Publicidade
Prorrogação ícone blog Prorrogação Cultura, Memórias & Ideias

‘Adriano – Meu Medo Maior’: Imperador expõe suas dores

Ex-jogador revela em autobiografia as passagens mais difíceis da sua vida. Organizado pelo jornalista Ulisses Neto, livro conta da infância pobre aos problemas com álcool e detalha a traumática morte do pai

Adriano Imperador é um cara excêntrico. Por mais que tenha lançado Meu Medo Maior (Editora Planeta), uma autobiografia de 504 páginas, é avesso a entrevistas. O livro sobre sua história, então, só poderia ser organizado por alguém que estivesse presente no seu dia a dia sem interferir na história que é contada.

Publicidade

A naturalidade nos depoimentos, inclusive, é um dos pontos brilhantes da escrita do jornalista Ulisses Neto. À PLACAR, a editora cedeu um dos trechos mais tocantes da história que aborda infância pobre, Flamengo, seleção brasileira, Inter de Milão, morte do pai, milhões de euros, alcoolismo e mulheres.

Leia um trecho do livro Adriano — Meu Medo Maior.

livro Adriano, Meu Medo Maior - Divulgação
Divulgação/Editora Planeta

Trabalhar dá uma sede danada

Você sabe o que é ser uma promessa? Eu sei. Inclusive uma promessa não cumprida. O maior desperdício do futebol: eu.

Publicidade

Gosto dessa palavra, desperdício. Não só por ser musical, mas porque me amarro em desperdiçar a vida. Estou bem assim, em desperdício frenético. Curto essa pecha. Mas nunca amarrei uma mulher a uma árvore, como dizem. Não uso drogas, como tentam provar. Não sou do crime, mas, claro, poderia ter sido. Não curto baladas. Vou sempre ao mesmo lugar, o quiosque do Naná; se quiser me encontrar, dá uma passada lá.

Eu bebo todos os dias sim, e os dias não muitas vezes também. Por que uma pessoa como eu chega ao ponto de beber quase todos os dias? Não gosto de dar satisfação para os outros. Mas aqui vai uma: não é fácil ser uma promessa que ficou em dívida. Ainda mais na minha idade. Me chamam de Imperador. Imagina isso. Um cara que saiu lá da favela para ganhar o apelido de Imperador na Europa. Quem explica, cara? Eu não entendi até hoje.

Muita gente não sacou por que abandonei a glória dos gramados para ficar aqui sentado e bebendo em aparente deriva. Aconteceu porque em algum momento eu quis, e é o tipo de decisão difícil de voltar atrás. Mas não quero falar disso agora. Os meus motivos vão aparecer mais pra frente. Tenho que pegar um avião e ir pra São Paulo. Mais uma gravação de comercial. Vão me pagar o valor do seu apartamento para dizer que o futebol europeu também é importante para a favela.

Publicidade

Pensou que eu não trabalhasse mais, né? Tá errado, irmão. Anota esta: minha deriva e meu desperdício não são como você pensava. Toda semana tem alguma coisa para vender, uma entrevista para gravar, ou um post patrocinado para publicar. Minha assessora me liga e pede pelo amor de Deus para eu não me atrasar. O carro me espera lá embaixo. São dez da manhã de uma segunda-feira, e o voo decola daqui a uma hora e meia.

Porra, por que eu aceitei essa gravação? Não gosto de ter com- promisso às segundas, meu dia de descanso. Terça? Não me ligue. Ignoro todo mundo. Quarta é para trabalhar. Quinta é véspera de sexta, mas ainda dá. E depois vem a sexta sexy… O calendário do Didico funciona assim. Entro no carro já pensando na hora de voltar para casa. Se eu desenrolar tudo rápido e do jeito que me pedirem, talvez consiga fazer um bate-volta.

