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Do Carandiru para a seleção: a história do lateral César nas páginas de PLACAR

Em 2001, reportagem narrou a trajetória de drama e superação do jogador que fez história pelo São Caetano nos anos 2000

Imagine se em um intervalo de pouco mais de um ano, uma pessoa passasse de atuar por peladas em um presídio para vestir a camisa da seleção brasileira. Pois foi exatamente o que aconteceu com o lateral-esquerdo César, que brilhou há pouco mais de duas décadas, especialmente com a camisa do São Caetano. Em fevereiro de 2001, PLACAR narrou sua história de drama e superação, meses antes de ele receber o chamado da equipe canarinho.

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Condenado por participar indiretamente de um assalto a um dirigente do Juventus da Mooca, clube que defendia na época, César permaneceu um ano e cinco meses detido, incluindo uma passagem pela famosa penitenciária do Carandiru. Elogiado por seu bom comportamento, arrependido de seus atos e, enfim, liberado, ele teve uma carreira brilhante.

Pelo Azulão, César foi vice-campeão brasileiro em 2000 e 2001, e posteriormente vendido ao futebol italiano (passaria por Lazio e Inter de Milão). Sem tanto êxito, ainda defendeu o Corinthians entre 2006 e 2007, antes de encerrar a carreira por clubes pequenos da Itália.

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O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nosso arquivo, transcreve, na íntegra, o perfil de César assinado pelo jornalista Arnaldo Ribeiro.

César, do São Caetano, durante a final da Copa João Havelange de 2000 - Ricardo Correa/PLACAR
César, do São Caetano, durante a final da Copa João Havelange de 2000 – Ricardo Correa/PLACAR

Memórias do cárcere

O lateral-esquerdo do São Caetano passou pelo inferno do Carandiru, mas deu a volta por cima jogando muita bola. Hoje, ele pode dizer: vim, vi e venci

Por Arnaldo Ribeiro (Colaboraram Eduardo Cordeiro e Fabio Volpe)

Roberto Archiná foi chamado à delegacia para reconhecer os dois homens que, dias antes, o haviam assaltado no estacionamento do Juventus, na rua Javari. Vários rostos desfilaram à sua frente pela janelinha por onde as vítimas identificam os criminosos, sem que Archiná apontasse alguém. De repente, o diretor juventino teve um choque ao ver o último a passar: ” Espera aí! Esse é meu jogador! Vocês estão de brincadeira! Não estavam. Quem estava ali era César Aparecido Rodrigues, lateral-esquerdo de seu time.

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Na época, 1994, o jogador tinha 19 anos e já mostrava talento, tanto que estava para se transferir para o Grêmio. O Juventus tinha garantido o retorno à primeira divisão do Campeonato Paulista para a temporada seguinte. Para comemorar, a diretoria marcou um churrasco, no qual os jogadores dividiriam um prêmio de 100 mil dólares. César comentou isso com dois amigos, Ricardo Cordeiro Santana e Paulo José Câmara da Rocha, o Leco. Logo surgiu a idéia: por que não ficar com o dinheiro?

César não participaria, claro. Deu apenas a descrição do diretor que levaria o dinheiro para o churrasco. Do resto cuidariam Leco, que arranjaria uma arma, e Ricardo. Os dois foram à rua Javari no dia 16 de maio, mas o clube estava fechado. Voltaram no dia seguinte, e dessa vez não houve erro. Quando Archiná chegou ao estacionamento do Juventus e desceu do carro, foi abordado. Leco apontou o revólver, Ricardo pegou a maleta que guardava os 100 mil dólares. Os dois fugiram a pé e dividiram a bolada no mesmo dia. Leco ficou com 34 mil, Ricardo e César com 33 mil cada.

Em poucos dias a polícia pôs as mãos nos três cúmplices, que deixaram pegadas monstruosas. Leco comprou uma motocicleta no dia seguinte e um Kadett para César (o carro foi posto no nome do irmão de César). Ricardo também comprou um Kadett, para ele mesmo, e pôs no nome da irmã. Todos foram pagos com dinheiro vivo. Cada carro custou cerca de 11 mil dólares. Foi a partir deles que o investigador de polícia José Augusto Rodrigues chegou aos três. Ele entrou em contato com alguns vendedores de automóveis, procedimento de rotina para encontrar pistas sobre quem andou esbanjando dinheiro. Três vendedores de veículos lhe deram dicas preciosas: uma moto e dois carros haviam sido comprados recentemente com dinheiro vivo. Rodrigues não tardou a achar Ricardo, Leco e César.

