Ela e mais dez: em 1972, PLACAR perfilou pioneira do futebol feminino
Claudina Vidal era atacante do Sud América, do Uruguai, e jogava num time só de homens. Sua história é um mergulho em machismo e preconceito
PLACAR recuperará reportagens antigas que ajudaram a construir a história da revista – revisitadas aos olhos de hoje, para que sejam entendidas em seus contexto original. Nesta edição, lembramos um tempo em que não havia futebol feminino profissional – mas uma mulher jogava por um time uruguaio ao lado de homens.
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“Ela é a única mulher do mundo que joga num time de homens, um show inédito. Longe de ter intimidade com a bola, não é otária e corre noventa minutos sem parar.” Foi assim, com um misto de preconceito e espanto, que PLACAR apresentou aos leitores Claudina Vidal, camisa 9 do time uruguaio Sud América. A ideia original da pauta era acompanhar um jogo contra o Operário Futebol Clube, da cidade gaúcha de Alegrete, próximo à fronteira com o Uruguai. Ao chegar lá, o repórter Roberto Appel teve a ideia de pedir ao técnico do time brasileiro para entrar em campo para viver por inteiro a experiência de conhecer essa pioneira do futebol feminino.
O relato de Appel, publicado na edição da revista com data de capa de 24 de março de 1972, é no mínimo curioso (e em alguns momentos tristemente engraçado), se cotejado com os o humores de hoje. “Tomei a decisão na hora do almoço”, escreve ele. “Queria marcar Claudina Vidal, observar de perto suas reações, seus gestos, seus gritos, seu comportamento em campo.” O repórter confessa que havia comido (e bebido) muito, mas o treinador do Operário concordou em deixá-lo entrar em campo no início do segundo tempo, com calor de 30 graus à sombra.
“Claudina só joga pela direita – e eu não larguei a dona um minuto. Ela começou a se movimentar mais, e eu atrás. Disse: Perdão, Claudina, quero apenas te observar um pouco, tirar umas fotos ao teu lado. Não estás cansada ainda?. Ela gozou: Eu posso correr 180 minutos, não canso nunca.” O jornalista zagueiro resistiu apenas catorze minutos em campo, “em meio aos apupos da torcida (Sai de perto dela, vagabundo; larga a mulher, cabeludo; não tens vergonha na cara?)”. Saiu, quase desmaiou de tanto cansaço e precisou ficar vinte minutos deitado na pista de areia para se recuperar.
Na reportagem, Appel é implacável. “Se o público – que deu uma renda de Cr$ 4000,00, excelente para Alegrete – fosse mais exigente, teria reparado que Claudina não joga lhufas”, sentencia. “Mas o que interessava mesmo era ver a mulher no meio dos marmanjos. E isso o pessoal estava vendo, pela primeira vez na vida. Não havia fraude.” A atleta é apresentada mais ou menos como uma atração circense. Um dos organizadores do jogo, Carlos Etchevarría, explica, sem meias palavras: “Estamos oferecendo um show inédito. Nunca dissemos que Claudina joga bem. Nossas apresentações baseiam-se em Claudina, a mulher que joga num time de homens, e não em Claudina, a mulher que sabe jogar futebol”. Além disso, havia uma preocupação explícita em evitar o contato. “Não que ela tenha medo, mas nós não podemos nos arriscar, porque uma contusão acabaria com um plano que levou vários anos para ser posto em prática.”
Os promotores do “espetáculo” falam sem nenhum pudor dos “trambiques publicitários” para atrair público. “Muita gente duvida que Claudina Vidal seja mesmo mulher – ou, no mínimo, que seja feminina”, prossegue a reportagem. “Etchevarría e Arturo Vidal, técnico do time e primo de Claudina, garante que ela não é mulher-macho. Eles vêm dizendo isso desde o início de 1970, quando resolveram lançá-la na equipe, como uma maneira de projetar o clube e (não escondem) ganhar algum dinheiro.”
Inadvertidamente, a história de Claudina expõe o preconceito com que as mulheres eram tratadas no meio futebolístico. Vale lembrar que, no Brasil, um decreto-lei publicado em 1941 proibia a prática do futebol feminino – seria revogado em 1979, ainda ontem. Nas últimas quatro décadas, muita coisa avançou, mas há um longo caminho para garantir mais popularidade e, sobretudo, mais dinheiro ao futebol feminino brasileiro.
