Jacozinho: um herói do futebol que não saiu das pranchetas
1985: na volta de Zico ao Flamengo, cronista vê o folclórico atacante brilhar mais que Maradona e "Uruba", criado pra representar o torcedor sofrido
Foi mais que um simples jogo de futebol; quase uma fábula. No campo, Zico, Maradona, Falcão, Roberto Dinamite, Cerezo, Júnior e os milhões do projeto de marketing criado para a volta do “Galinho” ao Flamengo. De “penetra” (pois não fora convidado pra festa), um pacato sergipano que joga pelo CSA de Alagoas e até ontem só era conhecido pela inocência e irreverência autênticas que demonstra nas cômicas reportagens de um jornalista na TV.
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Mas ao final da partida (Fla 3 x 1), era sobre este jogador de origem humilde que se amontoavam microfones e gravadores da imprensa esportiva. No Maracanã, querendo atenção e holofotes, também estava “Uruba”, corruptela do mascote rubro-negro que faz parte do planejamento promocional e foi apresentado como “a viva encarnação do torcedor rubro-negro, homem do povo sofrido, mas sempre disposto a enfrentar a vida e a acompanhar o Flamengo no melhor e no pior”.
Revelo a vocês, queridos leitores e leitoras de 1985, que o ícone de prancheta vai recolher as asas antes do fim do ano. Já o astro da noite ganhará eternidade nos anais folclóricos do Mundo da Bola. Tanto que me fez deixar o futuro, mais precisamente 2022, para ver de perto e vibrar com este que sempre será um dos lances mais insólitos, curiosos e emblemáticos do esporte: o gol de Jacozinho, aplaudido efusivamente por todos os flamenguistas presentes ao estádio. No Futebol, heróis e ícones podem até nascer na cabeça de publicitários, mas jamais com a força dos que surgem da Verdade.
Registre-se que o tal “Uruba” ganhará um dia estátua na sede da Gávea, mas é um equívoco já na origem. Ao justificar a criação do personagem, a agência de publicidade anunciou que estava dando a “volta por cima ao apelido pejorativo de urubu”. De fato, a ligação com a ave surgiu como provocação das outras torcidas, referindo-se ao fato de o Flamengo ter nas arquibancadas um grande número de negros – como se isso fosse depreciativo, vá entender! Esqueceram-se os gênios do marketing que desde 1969, mais precisamente em 1º de junho daquele ano, num clássico contra o Botafogo, maior rival à época, quatro estudantes rubro-negros capturaram um urubu no lixão do Caju, o esconderam enrolado numa bandeira do clube e, já no estádio, o soltaram no gramado, com o pavilhão amarrado às patas. Bastou o bichano alçar voo e sobrevoar a galera para a massa de vermelho e preto gritar: “É urubu! É urubu!”.
Pronto. A Suderj não informou, mas deveria: “sai o marinheiro Popeye e entra o novo mascote” – ainda mais porque o time ganhou por 2 x 1, após quatro anos sem vitórias sobre o alvinegro. Assumindo a negra ave de rapina, os flamenguistas transformaram o que era galhofa e racismo em orgulho.
Nascido na pequena Gararu (em 2022 ainda serão só 11 mil brasileiros morando lá), no Sergipe, Givaldo Santos Vasconcelos, o Jacozinho, também não abaixa a cabeça diante do preconceito. Àqueles que gargalharam ao vê-lo entrando em campo, junto a tantos craques, provou que podia estar ali, pois é, sim, bom de bola. Diante do goleiro Cantareli, tocou ela de um lado e pegou do outro, numa rara ‘meia-lua invertida’ (ou ‘drible da vaca’). Um golaço! E com lançamento de… Maradona. Nem La Fontaine pensaria roteiro melhor.