Pego com o Kadett comprado por Leco, César confessou tudo ao investigador. No primeiro depoimento em juízo, porém, negou a participação no crime. Disse que Leco pôs o Kadett no nome do irmão de César só para incriminá-lo, o que não convenceu a polícia. Depois assumiu o erro, o que vem fazendo com muita coragem até hoje, apesar de ” compreensivelmente ” não gostar de tocar no assunto: “Eu errei. Foi um vacilo, o único na minha vida, mas o suficiente para me marcar”, diz o jogador do São Caetano, que simplesmente não sabe explicar os motivos que o levaram a participar disso. Na época, César vivia numa casa humilde em Itaquera e não sabia que iria se transformar no lateral-esquerdo de sucesso que é hoje. Mesmo assim, garante que nunca passou por grandes necessidades e que sua família sempre lhe deu o que precisava para viver modestamente.

O lateral ficou preso por dez dias e foi liberado para aguardar o julgamento em liberdade. Apesar de não estar presente no momento do assalto, foi acusado da mesma forma: para a lei, não é preciso estar presente em todas as etapas de um roubo para ter participado dele. Enquanto aguardava o julgamento, César conseguiu que o Juventus liberasse o seu passe. Com um processo nas costas, ficava difícil arrumar um clube para continuar jogando. Em 1995, porém, ele acertou com o Catanduva Esporte Clube, então na segunda divisão paulista, e defendeu o time por alguns meses. No ano seguinte, o Catanduva foi extinto e César ficou novamente desempregado.

A primeira sentença do processo saiu em setembro de 1996: os três réus pegaram cinco anos e quatro meses de reclusão. A pena deveria ser cumprida em regime semi-aberto. Ou seja: César poderia, pelo menos, continuar jogando futebol, a única coisa que sempre soube fazer. Os advogados de defesa e de acusação recorreram da sentença. César continuava em liberdade, aguardando novo julgamento. Quem reabriu as portas para ele foi o pai do lateral-direito Ânderson Lima – ex-Santos e que hoje está no Grêmio. O pai de Ânderson já tinha visto seu filho e César atuando juntos no Juventus e conseguiu um teste para o lateral-esquerdo no Azulão no fim de 1996. César ainda estava em liberdade, aguardando a revisão da primeira sentença.

O técnico do São Caetano era Fedato. O auxiliar, Luís Pereira. César abafou no primeiro treino. Quando Luisão disse para ele voltar no dia seguinte, bateu aquele peso na consciência. “Ele abriu o jogo comigo. Contou tudo o que havia acontecido, que tinha um processo nas costas, essas coisas. Gostei da atitude, da sinceridade dele e convenci a diretoria da necessidade de dar uma chance”, afirma Luís Pereira. “Eu poderia ter omitido uma coisa ou outra, mas não. Contei tudo e acho que aí ganhei a confiança do pessoal do São Caetano. Mesmo sabendo do risco que corriam, eles compraram o meu passe”, lembra César.

Além de Luís Pereira, o jogador é eternamente grato a José Carlos Molina, um dos donos da Datha Representações, empresa que até o ano passado tinha uma co-gestão com o São Caetano. Segundo o craque, Molina ” que na época era diretor de futebol do clube ” deu todo o suporte jurídico, psicológico e financeiro a ele. O dirigente já conhecia o futebol de César desde os tempos do Juventus. Também amigo do pai de Ânderson, ele já havia assistido a diversos jogos do habilidoso canhoto na Rua Javari. Quando Luís Pereira e Fedato pediram a contratação do jogador, Molina deu o aval na hora, pois sabia que tinha nas mãos uma mercadoria de qualidade, momentaneamente desvalorizada pelos problemas judiciais.