Por mais que a sociedade brasileira ainda seja bem conservadora em diversos aspectos, não dá para negar que muita coisa mudou nestes quase cinquenta anos, desde a publicação de “Eu marquei Claudina”. Ler o texto hoje causa muita estranheza. E, entre tantas ironias e piadas que atualmente já não têm mais graça, um quadro publicado na reportagem chama ainda mais atenção. É difícil não se espantar com o show de machismo de “E o massagista?”. A seguir, a íntegra do que foi publicado em 1972.
“Com 37 anos, gordo e alegre, Ruben Bolfarini tem uma posição privilegiada na equipe Sud América: é o massagista, o único com autorização para meter a mão nas coxas de Claudina Vidal.
Há mais de seis anos no clube uruguaio, demonstra o maior respeito por Carlos Etchevarría e Arturo Vidal, e fica um pouco encabulado quando fala no assunto. Tenta disfarçar:
– Para mim Claudia é homem, igual aos outros.
Depois cede e confessa, quase sussurrando, que um homem normal sente a diferença:
– Nós todos fomos preparados para aceitá-la sem distinção, porque todos devem ter o mesmo tratamento. Mas é só tocar suas coxas lisas, mesmo de olhos fechados, que tudo muda. Os homens exigem o máximo respeito, e eu acho que estão certos, mas isso não impede que eu sinta alguma coisinha. Afinal, não sou boneco.
Claudina, deitada na mesa de massagens, parece satisfeita com o tratamento que recebe de Ruben Bolfarini.”
Por mais que tenha sido enviado de Porto Alegre a Alegrete para fazer a reportagem, Roberto Appel deixa claro que “é quase impossível chegar perto de Claudina, a não ser na hora da entrevista coletiva – na qual, na verdade, quem fala mais é Carlos Etchevarría”, o agitado empresário da atleta. As perguntas, muito mais do que as respostas, seriam um espetáculo constrangedor em 2020.
“Nome? Claudina Vidal, 20 anos, 1,78 metro, 62 quilos.
Tens namorado? Não, não gosto de ninguém.
Qual o tipo de homem que preferes? Detesto cabeludos. Mas não adianta falar, porque não tenho nenhum homem.
Tua vida social, como é? Vou ao cinema, a bailes. Mas já faz tempo que isso não acontece, porque preciso me cuidar para estar sempre em forma.
Quando estás com a bola e o adversário tenta tirá-la, o que fazes? (Silêncio dos jornalistas na sala de entrevista, Carlos Etchevarría pega a palavra.) Ora, ela tenta o drible. Não é isso, Claudina?
Como é que dominas a bola no peito? Sem problema nenhum. Cuido apenas que a bola seja aparada pouco abaixo do pescoço.
Não tens medo de levar uma bolada nos seios? Procuro me proteger cruzando os braços quando a bola é chutada contra mim. Mas os homens também têm de proteger certas partes, não é?
Um adversário nunca tentou brincar contigo, fazer carícias durante o jogo? Eles não têm coragem para isso, me respeitam. Sabem que o resto do time reagiria em minha defesa. Assim, quase nunca sou molestada em campo.
Como fazes quando estás menstruada? (Silêncio novamente, Etchevarría a socorre.) Nós controlamos tudo e sabemos perfeitamente quais os dias em que não podemos contar com Claudina. Cuidamos para não marcar jogos que coincidam com isso e a poupamos nos treinos.
Trocas de roupa junto com os homens? Sempre saio uniformizada do hotel. Primeiro visto um maiô preto bem justo, para firmar o corpo e os seios, e depois a camisa cor de laranja (nº 9) e o calção preto.
Tomas banho depois do jogo? Só vou tomar banho mais tarde, no hotel. Saio de campo, visto minha calça preta e minha blusa estampada por cima do uniforme e vou para o hotel.
Por que não te pintas, como toda mulher? Não gosto de pintura. Em campo, não tem o menor sentido. Como estou sempre treinando, perderia muito tempo com isso. Aliás, não acho que a mulher deva se maquiar, cada uma faz o que bem entende.
Claudina, és virgem? Claro, ainda não gosto de ninguém, só de jogar futebol.
Matéria publicada na edição impressa 1462 de PLACAR, de abril de 2020