O gol mais perdido de todos os tempos
Cronista vai até 1992, em Wembley, ver o Brasil x Inglaterra que a Seleção não venceu porque um jogador achava que as balizas ficavam na arquibancada
O Tempo ensina – mesmo àqueles sem o poder de, como eu, viajar ao Passado – que conselhos com frases feitas (clichês) são geralmente apenas conforto ou uma forma de iludir a todos nós, pobres mortais. “Na vida sempre chega o momento certo para você dar o passo necessário ao sucesso”, por exemplo. Ou, na mesma linha: “Aguarde que o Destino vai abrir as portas pra você, sua hora vai chegar e você saberá perceber e aproveitar!”. Não é bem assim, ao menos não sempre, e vocês sabem, queridos leitores e leitoras de 1992. Não foi ontem, por exemplo, dia em que, num clássico e majestoso confronto entre Brasil x Inglaterra, no santuário chamado Wembley, as forças do Universo conspiraram a favor de um de nossos jogadores, Charles ‘Guerreiro’, capricorniano com ascendente em Leão (pelos meus cálculos). A dois ou três minutos do final, neste segundo dia de Lua Cheia em 17 de maio de 1992, o lateral foi posto frente à frente com a bola, caprichosamente parada, quase na pequena área inglesa, sozinho, tudo perfeito para chutar e cravar a vitória brasileira, impedindo o placar final de 1 x 1. E ele, como todos vimos, mandou a pelota lá na Cochinchina — onde, inclusive, àquele momento, já devia ser dia 18. Posso garantir: ao menos até 2022, de ‘quando’ venho, é o gol perdido mais perdido de todos os Tempos.
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E explico o porquê disso, inicialmente com a ajuda dos astros. O mapa astrológico de 22 de dezembro de 1963, data de nascimento de Charles Natali Mendonça Ayres, devia certamente dar alguma pista sobre o que o Futuro reservava a ele como características do seu futebol. A principal delas: uma aversão gigante, quase incapacidade, de fazer gols. Sua carreira até aqui já é uma prova disso e, sinto dizer, nada vai se alterar. Até deixar o Flamengo, anotem, serão 246 partidas e apenas 2 tentos alcançados – e quase como descuido, pois acontecerão em dois jogos seguidos e disputados numa mesma semana: um empate com o Volta Redonda pelo Carioca e uma vitória na Copa do Brasil sobre o Kaburé (TO). O fato, irrefutável, é apenas um dos detalhes que elevam o ponteiro do ‘gol-perdidômetro’, existisse algo assim. Outro, claro, era a presença em Wembley da Rainha Elizabeth. Daqui a 30 anos ainda vai haver quem garanta que a bola chutada pelo Charles foi parar no colo da monarca, sem causar arranhões. ‘God Save the Queen!’
Repassemos o lance – insólito como a Monarquia para seus detratores. Antes, faço questão de enaltecer as muitas qualidades deste paraense (nascido em Ourém) de 1,88m que atua também como volante, sempre com muita entrega, intensidade e raça, tanto assim que, mesmo com o jejum, ganhou a simpatia da torcida rubro-negra e, quase ato contínuo, esta convocação para os amistosos da Seleção de Parreira na Europa. Por motivo de contusão do titular Winck, entrou no decorrer do jogo, assim como o Valdeir, que fez valer seu epíteto (sim, essa palavra ainda existirá em 2022, embora quase esquecida), ‘The Flash’, e rasgou como foguete o lado direito da defesa do ‘English Team’ para, em momento genial, pisar com a sola da chuteira sobre a bola, parando com a minúcia de quem a ajeita numa marca penal. Pronto. Os céus se abriram, Wembley mergulhou num silêncio monástico e veio Charles, quase no bico da pequena área: pimba!!!… Colo da Rainha.
Não era mesmo dia dele. Daqui a 30 anos o gol perdido ontem será tão – folcloricamente e positivamente – relevante como referência que ninguém vai se lembrar que foi de Charles a cabeçada infeliz para o meio da área que resultou no gol de empate da Inglaterra. Fora o fato de que foi o único em campo a ser advertido com um cartão amarelo. Revendo o jogo, agora ‘in loco’, atentei ao fato de que também ontem não era dia do Brasil. Um ou dois minutos antes do lance desperdiçado, viramos o jogo, em gol de Bebeto equivocadamente anulado, por impedimento inexistente. E já aviso: em 2022 as evoluções tecnológicas diminuirão o número de erros em ‘offsides’, mas não em 100%. A vida é assim. Os avanços vêm “em ondas”, como diz o sucesso de Nelson Motta e Lulu Santos, lançado há 9 anos. O próprio Charles já treinou muito chute a gol com o amigo e parceiro na Gávea Júnior, o ‘Maestro’ (outro epíteto!). Mas, definitivamente, não veio ao mundo para isso: fazer gol.
