Sim, elas passarão…
No Dia da Mulher, Comentarista vai à final do primeiro Carioca de futebol feminino (1983, título do Radar) e dá recado aos ‘machistas de plantão’
Pra quem não sabe, foi um tal José Fuzeiro, morador de Copacabana, que armou um dos mais tristes ‘fuzuês’ do esporte brasileiro, sandice-mor, ao escrever, em maio de 1940, carta pública ‘alertando’ que o futebol era prejudicial às mulheres, em especial à maternidade, e convencer os déspotas do governo Getúlio Vargas a abolirem sua prática no país. Sei que vocês, caros leitores e (mesmo as) leitoras de 1983, ainda não se espantam tanto com isso, pois infelizmente ainda vai demorar para que o senso comum concorde no quão triste e imbecil é esta passagem da nossa história esportiva. Mas tudo vai mudar.
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Viajei na Máquina do Tempo para assistir a ainda incipiente – mas desde já heróica – final do primeiro Campeonato Carioca de futebol feminino, vencido pelo Radar após os 3 x 0 de ontem sobre o Bangu, porque em 2022 (de ‘quando’ venho) estaremos vivendo as primeiras rodadas de um fortíssimo e badalado Campeonato Brasileiro da categoria, o décimo disputado por clubes como Corinthians, Flamengo, São Paulo… Sem falar que embarquei às vésperas do Dia Internacional da Mulher, mas isso é de menor importância, pois cada vez mais todos os dias serão das mulheres. E todos os dias serão de Futebol Feminino. Corrigindo: todos os dias serão de Futebol! Sejam homens ou mulheres a engrandecer o maior dos esportes.
Foram quase 40 anos de clandestinidade que, mesmo ignorada pela mídia, não foi capaz de impedir que, nos subúrbios do Rio e por todo o Brasil, mantivesse-se acesa esta paixão das mulheres pela bola, que gerou histórias de bravura e pioneirismo como a do Radar. E nada importa que este embate tenha sido maculado pela violência masculina dos dirigentes banguenses – entre eles, Castor de Andrade, claro – em um dos três confrontos derradeiros, em Moça Bonita. Saibam que estamos todos assistindo ao início, ou melhor, à retomada de uma trajetória inevitável, natural e eterna: a do futebol disputado por mulheres.
Creiam-me: chegaremos aos anos 20 do próximo século, após quase os mesmos 40 anos da proibição, como uma das maiores forças do esporte no mundo, com participação de nossa seleção (as “canarinho”) em todas as Copas do Mundo e edições de Olimpíadas que ainda estão por vir. Aos ‘José Fuzeira’ da vida, durmam com essa: apesar de tudo e de todos, ‘elas passarão’! E será dando nos ‘machistas de plantão’ um drible desconcertante, justo onde eles pensam que têm algo (de poder) a mais: debaixo das pernas.
Lutas de qualquer tipo, futebol de salão, de praia, polo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol foram outros esportes listados em 1965, numa complementação à lei de Vargas, como proibidos para mulheres, ou “incompatíveis com as condições de sua natureza.” Pois fiquem todos sabendo que em 2022 teremos atletas do gênero feminino com destaque internacional em todas essas e outras modalidades – ok, em beisebol ainda não estaremos brilhando, mas que se cuidem os cubanos!
Segurem mais essa: nos gramados, será brasileira a maior jogadora de todos os tempos, aquela tida como a – com licença da referência, universal – ‘Pelé’ do futebol entre mulheres, eleita seis vezes pela Fifa como a melhor do mundo. Seis vezes também o Radar vai erguer o Estadual, somando 12 com mais meia dúzia de triunfos numa competição nacional que inicia-se ainda este ano. Uma história linda! Mas que não venham de novo com adjetivos e nem chamando as atletas de “as meninas do futebol”… Craques é o que teremos em campo. Mais e mais.
