapalharam
Antes de se tornar um dos grandes treinadores do futebol brasileiro, Muricy Ramalho também teve uma trajetória marcante dentro das quatro linhas. Prodígio das categorias de base do São Paulo e tratado desde as categorias infantis como uma estrela em potencial, a ponto de sua presença levar 20.000 pessoas a um campo de rua durante um torneio de 1969, quando ainda tinha 13 anos, o meia-atacante cabeludo foi lançado profissionalmente muito jovem. Mas nem sempre correspondeu às expectativas, como confirmam páginas históricas de PLACAR.
Tratado como um dos “sucessores de Pelé” à época, o meio-campista habilidoso, franzino e de visual rebelde se destacou no título do Campeonato Paulista de 1975 e ganhou ainda mais fama, com direito a uma reportagem especial redigida por Carlos Maranhão na PLACAR de 24 de outubro daquele ano.
A decepção, porém, foi proporcional à expectativa e Muricy foi perdendo espaço em 1976. No ano seguinte, as coisas pioraram, com direito a uma grave lesão no joelho direito, o que afastou o jovem dos campos por longos meses, inclusive da campanha do título do Brasileirão de 1977.
Sem grade sequência no Tricolor após o problema físico, o meia-atacante se transferiria ao Puebla, pelo qual conquistou o Campeonato Mexicano, e ainda teve curta passagem pelo América do Rio de Janeiro, até encerrar sua carreira aos 30 anos, com aquela sensação de que “podia mais”.
Pouco antes de deixar o Brasil, a volta por cima era um sonho de “Murici” (à época seu nome era grafado com I no final), como mostra reportagem de PLACAR de 16 de dezembro de 1978, escrita por José Maria de Aquino. O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera algum tesouro de nossos arquivos, reproduz abaixo a reportagem na íntegra:
A volta do craque do futuro
Em meio a tantas contusões, o São Paulo recupera um jogador que muitos consideravam acabados: Murici, 23 anos. Após ano e meio de ausência, ele continua sendo promessa
José Maria de Aquino
Bastaram 27 minutos para Murici mostrar que continua vivo, inteligente, correndo rápido pelo alegre caminho da volta. E para sentir o quanto amadureceu nesse ano e meio de solidão, longe da bola e sem que alguém lhe desse a certeza de uma recuperação total.
Enfrentou contra o Marilia e fez tudo o que Minelli lhe pediu – jogar o seu futebol, dar maior mobilidade ao ataque, ser inventivo e partir sempre para o campo adversário.
Depois, foi a festa no vestiário. Os abraços dos companheiros, de diretores, de torcedores e, entre eles, de gente que há muito tempo não o cumprimentava. De gente que durante seu tempo de recuperação, com a perna gessada, dado como acabado para o futebol, passava de longe, esquecendo-se da época dos tapinhas nas costas, dos elogios ao garoto prodígio.
“São uns coitados. Eu podia ter-lhes virado o rosto, falado que não precisava de seus abraços, mas fiz algo diferente. Respondi legal a todos eles. Para falar a verdade, eu até agradeço. Eles não sabem, mas, mesmo sem querer, me ajudaram muito. Ajudaram-me a pensar, a analisar as coisas e a ficar mais maduro. Não estou bronqueado, apenas estou mais tranquilo, sabendo separar os amigos de todas as horas daqueles que só aparecem nas boas.”
Murici acabou de treinar e não sentiu nada. Nem mesmo um pouco de cansaço, o que seria natural. Cortou o cabelo bem mais curto, está mais magro, no seu peso
ideal, 67 quilos, parece ate um pouco mais alto – sem qualquer alusão ao técnico Minelli.
“Não tenho pressa. Quem esperou um ano e meio pode esperar mais um pouco. Confio no Seu Minelli e acho que ele está fazendo as coisas certas. Prefiro mesmo ir entrando aos poucos. Tenho que voltar a me acostumar com o público e com os companheiros”.
Perdendo o medo
Fisicamente, Murici já está bem há uns seis meses. A equipe do Dr. Bartolomeu Bartolomei, a mesma que operou Mirandinna e Osmar, fez milagres em seu joelho direito, com os ligamentos cruzados estourados num lance isolado em julho do ano passado. De lá para cá, seu problema era apenas psicológico. Murici precisava perder o medo de entrar em jogadas mais duras, e isso sempre demora um pouco.