Naná, reforça o estoque de uísque e gelo! Trabalhar dá uma sede danada, e eu vou encostar aí com a minha galera. Meus amigos estão comigo desde a infância. Hermes, Jorginho, Geo e meu primo Rafael. Essa cambada não vale nada, cuidado com eles. Amo esses caras. Eles cuidam de mim, e eu cuido deles.

A gravação em São Paulo sai como o planejado. Peço para a produção me colocar no último voo do dia de volta para casa. Claro que dá tempo, caramba. Cancela o hotel e me arruma um carro pro aeroporto, faz favor. Me despeço da minha assessora. Ela tinha marcado jantar com um pessoal. Vai ter que ficar para a próxima. Já fiz o trabalho e agora quero voltar para o meu canto. Corro para Congonhas como se estivesse no gramado. Lançamento do meio campo, disparo pela lateral direita, domino com a perna esquerda, a matadora, corto pra dentro da área e solto um tiro seco que deixa o goleiro só olhando pro canto. Golaço do menino Didico. Comemoro sentado no avião, poltrona 1A. Me espera que estou chegando!

Pousamos no Santos Dumont. Vou direto do aeroporto para o meu quiosque preferido. Quando chego, a caixa de som imediatamente se conecta ao meu celular. Tá entendendo por que eu gosto de fazer as mesmas coisas? Ouço sempre as mesmas músicas. E bebo para ouvir melhor. Uma das minhas favoritas é esta aqui:

O que é, o que é? / Clara e salgada / Cabe em um olho / E pesa uma tonelada / Tem sabor de mar / Pode ser discreta / Inquilina da dor / Morada predileta

Vamos começar a noite com o meu poeta preferido, já que passei o dia na terra dele. A batida dos Racionais nem entrou ainda e os parceiros já começaram a aparecer. Geo, senta aqui do meu lado, cara. Pede um uísque pra nós, irmão.

Já me chamaram de alcoólatra algumas vezes. Não sou médico para saber se é verdade. Provavelmente você também não seja. O que posso te dizer é que gosto, sim, de um danone, como falo sempre que estou com o meu irmão alagoano, Aloísio Chulapa. Que presente ter esse cara na minha vida. Quando junta os dois, esquece. Cai até o desemprego na Escócia.

Copo alto, muito gelo, metade de uísque barato e um pouco de guaraná zero. É assim que eu gosto. Sou um homem simples, sem frescuras. Não preciso de muito para ficar feliz. Mas algumas dores, cara, não passam assim tão fácil. É difícil lidar com tudo que enfrentei, e confesso que até hoje não aprendi a superar certas situações. Será que um dia vou aprender?

“Adriano larga milhões e volta para a favela.” Lembro dessa manchete como se fosse ontem. Dou risada. Quem te falou que um dia eu saí de dentro da Vila Cruzeiro, cara? Nunquinha. Deixa eu te contar uma coisa. Minha mãe, a pessoa mais importante da minha vida, nasceu em João Pessoa. Com um mês de idade, ela subiu na caçamba de um caminhão, no colo da minha avó, lá na Paraíba. Eram as duas, o meu avô e mais três filhos. A família toda ao lado de outras tantas pessoas. O destino: Rio de Janeiro. E a última parada não era a Barra da Tijuca, não, amigo. Era a Vila Cruzeiro. Zona da Leopoldina.

Quando eles chegaram, a família do meu pai já estava lá há tempos. Podemos dizer que o meu avô por parte de pai, o velho senhor Miro, era praticamente fundador daquela comunidade. O filho dele, Mirim ou Mirinho, meu pai, nascido e criado lá dentro, conquistou reputação. Era respeitado por todos, inclusive pelos bandidos. Minha história naquela favela é quase tão antiga quanto a igreja da Penha. Foi lá que tudo começou, e é para lá que eu volto quando estou feliz, quando estou triste, quando quero ficar perto dos meus, ou quando preciso pensar na vida. Não é uma questão de escolha: é o único caminho que consigo percorrer sem errar. E, cá entre a gente, não estou nem um pouco preocupado com o que acham disso.

