O primeiro ‘craque-celebrity’
Documentário e críticas a Neymar levam Comentarista do Futuro ao último jogo de Heleno de Freitas, 1951, única atuação do polêmico atacante no Maracanã
‘Celebridade’, conceito surgido há pelo menos quatro séculos, no futuro terá verbetes reescritos em dicionários e ‘enciclopédias’ – que, aliás, adianto a vocês, caros leitores e leitoras de 1951, serão bem diferentes dos tijolos de capa dura enfileirados em suas estantes. Os textos vão precisar mudar não apenas porque teremos derivativos como ‘subcelebridade’ ou ‘celebridade instantânea’ (que não explicarei aqui pela certeza de que nada acrescentarão à vida de ninguém). A transformação será por conta de outras novidades do Novo Milênio também ainda desconhecidas. Pra quem quiser anotar, seguem alguns nomes: ‘indústria cultural’, ‘internet’, ‘mídias digitais’ e ‘rede social’, pela ordem. Por isso, sempre serei fascinado pelo gênio que, como muitos devem ter presumido, fez ontem – no triunfo do São Cristóvão (3 x 1) sobre o América – sua despedida do futebol. Além de craque de bola, Heleno de Freitas ganhará a história como primeiro jogador a ser ‘estrela’ não apenas em seções de esportes da imprensa. Nas próximas décadas, já-já eu conto, serão muitos. E isso continuará ‘incomodando’ muita gente. Viajei no Tempo para testemunhar esta partida histórica, mas fiquei triste com os melancólicos momentos que assistimos ontem, prova da decadência do ídolo. Por sorte não trouxe comigo outra inovação do Amanhã, a mais poderosa de todas: ‘celular’. Ufa! Vai que, após o jogo, ao me deparar com o atacante num surto de loucura no vestiário, eu também sofresse um ataque de ‘sem noção’, típico em 2022, e resolvesse fazer uma ‘selfie’…
Assine #PLACAR digital no app por apenas R$ 6,90/mês. Não perca!
Nunca antes Heleno havia jogado no ‘Maraca’. Talvez seja por isso que, rolada a pelota, ele manteve-se quase inerte, encantado, olhar perdido e vagando pelo anel superior do estádio. Na primeira jogada, como se retomasse os sentidos, partiu driblando a defesa adversária e por pouco não deixou sua assinatura de artilheiro no ‘maior do mundo’. Infelizmente, com menos de meia hora de partida, foi eficiente em outra marca da carreira: criar confusão ou briga e ser expulso de campo. Em seu segundo lance, driblou Torbis e, ao ser derrubado, partiu descontrolado para cima do zagueiro. Quando seus companheiros tentaram contê-lo, resolveu brigar com eles também, levando o juiz a assinalar nova falta, agora dele, técnica. Desestabilizados todos do Onze alvirrubro, incorporou o apelido ‘Príncipe Maldito’, passando a não se esforçar caso a bola não viesse aos seus pés e xingando todos os atletas de Campos Salles. Resultado: foi mandado pro chuveiro mais cedo por ‘atitude antidesportiva’ contra o próprio time. Só Heleno mesmo… Não à toa, adianto, vai inspirar filmes e livros – um deles, de importante escritor uruguaio, atestando ser ele o inventor do drible ‘foquinha’: a condução de bola em velocidade no peito, sem deixá-la cair, crédito que daqui a meio século será dado a um certo (anotem!) Kelson, cuja carreira será curta (*nota da Redação ao final do texto).
Corri pro vestiário. Pude então ver suas muitas tentativas de agredir qualquer um que passasse a sua frente ou tentasse aproximar-se do canto onde se entrincheirara, inclusive um fotógrafo, ao primeiro flash. Um triste e derradeiro clarão para o homem que há anos vive sob holofotes. Duas horas depois, ao conseguir deixar o local em seu carro, por pouco o atacante não partiu para cima de torcedores que o cercavam entoando a alcunha mais famosa: “Gilda! Gilda”, conhecida provocação criada pelos tricolores e que o compara à personagem vivida em filme pela atriz Rita Hayworth. Tem sido mesmo de cinema a sua trajetória no esporte, acrescentando-se um ingrediente que será incorporado à linguagem do esporte no futuro: a chamada fama de ‘bad-boy’.
https://www.youtube.com/watch?v=fQ_CaWZ4RrM&ab_channel=DoutrinadoresDaBola
Nos anos 20 do próximo século, o mais prestigiado e diferenciado jogador brasileiro atravessará os campos, rasgando defesas, tendo nas costas o peso deste estigma: ‘ser mais uma ‘celebridade’ do que um atleta’. Deixei 2022 logo após o lançamento de um filme documental que tratará do tema. Mas ao olhar para os próximos 71 anos que hoje separam os dois craques, e lembrando de outros jogadores brasileiros que viveram situações semelhantes, penso no quanto de preconceito há ou não por trás deste vaticínio popular.