Molina repete o discurso de Luís Pereira e jura que só deu uma chance ao jogador porque ele não escondeu o jogo sobre seus problemas. Mas a possibilidade de conseguir um bom lucro para o clube também pesou. Tanto é verdade que César foi emprestado ao União Barbarense no segundo semestre de 1997 numa tentativa de valorizar o passe ” no ano seguinte, o Barbarense iria disputar a segunda divisão do Campeonato Paulista, enquanto o São Caetano permaneceria na Terceirona. “O Barbarense era uma vitrine melhor. O talento dele precisava ser mostrado”, diz Molina.

A aposta de risco do cartola do São Caetano, entretanto, por pouco não foi furada. Em novembro de 1997, após julgar os recursos dos réus e da promotoria, a Justiça decidiu transformar a pena de regime semi-aberto para regime fechado. Eles iriam mesmo para trás das grades.

O inferno

Em vez do estádio Anacleto Campanella, em São Caetano, o jogador passou a viver desde fevereiro de 1998 no 29º Distrito Policial, na Vila Prudente, Zona Leste da capital paulista. Os poucos que se lembram dele por lá ” o presídio foi reformado e deixou de receber detentos por um tempo ” descrevem César como um “sujeito tranqüilo”. Em outubro do mesmo ano, ele foi transferido para a Penitenciária do Estado, mais conhecida como Casa de Detenção, ou Carandiru. Lá, “Cesinha” teve uma conduta considerada exemplar. “A segunda sentença foi um absurdo. Orientamos ele a ter bom comportamento para voltar ao regime aberto após cumprir um sexto da pena”, afirma José Carlos Molina.

César seguiu à risca a recomendação. No seu exame criminológico, feito por assistente social, psicólogo e psiquiatra, aparecem só elogios: “Educado, colaborador, discurso fluente, adequada articulação de idéias, demonstra arrependimento…” No Carandiru, o lateral ainda fez curso supletivo, trabalhou e, é lógico, jogou alguma peladas, sem deixar lembranças particulares, apesar do talento com o pé esquerdo.

César permaneceu um ano e cinco meses no xadrez, recluso. Nesse período, ficou cinco meses sem ver o filho César Henrique (hoje com 6 anos), sua maior paixão. A mulher Denise foi a companheira fiel durante esse período. Em 29 de junho de 1999, ele foi promovido ao regime semi-aberto e transferido, dias depois, para o presídio de Franco da Rocha, cidade da Grande São Paulo. Foi o bastante para o São Caetano requisitar seu retorno e os dirigentes do clube terem a esperança de que finalmente poderiam tentar recuperar o dinheiro investido.

A volta por cima

O clube e os advogados armaram o terreno para que ele pudesse voltar aos campos em 2000. Ponderaram com a Justiça que, para participar dos jogos, César precisava se concentrar com os companheiros na véspera e, assim, não poderia dormir na prisão. Em janeiro de 2000, ele foi autorizado a sair do presídio na véspera das partidas, às 12h, desde que retornasse no dia seguinte ao jogo, até 19h. “Ele teve um regime de exceção; os demais não podiam dormir à noite fora, mas dava para perceber que o César, pelo falar, pelos gestos, não era um criminoso habitual. Cometeu um deslize e se arrependeu”, diz Jusflânio Nunes, diretor do presídio de Franco da Rocha.

Outros funcionários da penitenciária também guardam boa impressão sobre o jogador. João Alves, diretor do centro de segurança e disciplina, lembra as vezes em que o lateral bateu uma bola na quadrinha de cimento e assume o papel de comentarista polêmico: “Tem gente aqui que joga mais, mas não tiveram as oportunidades que ele teve.”
O entra-e-sai da cadeia perdurou até abril do ano passado, quando enfim lhe foi concedida a prisão domiciliar. César, enfim, podia dormir em casa. Mesmo assim, com uma série de limitações: saída para o trabalho não antes das 6h e retorno não depois das 20h; permanecer em casa no repouso e nos dias de folga; comparecimento trimestral a juízo; não freqüentar lugares onde sirvam bebidas alcoólicas… Essas restrições ainda estão em vigor ” a pena de César acaba em 2003. Por isso, uma eventual transferência para o exterior ” falou-se em Real Madrid e Benfica ” precisaria ter a autorização da Justiça.