Você já me viu jogando futebol? Podemos dizer que eu era um tanque. Dentro da área não tinha jeito. Mãozada na cara do zagueiro, “sai pra lá, merda”, empurra lá, deita pra cá, e quando a bola caía na perna esquerda… Esquece. Não tem como. Papai do céu abençoe, mais um gol pro time do Didico. Ninguém me segurava. A minha vida funciona até hoje desse mesmo jeito. Não me controlam. Faço o que quero e tenho que fazer do meu jeito. Não há dinheiro, mulher, empresário, muito menos comentarista de televisão que vai meter o bedelho na minha vida. Pago um preço alto por isso todos os dias.

[…]

Adriano Imperador, Ulisses Neto, livro Meu Medo Maior - Divulgação/Editora Planeta
Divulgação/Editora Planeta

Cálice amargo

Meu pai morreu na cama nova dele. Sozinho. Vítima de um enfarte, fomos saber tempos depois por causa da perícia. Ele tinha 44 anos. Naquela semana, meu pai não voltou da farra para descansar na casa da minha mãe. Não apareceu na segunda-feira. Não ligou na terça. Eu tinha mandado o dinheiro dele para a conta da Dona Rosilda. Era ela quem cuidava, que cuida até hoje, das nossas finanças.

Minha mãe entregava para ele em mãos. Meu pai não deu as caras como costumava fazer, e ela decidiu ir atrás dele.

Ela e a minha tia Meire foram buscar o Thiago na escola e na volta passaram no apartamento do Recreio. O porteiro disse que não tinha visto o Miro chegar. Minha mãe subiu. Tocou a campainha. Bateu na porta. Nada. Ligou no celular dele de novo e ouviu tocar do lado de dentro. Foi assim que ela decidiu acionar o chaveiro.

Ela sentiu que algo de muito errado tinha acontecido. Fora que, uns dias antes, um irmão da igreja veio até ela e disse: “A irmã vai tomar um cálice amargo, mas fique em paz. É para uma obra”. Isso minha mãe me contou depois. O cálice amargo era a morte do meu pai. Quando percebeu que o Mirim estava morto, a Dona Rosilda tentou procurar ajuda, mas já era tarde. E foi de lá mesmo que ela me ligou. Minha mãe estava em frente ao corpo do meu pai, em um apartamento no Recreio dos Bandeirantes. Eu estava do outro lado do oceano, dentro de um ônibus em Bari. Ainda em choque, desliguei o telefone. Eu não chorei no primeiro instante. Senti raiva. Por que ele não tomou a porra do remédio? Dei um murro na janela do ônibus.

Foi tão forte que estourou o vidro. Todos se assustaram. O Zanetti estava sentado na minha frente.

Ele subiu na poltrona se virando para mim e perguntou: “Adri, o que foi isso?”. “Meu pai morreu, cara. Meu pai morreu.” Foi tudo que eu consegui dizer. Meus companheiros foram muito solidários. Me cercaram. Todos foram me abraçar. Me deram as condolências. Alguns choraram. Eu estava paralisado. Como assim meu pai tinha morrido? No apartamento que eu comprei para ele. Sozinho? Que merda toda era aquela?

Eu sou chorão mesmo, mas naquele momento foi ainda mais profundo. Fiquei apavorado. Minha cabeça girava. Tudo parecia estar em câmera lenta em volta de mim. Eu não entendia as palavras da minha mãe. “Meu filho, seu pai se foi.” Foi para onde? Acorda ele, caralho. Porra, negão. Não gosto nem de lembrar desse dia. Foi muito pesado.

Adriano – Meu Medo Maior

Adriano Imperador, escrito por Ulisses Neto, Editora Planeta, 504 páginas, R$ 99,90 (planetadelivros.com.br)

Publicidade