“Eu sabia desse problema, queria vence-lo, mas não conseguia. A perna direita não obedecia minhas decisões e eu fui vendo que não adiantava forçar. O drama maior era não poder jogar. Felizmente com aquela seleção paulista que andou pela Ásia, África e Europa, e lá, longe da
torcida e dos companheiros, enfrentando todo tipo de adversário, acabei com o medo e me reencontrei.”
Tecnicamente, Murici nem chegou a ir muito bem. Não se firmou como titular, mas brigou muito e o relatório pedido por Minelli e feito pela comissão técnica da seleção detalhou bem todas as suas reações.
“Além disso, me ajudou muito amadurecer ainda mais. Foi como recomeçar do nada, sentando no banco e lutando para entrar em todos os jogos, mesmo que fosse apenas por alguns minutos. Era a última lição que eu precisava aprender para poder me considerar um outro homem e um outro jogador.”
As outras lições, Murici as aprendeu tomando uma atitude que poucos jogadores, quando contundidos, aceitam tomar. Durante todo esse tempo em que ficou de fora frequentou o clube, vendo os treinos e assistindo a todos os jogos.
“Eu não perdi um unico jogo esse tempo todo. la ao estádio e corria para casa para ver os teipes. Era preciso, era um jeito de participar. Sou muito apegado à moçada e, como todos viviam me incentivando, eu tinha que aceitar o desafio. Eu não fugi, não fui me esconder, embora muita gente tenha fugido de mim. Uns coitados.”
Murici ganhou em força, em coragem e ganhou novas amizades. Gente fora do futebol, que não se aproximava dele apenas para se dizer amiga ou ídolo do garoto que começou nos dentes-de-leite, que chegou ao time de cima antes dos 20 anos, e que tinha todo o direito de sonhar com a Seleção Brasileira.
“Isso serviu para mim e, por incrível que possa parecer, serviu também para os meus amigos de verdade. Eles ficaram sabendo que a vida de jogador de futebol não é tão fácil quanto parece.”
E, para mostrar que não existe bronca, que tudo não passa de um desabafo, próprio de quem se sente mais maduro, Murici faz questão de ressaltar a posição do São Paulo, principalmente do ex-presidente Henri Aidar.
“Ele sempre confiou em mim e sempre me deu a maior força. Um dia ele ficou sabendo que não me estavam pagando os bichos e deu ordem para que colocassem tudo em dia. O São Paulo não estava obrigado, mas ele decidiu diferente e eu fiquei mais são paulino ainda. Depois, mesmo com a perna gessada, ele reformou meu contrato, me deu um bom aumento e, sabendo que eu precisava, adiantou um bom dinheiro. Espero que o atual presidente seja igual a ele.”
Os primeiros passos já foram dados. Murici voltou bem, marcando gols, e seu contrato já foi renovado como ele queria, por um ano.
Variando o ritmo
Agora é só provar que não esqueceu o futebol que levou Pedro Rocha a considerá lo um dos melhores meias do Brasil. “Um jogador que sabe variar o ritmo do jogo, que muda as coisas, que quebra o gelo, atacando de surpresa e que é atrevido, como deve ser todo bom atacante.”
“Quanto a isso não vai haver problema. Vou voltar até melhor do que antes. Vi muitos jogos, estudei e vou corrigir coisas que fazia errado”
Entre ele e Minelli também está tudo em ordem. Um dia, contaram uma historia mal- contada, mas tudo já foi esclarecido. Murici participava de um desses jogos de férias, em Bauru, e Minelli, estando lá, brincou com ele, dizendo que gordinho daquele jeito ele não jogaria no seu time.
“Murici é um grande jogador e, em forma, joga em qualquer time bom. Inclusive no meu”
Os dois nunca conversaram sobre tamanho nem gordura. No inicio, Murici ficou no banco apenas porque não estava em boa forma física e porque Minelli o queria jogando numa faixa do campo diferente da que ele estava acostumado.
“Também nesse ponto tudo vai ficar certo. Acho que Minelli é um técnico inteligente e que deve colocar o bom futebol acima de qualquer outra coisa. Eu não poderia ser um dos volantes, porque para ali o bom mesmo são dois homens fortes. Mas na frente posso jogar bem e até com vantagens, porque não preocupo me preocupar com a marcação. Posso fazer mais ou menos como o Paulo César Carpeggiani fazia no Internacional.”
Enquanto isso, Murici vai curtindo duas satisfações: ver que seu irmão Maurício, com sua ajuda, já se formou em medicina, que o outro, Mário, já pode continuar juntando recortes de jornais que falam dele. Recortes que ele releu muito nesse ano espera.”