O segundo 4 a 1 a gente sempre esquece
Comentarista viaja até o dia que o Brasil, seis anos após a Copa-1970, repetiu a goleada em nova final com a Itália e fez nascer a cisma com o craque Dirceu
Voltar a 1976 me remete à emoção que senti quando, ainda criança, fiquei pela primeira vez frente à frente com um jogador de futebol de verdade _ antes só tinha resenhas com os craques do meu time de botão. Lembro bem: enfastiado em pleno almoço de família numa churrascaria de Botafogo, Rio, fazia dos meus dedos da mão pernas, dando dribles e chutes numa azeitona, quando avistei em outra mesa um sujeito que, com certeza, era o Dirceu, o “Formiguinha”, do Fluminense e da Seleção na última Copa. Sob incentivos do meu pai, fui até lá e consegui, num guardanapo de papel com a logo da casa, o único autógrafo que pedi a alguém em toda a minha vida. Esse jogador vai longe, queridos leitores! Escreverá uma história linda e romântica nos gramados do mundo, digna de longa-metragem. Infelizmente, nunca terá o merecido reconhecimento no Brasil. Mas sim, e muito, na Itália, o arquirrival que ontem, pela segunda vez em seis anos, de virada, goleamos por 4 a 1, conquistando a taça Bicentenário da Independência dos EUA. Pela Máquina do Tempo, vim do futuro (2021) conferir esta partida por supor que a má vontade de torcedores e da mídia nacional com o Dirceuzinho começa aqui, neste torneio. E para provar minha tese e a gigantesca estatura do craque, vou me esforçar ao máximo, dar tudo de mim… Como uma “formiguinha” também.
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Vamos combinar que este torneio nos EUA escapou de ser mero “caça-níquel do showbusiness americano” porque conseguiu, sei lá como, atrair não apenas o Brasil como os escretes de Itália e Inglaterra _ ambos procurando amistosos após a desclassificação na Eurocopa. Virou briga de bicho grande, tipo ‘Saúva versus Saúva’. Mesmo assim, é meu dever informar que (alerta de ‘spoiler!’) em 2021 o quadrangular estará tão ou mais esquecido do que o incansável e habilidoso atacante curitibano. Minhas conclusões sobre o início do injusto descaso ao cracaço Dirceu reside na constatação de que estamos testemunhando, nesta meiúca dos anos 70, as últimas atuações do escrete canarinho com dois pontas abertos: Gil e Lula, na final de ontem. Explico: calejado pelo fracasso na Copa da Alemanha, em que Zagallo escalou Dirceu, um Camisa 11 a sua imagem e semelhança, o técnico Brandão apostou na formação clássica, mais ao gosto da galera. E deu certo! Adianto a todos que, no próximo Mundial, na Argentina, já teremos outro treinador e Dirceuzinho de volta ao time titular. Mas não seremos campeões, o que fará o inconsciente coletivo brasileiro enxergar o motivo do fracasso no “Formiguinha”. Quando na verdade, anotem, o culpado será um “Peru”!
As cicatrizes de duas Copas seguidas e perdidas com Dirceu na esquerda serão tão fortes que, para o Mundial de 1982, na Espanha, surgirá uma grita nacional exigindo mudanças: “Bota ponta, Fulano!” (Me permitam omitir o nome do futuro comandante do escrete canarinho) _ será este o bordão, criado por um humorista da TV e rapidamente acolhido e propagado nas ruas. Não vai rolar… Nem ponta, nem tetra. Aliás, sugiro que ninguém perca tempo com isso, pois de hoje até 2021 nunca mais o Brasil disputará uma Copa tendo, além do centroavante, outros dois “atacantes de ofício”: um ponta-direita; e um ponta-esquerda. Este ataque campeão nos States será o último na história da Seleção, eu garanto! E é Dirceu que vai pagar o pato. Ficar, como diz o provérbio, nesse “pau com formiga”.
Para bagunçar ainda mais o formigueiro, os protagonistas da final foram justamente os dois pontas brasileiros _ Rivellino deu show, mas este é o Clóvis Bornay dos gramados, ‘hours-concours’. Pela direita, Gil fez dois dos quatro tentos, o primeiro deles, no empate, após bela jogada de Lula, avançando com dribles na extrema esquerda e chegando dentro da grande área. O canhotinho do Internacional acabou expulso e, curiosamente, foi com um jogador a menos que o Brasil deslanchou, chegando aos 4 x 1 pelos pés de Zico e Roberto Dinamite. Flecha não jogou, mais era uma terceira opção de ponta convocado e à disposição no banco. Nas palavras de Nelson Rodrigues, para os “idiotas da objetividade”, a partir de ontem, está decretado que a Seleção Brasileira só triunfa quando joga com o chamado ‘ponta-ponta’, do ramo, que segue a linhagem de Garrincha, Jairzinho, Edu e tantos outros. E ‘ponta’ final! Quer dizer… Ponto final!
Diante das dificuldades da vida, há os que reagem como a Cigarra, da fábula, e aqueles que vão à luta, e jamais vão ouvir o milenar conselho bíblico: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso!” Dirceu joga no time dos que estão sempre buscando algo melhor. Na Argentina, próxima Copa, sua performance o fará ser eleito como terceiro melhor jogador do mundo. Com o passar do tempo, vai aperfeiçoar ainda mais os seus talentos. Dono de um chute mortal, com as duas pernas, e, desconfia-se, três pulmões, ao encerrar a carreira terá feito 99 gols, vestido a camisa de 14 grandes clubes, disputado três Mundiais (vai em 1982 também!), uma Olimpíada, e recebido duas vezes o prêmio como craque do Campeonato Italiano. Jamais será expulso. Para dar a vocês uma ideia do seu futuro sucesso no futebol internacional, revelo que ele acabará se tornando o único brasileiro homenageado com o batismo de um campo na Itália, o “Stadio Dirceu José Guimarães” _ e mais não posso dizer, mesmo com a língua formigando de vontade. Grande Dirceu!