As habilidosas e raçudas jogadoras do Radar, clube nascido na ladeira Mascarenhas de Moraes, em Copacabana – vizinhas, portanto, do cretino ‘Seu Fuzuê’ -, formarão quase a totalidade da primeira Seleção Brasileira que nos representará mundo afora nesses primeiros anos de sua história. Pelo dados oficiais da FIFA, a primeira partida entre mulheres teria sido disputada em 23 de março de 1885, em Crouch End, Londres, na Inglaterra, entre representantes das áreas Norte e Sul da cidade. Se no mundo fala-se em registros de partidas entre mulheres desde o Século XV, no Brasil é certo que em 1920 a bola já rolava em estados como o Rio Grande do Norte e no Rio. Ou seja: não há nada de novo nisso.
Por muito tempo apontaremos um certo confronto entre “senhoritas dos bairros da Cantareira e do Tremembé”, em 1921, em São Paulo, como o primeiro jogo oficial por aqui. Na década seguinte, saibam, já eram pelo menos 15 os clubes de futebol apenas com mulheres nos bairros periféricos da ex-capital federal, como o Primavera Futebol Clube, o Sport Club Brasileiro e o Casino Realengo, entre outros. Foi o Primavera, aliás, que, ao publicar um anúncio convocando moças entre 15 e 20 anos para uma ‘peneira’, chamou a atenção dos moralistas e provocou a carta do tal cidadão de quem não mais repito o nome. Segue um trecho da blasfêmia:
“Ao que dizem os jornais, no Rio já estão formados nada menos do que dez quadros femininos. Em São Paulo e em Belo Horizonte também já se estão constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores da saúde de 2200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagante.”
É mole? E desta vez não se trata de ‘previsão de um viajante do futuro’, do que muitos duvidam, mas de fato devidamente registrado em passado nem tão distante assim. Mesmo compreendendo que somos todos, sempre, ‘vítimas do contexto’, não entra na minha cabeça a ideia de que alguém julgue-se no direito de proibir outra pessoa a praticar este ou aquele esporte. E soa curiosa a insegurança masculina em querer impedir ou ao menos retardar o crescimento do futebol que não seja o praticado por eles. Frágeis…
Pra se ter uma ideia do quão resistentes serão a hipocrisia e a covardia neste assunto, já estaremos em 2001 e o regulamento do Campeonato Paulista apontará os seguintes critérios para os times escolherem as jogadoras: “Beleza e sensualidade”. O passo decisivo para a robustez do esporte entre mulheres só se dará em 2019, quando, seguindo orientação da Fifa, a CBF decretar outra lei, tentando compensar o erro de décadas atrás: só poderão disputar competições no país os clubes associados que tiverem equipes de futebol masculino e feminino. Uma ‘tirania do bem’, dirão alguns. Já eu enxergarei como um justo e necessário ‘contra-ataque’.
‘Lugar de fala’ é uma expressão que vocês, caros leitores e leitoras de 1983, ainda não conhecem mas podem facilmente compreender, concordando todos ser algo que não possuo ao tratar do assunto em pauta nesta resenha. Mesmo assim, antes que me acusem de estar “jogando pra torcida”, arrisco-me a dizer que precisamos, desde já, dar atenção especial à formação de ‘goleiras’, pois será esta a posição que menos se desenvolverá nos 40 anos do porvir. Sissi, Roseli, Kátia Cilene, Formiga, Cristiane, Marta…
Serão muitas as craques que vocês ainda verão nos campos. Teremos medalhas olímpicas, partidas eternas, lances inesquecíveis, nada diferente do que sabemos ser possível e delicioso no futebol. E teremos aplausos eternos para a bravura dessas pioneiras de Copacabana. A vocês que insistem em fechar os olhos e as portas ao esporte, deixo aqui um último ‘spoiler’: tratem de, o quanto antes, colocar o ‘futebol feminino’ no radar! E grafo entre aspas porque em 2022 não fará mais sentido usar a expressão. Futebol é futebol! E zé-fini!
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