‘Onda Nova’ é exemplo de cinema como obra de transgressão social
Filme censurado pela Ditadura Militar, com Wladimir, Casagrande e Osmar Santos, volta restaurado em 4K nos cinemas brasileiros

“Eu adoro esportes masculinizantes”, diz Regina Cazé logo no início do filme. A frase vem logo depois dela e de Tânia Alves montarem o craque corintiano Wladimir com lenço rosa, chapéu esvoaçante, blusa transparente de bolinhas e um batom vermelho choque. O filme “Onda Nova”, que volta aos cinemas depois de 42 anos da primeira exibição, antecipa questões que em 1983 ainda estavam adormecidas.
Primeiro ponto acertado do roteiro é colocar mulheres em situações de poder, ainda mais dentro do universo do futebol. A cena da cartola mulher pedindo uma carne para um dirigente homem num churrasco é impagável! Logo adiante, uma inspirada Cristina Mutarelli provoca ninguém menos do que Casagrande, com um deslumbrante vestido rosa, ao dizer que se tomar um gol dele vai raspar a cabeça dentro de campo. E se Casão não marcar? Vai ter que disputar todo o campeonato de maria-chiquinha nas longas madeixas encaracoladas.
Considerado “amoral” por uma Ditadura Militar já debilitada, o filme foi alvo do departamento de censura e acabou interditado integralmente após a primeira exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 1983. A proibição fez “Onda Nova” se tornar uma espécie de cult movie brasileiro. Rever o filme, em 2025, nos faz observar como a masculinidade frágil é característica intrínseca a movimentos autoritários. Ao homem, historicamente, não cabia vulnerabilidades e tampouco comportamentos sensíveis. Ao homem, historicamente, cabia o papel do machão, do agressivo, do imbrochável e por aí vai.

Por essas e outras o filme é um incômodo do início ao fim. Dentro de casa, a mãe fica no sofá lendo jornal e o pai passando e costurando roupa. A inversão de papeis pré-estabelecidos socialmente tem função pedagógica. É claro que o filme todo é uma grande ironia. Mas nos faz questionar a simbologia daquilo que nos é atribuído: o gênero define o que fazemos e deixamos de fazer? A história do Gayvotas Futebol Clube, apesar de ficcional, está alinhada a um enfrentamento real de preconceitos dentro de uma sociedade conservadora.
O jornalista Carlos Alberto Mattos, que considera o filme uma comédia erótica e anárquica, escreveu um livro sobre Carla Camurati (“Carla Camurati: Luz Natural”) e em determinado trecho a atriz fala que o papel de Rita no filme foi escrito pensando nela. Apesar disso, a opinião dela sobre o trabalho é controversa: “uma personagem que não tinha muito o que fazer no filme além de jogar futebol e perguntar pelo Walter Hugo Khouri. Não guardei boas memórias desse trabalho. Havia boas cenas malucas em torno do tema da inversão de gêneros; havia uma
imagem delirante em que eu aparecia amarrada no fundo de uma piscina como Jesus Cristo. […] As cenas de futebol, por exemplo, não eram armadas. Então a gente entrava em campo para jogar contra o time da polícia feminina e ficava tomando um gol após o outro. Eu subia nas chuteiras com aquilo!”

As experiências no set podem não ter sido positivas para a atriz mas certamente abriram caminhos para que ela se desenvolvesse em outra função, como diretora e roteirista: “Líamos os roteiros juntos e o esquema de produção com pouco dinheiro favorecia uma criação em harmonia. O José Antonio e o Ícaro (diretores do filme) tinham um método curioso: cada um dirigia uma sequência, enquanto o outro fazia assistência de direção. Ambos tinham voz ativa e escolhiam fraternalmente os trechos que caberiam a cada um dirigir. Nunca os vi brigar no set. […] Eles sempre me explicavam os detalhes técnicos e perguntavam minha opinião. Eu ficava muito solta porque eles queriam meus gestos e expressões mais naturais. Assim aprendi a fazer cinema com uma relação já muito apurada entre a emoção e a técnica.”
Restaurado e remasterizado em 4K, os negativos originais em 35mm de som e imagem do filme foram preservados e digitalizados pela Cinemateca Brasileira. O restauro foi feito pela família do falecido diretor e roteirista José Antonio Garcia, em parceria com a Olympus Filmes, Aclara Produções, Zumbi Post e JLS Facilidades Sonoras, de um dos maiores engenheiros de som do cinema brasileiro: José Luiz Sasso. “Onda Nova” será exibido em 23 cinemas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Belém, Brasília, Fortaleza, Londrina, Maceió, Manaus, Natal, Palmas, Petrópolis, Poços de Caldas, Salvador, Teresina e Vitória. A classificação indicativa do filme é 18 anos. A distribuição é da Vitrine Filmes e da Tanto Filmes.
Chico Fireman, também jornalista, diz que “Onda Nova” vai além do filme: “é um estado de espírito de uma juventude reprimida por quase 20 anos de ditadura, com vontade de liberdade à flor da pele e os neurônios prestes a explodir”. Importante lembrar que o futebol feminino foi proibido no Brasil por mais de 40 anos (entre 1941 e 1983). Proibição foi imposta pelo decreto-lei nº 3.199, assinado pelo presidente Getúlio Vargas durante outra ditadura: a do Estado Novo. Entre proibições e proibições, como é bom ver arte e cultura incomodando. Sinal de que ainda temos muito o que avançar enquanto sociedade.

Serviço:
A partir de 27/03 exclusivamente nos cinemas.
Sinopse:
ONDA NOVA, 1983, é uma comédia erótica e anárquica que reúne histórias das jogadoras do Gayvotas Futebol Clube, um time de futebol feminino recém-formado em plena ditadura militar, no ano em que o esporte foi regulamentado no Brasil, depois de ter sido banido por 40 anos. Com o apoio de renomados jogadores da época como Casagrande, Pitta e Wladimir, elas enfrentam os preconceitos de uma sociedade conservadora. Paralelamente, lidam com seus problemas pessoais e familiares, e se preparam para um simbólico jogo internacional contra a seleção italiana.
Ficha Técnica
Roteiro e Direção: Ícaro Martins e José Antonio Garcia
Elenco: Carla Camurati e Cristina Mutarelli; Cida Moreira, Cristina Bolzan, D’Artagnan Jr., Ênio Gonçalves, Lucia Braga, Luis Carlos Braga, Neide Santos, Patrício Bisso, Petrônio Botelho, Pietro Ricci, Pita, Regina Carvalho, Vera Zimmermann
Atrizes convidadas: Regina Casé e Tânia Alves
Participações especiais: Caetano Veloso, Casagrande, Osmar Santos, Wladimir
Direção de fotografia: Antonio Meliande
Montagem: Eder Mazini
Direção de arte: Cristina Mutarelli
Música tema: Laura Finochiaro e Cristina Santeiro
Trilha original: Luiz Lopes
Produção executiva: Adone Fragano
Produção: Adone Fragano e José Augusto Pereira de Queiroz
Produtora: Olympus FilmeDuração: 70min
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* Piero Sbragia é jornalista, documentarista, doutorando em Artes na UFMG e coordenador de produção e novos formatos na revista Placar. Escreveu “Na Ilha: Conversas sobre Montagem Cinematográfica” (2022) e “Novas Fronteiras do Documentário: Entre a Factualidade e a Ficcionalidade” (2020). Dirigiu o documentário em curta-metragem “República das Saúvas” (2021), indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2022.