Temos que aceitar, nos adaptar de forma feliz e ressignificar o nosso destino, creiam-me. “Ninguém escolhe o seu papel, cada um recebe o que lhe dão”, disse o filósofo brasileiro Matias Aires – e essa eu aprendi assistindo a vídeos de Ariano Suassuna no ‘You Tube’, espécie de canal de TV que vai nascer na Internet e no próximo século faturar bem mais do que a Globo, por exemplo. É sério. E não vai ter um dia ‘D’ ou um momento crucial em que esta ‘nova ordem mundial da Comunicação’ vai acontecer. A vida será mais e mais volátil e surpreendente, caros leitores e leitoras de 1992. Mas, claro: vai ajudar nisso alguns erros ‘no jogo’, digamos, alguns momentos em que a mídia tradicional vai chutar longe do gol. Como o Charles.
Quando marcou seu primeiro gol pelo Flamengo, vejam só, estava há quase seis anos sem balançar as redes, o que fizera pelo Guarani, em outro ‘descuido’. Também ficará pública e célebre a frase que ouviu de Zagallo, assistente de Parreira, ao chegar ao vestiário:
— Meu filho, se você faz aquele gol nem voltava para o Rio…
Mas em 2022 ainda não terá ficado claro o que exatamente o ‘Velho Lobo‘ (olha ele aí! O Epíteto de novo!) quis dizer. Se eram grandes as chances dele apanhar dos ‘hooligans’ ou se seria imediatamente contratado pelo Manchester United…
Chamado em sua terra natal de ‘Príncipe’, o paraense Charles ganhou o ‘Guerreiro’ do nome por conta da raça que demonstrou ao chegar ao Flamengo, aos dotes criativos do assessor de imprensa do clube, Rodrigo Paiva, e, principalmente, pela recorrência de seu uso na voz do locutor Januário de Oliveira. Ainda vai jogar no Vasco (juro!), onde fará um terceiro gol na carreira carioca, no Fluminense (sem gols, se não falha minha memória do futuro), Inter de Limeira, Bragantino e Olaria antes de retornar ao Pará, primeiro no Paysandu que o lançou e depois terminando a carreira no rival Remo. Na Seleção, não passará de quatro jogos, o último deles daqui a 3 anos, em marcante triunfo que obteremos em Buenos Aires contra os rivais – após 20 anos sem vitórias brasileiras em terras argentinas. Mas sem gols vestindo a ‘amarelinha’. O dia era ontem, meu amigo Charles, mas não rolou…
Já com as chuteiras eficientes mas caolhas penduradas, vai se lançar numa animada carreira de treinador e dirigente, chegando a assumir por dois anos (entre 2016 e 2018) a presidência de um clube, o Paragominas. Ao deixar 2022, procurei informações e soube que treinava (ou melhor, estará treinando) o Itupiranga (PA). Mas, como ele próprio dirá no futuro, trata-se de um ‘vencedor’, que vai colecionar títulos como atleta e como técnico – mesmo com a inaptidão para balançar as redes adversárias. A pitoresca ‘média de 123 jogos por gol’ no Flamengo não impedirá que no próximo século ainda seja lembrado com carinho pelos rubro-negros, especialmente pela sua habilidade em roubar a bola dos adversários com ‘carrinhos’ precisos. Deus não dá asas à cobra e nem faro de gol pra ‘craque em desarme com carrinhos’, certo? Quando compreendemos isso, a vida fica precisando de menos frases feitas (clichês) para amenizar as aflições da alma. Como aquela da canção que ficou anos proibida: ‘Quem sabe faz a hora, não espera acontecer’.
PRA VER OS GOLS DO JOGO
https://www.youtube.com/watch?v=yCl2ZGft7Iw&ab_channel=FutebolDasAntigas
PRA VER O JOGO COMPLETO
https://www.youtube.com/watch?v=Os-juUSmHT0&ab_channel=Jos%C3%A9LeoneldeSouzaCordeiro
https://www.youtube.com/watch?v=k_azm_e5Hqo&ab_channel=FutebolDasAntigasLCS
PRA VER O GOL PERDIDO EM REPORTAGEM DA ÉPOCA
PRA VER O GOL PERDIDO E OS DOIS MARCADOS PELO FLAMENGO
https://globoplay.globo.com/v/6427803/
PRA VER LANCES DO JOGADOR
https://www.youtube.com/watch?v=XS40MyLzarA&ab_channel=ViniciusFreitas1895
FICHA TÉCNICA
INGLATERRA 2 x 3 BRASIL
Competição: Amistoso
Data: 17 de maio de 1992
Local: Estádio de Wembley, Londres, Inglaterra
Público: 53.428 pagantes
Árbitro: James McCluskey (Escócia)
INGLATERRA: Chris Woods; Gary Stevens, Martin Keown, Des Walker e Tony Dorigo (Stuart Pearce); Carlton Palmer, David Platt; Trevor Steven (Neil Webb) e Andy Sinton (David Rocastle); Tony Daley (Paul Merson) e Gary Lineker
Técnico: Graham Taylor
BRASIL: Carlos; Luís Carlos Winck; (Charles “Guerreiro”); Mozer; Ricardo Gomes e Branco; Mauro Silva; Luís Henrique (Valdeir); Raí e Valdo (Paulo Sérgio); Bebeto e Renato Gaúcho (Júnior)
Técnico: Carlos Alberto Parreira
Gols: Bebeto e David Platt
Cartão Amarelo: Charles “Guerreiro”
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