Como venho do futuro, imagino que vocês que me leem estejam ávidos em saber o que ele reserva a este canhoto veloz e baixinho (1,62m). Prometo contar, mas antes preciso dissolver previamente falácias sobre o jogo que se alastrarão até 2022, o que é compreensível, pois toda história mítica se altera com o tempo – pelo fascínio e inspiração que provoca. Não é verdade, por exemplo, que Zico ficou irritado e bravo com o simpático filho de Gararu. No fim do jogo, ao dizer em entrevista que houve “uma certa ‘forçação’ de barra”, referia-se não ao ingênuo atacante, mas sim ao circo paralelo que se formou ao redor do picadeiro da festa. Uma bem articulada trama que envolveu a política interna do Flamengo e a disputa entre duas emissoras de grande audiência na TV. Para que Jacozinho aparecesse no Maraca, foram outros que deram, digamos, o primeiro drible desta história.
Ninguém da agência de Rogério Steinberg – criador da campanha – ou das empresas patrocinadoras – Adidas, Coca-Cola, Mesbla e Sul América Seguros – convidou nosso herói para a festa. Tampouco Zico, que espantou-se ao dar de cara com Jacozinho no hotel que recepcionou os jogadores. Daqui a 37 anos, os bastidores dessa novela permanecerão confusos, mas não é leviano adiantar a vocês que alguns nomes, obviamente, estão envolvidos. O ‘Projeto Zico’, todos sabem, é encampado pela TV Manchete, que fez o lançamento com a exibição de um especial no domingo passado, cobriu os eventos ao longo da semana e transmitiu a partida. Mas Jacozinho só alcançou a fama nacional e foi alvo de outra campanha – por sua convocação para a seleção – por obra e graça de um repórter da TV Globo, o histriônico e carismático Márcio Canuto, que vem produzindo reportagens em que o jogador chega aos treinos montado num jegue ou comendo rapadura.
Nos próximos dias, anotem, Steinberg vai tirar o corpo fora e declarar que a decisão de inserir o atacante não passou por ele e sim pelo presidente do Flamengo, George Helal. Em futuras entrevistas, ainda com a voz fanhosa, dirá Jacozinho: “Nem sei como fui parar no Maracanã. Um empresário de nome Ronaldo me ligou para fazer o convite. Eu tive de pagar a passagem do meu bolso. Nem sabia que ia jogar”. Não levem a declaração como ‘prova’, até porque não há crime algum nisso, mas o presidente George Helal tem apenas um filho: Ronaldo George Helal. Rê-rê…
Como e o quanto a TV Globo e o repórter Canuto mexeram seus pauzinhos pra dar uma força à ideia, nunca se saberá. E nem quem convenceu o ortodoxo Telê Santana, treinador dos “Amigos do Zico”, a pôr Jacozinho em campo, no lugar do elegantérrimo Falcão! “Todos vão participar da festa”, declarou o técnico no túnel, minutos antes de a bola rolar. E pouco importa tudo isso, pois quem saiu ganhando foi a história do nosso Futebol, concordam? Ao ser chamado por Telê pra aquecer, as pernas de Jacozinho tremiam como vara verde, o que nunca negará. Mas quando o comandante perguntou se ele estava nervoso, saiu-se com essa: “Não, professor. É assim que a gente aquece lá no Nordeste”. Figuraça…
Mesmo sem nunca ter feito faculdade ou recebido uma chance na agência de Steinberg, Jacozinho é craque em marketing pessoal, habilidade que o ajudou a se destacar como jogador. Depois de driblar a origem pobre – lavando carro, vendendo laranja e carregando feira de madame – e passar por clubes menores, em 1981 chegou ao CSA, onde demonstrou faro de artilheiro e verve de publicitário. “Toda vez que tinha um jogo importante, eu dizia que ia marcar e dava nome aos gols: ‘Gol Marilda’ (homenagem a um personagem do programa de Chico Anysio), ‘Gol Guarda de Trânsito’… Eu aprendi isso com Dadá Maravilha. E tinha sorte de jogar bem e fazer o gol que havia prometido durante a semana”, contará.