Novamente listarei alguns nomes que sugiro anotarem queiram me cobrar algum dia: Paulo César Caju, Romário, Edmundo, Adriano Imperador, entre muitos, todos de origem humilde e/ou negros, e pouco aceitos em círculos mais endinheirados, ou, como alguns dizem, ‘querendo viver como se realmente fossem ‘alguém’. Sinto informar que pensamentos assim ainda existirão, talvez até mais aguçados. Outro ataque típico que acometem os seres do Século 21, conjugando os já citados ‘sem noção’ com os ‘sem coração’ e ‘sem razão’.
Antes de ser descoberto pelo ‘olheiro’ Neném Prancha no futebol de praia, ser levado por João Saldanha para tornar-se ídolo do Botafogo (204 gols em 233 jogos) e artilheiro da Seleção em competições internacionais (substituindo o imortal Leônidas da Silva), Heleno nunca passou fome. Ao contrário: família com boas condições financeiras, estudou Direito, tem amigos endinheirados no Rio, em especial entre os integrantes do Clube de Cafajeste. Isso todo mundo sabe. Mas pode um ‘jogador de futebol’ namorar estrelas famosas, morar no Copacabana Palace, usar terno de casimira inglesa do alfaiate De Cicco (o mesmo do presidente Getúlio Vargas), relógio Cartier e perfume francês, frequentar restaurantes da elite e circular pelas ruas com seu Cadillac? Há os que achem que não. E talvez tenha sido essa a marcação cerrada que levou o artilheiro a se envolver com drogas (álcool, éter, lança-perfume, cocaína) e, mais recentemente, a demonstrar sinais aparentes de desvarios.
No futuro, alguém ainda dirá, todos nós teremos nossos ’15 minutos de fama’. Rogo pelo empenho, o bom senso e o espírito de Humanidade de vocês, caros leitores e leitoras de 1951, para que seja possível chegar lá, em 2022, mantendo muito mais tempo, uma vida inteira, de sanidade.
Nota da redação: de Eduardo Galeano no livro “O futebol ao sol e à sombra”, que relembra a partida entre Botafogo e Flamengo realizada em 1947.
“Heleno estava de costas para o arco. A bola chegou lá de cima. Ele parou-a com o peito e se voltou sem deixá-la cair. Com o corpo arqueado e a bola no peito, enfrentou a situação. Entre o gol e ele, uma multidão. Na área do Flamengo havia mais gente que em todo o Brasil. Se a bola caísse no chão, estava perdido. E então Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas. Ninguém podia tirá-la sem fazer falta, e estavam na zona de perigo. Quando chegou às portas do gol, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até seus pés. E ele arrematou”.
FICHA TÉCNICA
SÃO CRISTÓVÃO 3 × 1 AMÉRICA
Data: 4 de novembro de 1951
Estádio: Maracanã, Rio de Janeiro (RJ)
Competição: Campeonato Carioca (2º Turno)
Árbitro: Alberto da Gama Malcher
Renda: Cr$ 148.754,00
SÃO CRISTÓVÃO: Luís Borracha, Valdir e Torbis; Nei, Geraldo e Jordan; Geraldinho, Carlyle, Nonô, Ivan e Carlinhos.
AMÉRICA: Osni, Ivan e Osmar; Rubens, Osvaldinho e Godofredo; Natalino, Dimas, Heleno de Freitas, Ranulfo e Jorginho. Técnico: Délio Neves
Gols: Carlyle (2) e Ivan (São Cristóvão); Ivan (América)
PRA VER IMAGENS RARAS DE HELENO DE FREITAS EM CAMPO
PRA VER HELENO NO BOCA JUNIORS
PRA VER DOCUMENTÁRIO SOBRE HELENO
PRA VER DIDI E LUIS MENDES FALANDO SOBRE HELENO
QUER FALAR COM O COMENTARISTA DO FUTURO? QUER CONTAR ALGUMA HISTÓRIA OU SUAS LEMBRANÇAS DESTE JOGO?
Escreva para o colunista: [email protected]