Não importa. Pela primeira vez, desde aquele 17 de maio de 1994, César se viu à vontade para fazer o que sabia: jogar bola. Foi com o técnico Jair Picerni, que chegou ao São Caetano no início de 2000, que ele finalmente virou titular do time. Oito meses depois, foi apontado como a revelação da Copa João Havelange.

Destinos diferentes

A reviravolta que César conseguiu dar na vida – deixando para trás o inferno dos presídios brasileiros para brilhar numa profissão que é o sonho de nove entre dez garotos nascidos por aqui – ganha uma importância ainda maior quando se conhece o destino dos seus dois comparsas na época do assalto. Leco não conseguiu os benefícios legais que César, apoiado pelo São Caetano, obteve. Hoje ainda cumpre a pena, que só termina em janeiro de 2004, em regime fechado na Penitenciária de Lucélia, região de Presidente Prudente, extremo oeste do estado de São Paulo.
Ricardo Cordeiro não vive atrás das grades, mas isso não significa que teve uma sorte muito melhor. Há três anos está foragido da Justiça. Seus pais ainda vivem na mesma casa humildade em Itaquera onde o filho cresceu.

Procurada pela reportagem de PLACAR, a mãe de Ricardo pediu para não ter o nome revelado: “Não sei onde está o meu filho, faz tempo que não falo com ele. É melhor nem mexer com isso agora.” Ela se lembra de César -“ótima pessoa” -, que cresceu na mesma rua, e lamenta até hoje o erro cometido pelos garotos. Ricardo só chegou a ficar na cadeia alguns dias, logo no início da investigação policial. Depois, como César, aguardou o julgamento em liberdade. A diferença é que quando a sentença final saiu, em novembro de 1997, resolveu fugir. César, não. “Eu poderia pular o muro, sair correndo, mas tinha cometido um erro. Precisava pagar.”

Certamente o jogador não se arrepende da escolha. Com a vida pessoal estabilizada e o reconhecimento profissional chegando, pôde pleitear, também pela primeira vez na carreira, um aumento salarial. Já tem um Golf e uma Blazer, mas ainda vive num sobrado de três dormitórios alugado. Quem banca o imóvel é o mesmo José Carlos Molina que apostou no sucesso do lateral quando ele estava desacreditado. O empresário nega -“Quem paga é o clube”-, mas no contrato do imóvel é a Datha Representações, empresa de Molina, que aparece como locatária, e ele próprio consta como fiador. As ligações dele com César também são meio obscuras. Em São Caetano ele é tido como procurador do atleta e responsável pelos rumos da carreira do lateral. O empresário, mais uma vez, afirma não ter esse tipo de envolvimento: “Não tenho procuração do César, nem de nenhum jogador. Sou só um primeiro amigo que pode dar conselhos.”

Caso repita o desempenho que teve na Copa João Havelange, César será ainda mais valorizado. Disputando uma competição internacional, pode despertar, em vez de boatos, um interesse concreto em clubes europeus e, quem sabe, até ter uma chance na equipe de Leão. “Não vou deixar subir à cabeça e passar a achar que sou o Pelé. Quero chegar à Seleção Brasileira”, afirma o jogador. “Espero que ele vá mesmo para a Seleção. Ele roubou o dinheiro dos colegas, errou, mas pagou. Não tenho mágoa, só a decepção pessoal com uma pessoa que eu tratava como um filho”, diz Roberto Archiná, a vítima do roubo. “Agora, com a melhora da sua situação financeira, bem que ele poderia ressarcir o Juventus (tirando os veículos apreendidos, o restante dos 100 mil dólares nunca reapareceu). Seria uma atitude grandiosa.”

A alfinetada do dirigente, os comentários maldosos de torcedores e jornalistas, César sabe que terá que conviver com isso: “O pessoal só fica esperando um deslize… Não sei até quando isso vai durar.” Talvez até agosto de 2003, data prevista para o definitivo alvará de soltura. Quem sabe então, enfim, ele possa se sentir, de fato, livre.

César, do São Caetano, durante a final da Copa João Havelange de 2000 - Ricardo Correa/PLACAR
César, do São Caetano, durante jogo contro o Vasco, pelo Campeonato Brasileiro de Futebol.

 

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