Ruins de bola, como todos sabem, são os americanos _ no futuro, acreditem, os gringos vão melhorar. Pelé se absteve de enfrentar o Brasil mas estava reforçando o combinado da liga de futebol norte-americana, o chamado ‘Team America’, que disputou este curioso torneio em comemoração aos 200 anos independentes do país do ‘não-futebol’. E pensar que as Ilhas Seychelles e a da Madeira só vão se libertar este ano… “A formiga sabe a folha que rói”, já ouviram essa?
Como também tenho antenas apuradas, não pude deixar de notar um detalhe do elenco brasileiro impensável no próximo século: todos os 22 convocados por Brandão jogam por clubes brasileiros, de seis estados da Federação. “O que isso tem de estranho ou diferente?”, vocês devem estar perguntando, certo, queridos leitores de 1976? Pois fiquem sabendo que, com o passar das décadas, vestir a ‘Amarelinha’ será quase que privilégio de atletas em atividade nos campeonatos lá fora, de outros países. Levas e levas de nossos futuros craques vão seguir os caminhos abertos por Dirceu e outros pioneiros. Quando um ou outro atleta que corre em gramados nacionais vier a ser chamado, os jornais destacarão em manchetes de alto de página. Mais que isso: volta e meia, acreditem, a lista do treinador trará um nome que nem jornalistas esportivos saberão quem é. O resultado será uma “falta de identificação da Seleção com os torcedores”, esfriando as arquibancadas em jogos do Brasil. Alguém também já disse: “Formiga, quando quer se perder, cria asas.”
Foi o maior barato rever este grupo do professor Brandão, com o “Bruxa” Marinho Chagas, o “Rei de Pernambuco” Givanildo, o “Búfalo” Gil, Orlando “Lelé” e, claro, Beto Fuscão! _ isso sim é nome de zagueiro! Mereciam receber no futuro mais loas e méritos pela goleada de ontem. Afinal, Brasil e Itália sempre foi, é e será, ao menos pra mim, o maior clássico do futebol mundial. E pouco importa que em 2021, de “quando” venho, já teremos assistido a três finais de Copa entre Argentina e Alemanha (não perguntem qual, elas vão se juntar), uma a mais que o confronto Brasil e Itália (sim, vem uma segunda decisão por aí!). “Brasil e Itália” é “Brasil e Itália”, ‘caçamba’! (Ih, sem querer usei o apelido do Brandão, que ele não gosta). Até lá, os dois países terão, juntos, 9 triunfos em Mundiais! Assim, ontem foi mesmo um grande dia do futebol brasileiro. Pena que o Dirceuzinho não estava lá. Ele merecia _ isso e muito mais! Tudo bem. Como viajante que atravessa décadas e séculos, sei que o Tempo sempre corrige injustiças. Mesmo que em passos de formiga.
Nota do editor: Este texto foi publicado em 1º de abril de 1976, dia seguinte ao jogo, com seu autor tendo o cuidado de omitir das previsões sobre o futuro a trágica morte de Dirceu. Ao sair de sua casa na Barra da Tijuca, Rio, o jogador teve seu carro violentamente atingido por outro veículo, que fazia um pega. Teve morte instantânea, aos 43 anos, deixando três filhos e a mulher grávida de sete meses. Fazia uma semana que retornara ao Brasil. Naquela noite, estava indo fazer o que mais amava na vida: jogar bola.
FICHA TÉCNICA
BRASIL 4 X 1 ITÁLIA
(Final do Torneio Bicentenário da Independência dos EUA)
Data: 31 de maio de 1976
Estádio: Yale Bowl Stadium, em New Heaven (EUA)
Juiz: Ramon Barreto (Uruguai).
Público: 36.096 pagantes.
Brasil: Leão (Palmeiras-SP), Orlando (América-RJ) (depois Getúlio, do Atlético-MG), Miguel (Fluminense-RJ), Amaral (Guarani-SP) e Marco Antônio (Vasco-RJ) (depois Beto Fuscão, do Grêmio-RS); Falcão (Internacional-RS) (depois Givanildo, do Santa Cruz-PE), Rivellino (Fluminense-RJ) e Zico (Flamengo-RJ); Gil (Fluminense-RJ), Roberto Dinamite (Vasco-RJ) e Lula (Internacional-RS). Técnico: Oswaldo Brandão
Itália: Dino Zoff, Marco Tardelli, Francesco Rocca, Mauro Bellugi (Moreno Roggi), Giacinto Facchetti; Romeo Benetti, Giancarlo Antognoni e Fabio Capello (Eraldo Pecci) (Claudio Sala); Franco Causio, Francesco Graziani e Paolo Pulici (Roberto Bettega).
Técnico: Fulvio Bernardini.
Gols: Fabio Capello 2′, Gil 29′ (1T); Gil 8′, Zico 26′ e Roberto Dinamite 30′ (2T)
Cartão vermelho: Lula (Brasil), Roberto Bettega e Franco Causio (Itália)
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