A sagacidade atraiu o parceiro Márcio Canuto, da Globo, a quem chamará sempre de ‘pai’. Estava formada a dupla de humoristas, espécie de ‘Jô e Chico Anysio’ ou ‘Oscarito e Grande Otelo’ do Futebol brasileiro. Numa das reportagens de maior repercussão, muitos vão lembrar, Jacozinho apareceu relaxadamente tomando água de coco e aguardando a lista de convocados de Evaristo de Macedo para a Seleção. Caiu nas graças das torcidas, não apenas a do CSA. E na da Globo, claro, pois era bom de Ibope.
Mesmo antes dos 20 minutos finais, com Jacozinho em campo, a partida já era um belo espetáculo para os quase 40 mil torcedores que pagaram ingresso, gerando a grotesca renda de 395 milhões, coisas da nossa economia inflacionária. Lá pelo início da segunda década do próximo século, anotem, testemunharemos um período de repatriação de muitos craques, após enorme e doloroso êxodo para a Europa, mas nunca mais uma festança do porte desta campanha da agência Estrutural, liderada pelo talentoso e apaixonado flamenguista Steinberg – decisivo no ‘resgate’ do ídolo maior do Flamengo após três anos na Udinese, da Itália.
Além das estrelas do Mundial de 1982, como Oscar, Falcão e Cerezo, revelo que muitos que bateram esta pelada de alto nível no Maraca ainda terão os momentos de gravar seus nomes na história. Como o já endeusado Maradona, que fará ano que vem sua Copa eterna. Ou o lateral Branco, do Fluminense, que vai disputar três Mundiais, brilhando especialmente no último, em 1994. Zico, que ontem assinalou mais um gol, o 690º de sua carreira, seguirá brilhando em gramados do Brasil e do mundo (daqui a dois dias marcará outro tento na reestreia oficial, contra o Bahia), mas, sinto informar, terá que vencer uma gravíssima contusão, vítima de entrada criminosa que sofre ainda este ano – e mais não digo. Nem tudo no Futebol é diversão e alegria.
Por conta do provável envolvimento da Globo no episódio Jacozinho, o ‘Galinho’ ficará uns dois anos sem grandes afagos com a emissora, mas, com o coração gigante de sempre, logo volta às boas com a “plim-plim”. Carinhosas serão também as relações com Jacozinho. O primeiro reencontro acontece daqui a dois meses, no estádio Rei Pelé, em Alagoas, num jogo pelo Campeonato Brasileiro que a mídia esportiva vai badalar como “tira-teima”, com jornais de Maceió estampando manchetes sensacionalistas do tipo: “Depois de brilhar no terreiro de Zico, agora Jacozinho vai cantar de galo em sua casa”; ou “Jacó roubou a festa de Zico e vai mostrar quem é que manda aqui”. Adianto que o atarracado e atrevido ponta-esquerda vai aprontar das suas, mas o rubro-negro – sob o comando interino de um preparador físico de futuro promissor como técnico, Sebastião Lazaroni – saberá se impor, com grande exibição de Zico e 3 x 0 ainda na primeira etapa. Mesmo com o placar dilatado, ao sair para o intervalo, o sempre irreverente Jacozinho mandará mais uma: “Vamos virar!” Placar final: 4 x 0.
31 anos depois, podem me cobrar, o gigante Zico, já devidamente endeusado e aposentado, despencará novamente para a terra do tal Fernando Collor (cuidado com “Elle”!), apoiando e participando de um jogo batizado como “Reencontro”, em defesa do Futebol sem violência e com parte da verba destinada a ajudar Jacozinho. Sim, ele vai precisar. Ao fim da carreira profissional iniciada em 1976, o doce a cativante Jacó, é meu dever alertar, vai sofrer com o alcoolismo, se envolver com a política alagoana e cair numa pindaíba danada, chegando a ter que morar debaixo de uma arquibancada de um clube. Em 2000 e blau, encontrará uma saída como pastor evangélico e lançará um CD cantando… Depois de conquistar cinco títulos alagoanos e três vice-campeonatos da Taça Brasil pelo CSA, terá uma badalada transferência para o Santa Cruz (PE). Seleção nunca, mas vestirá a camisa do Vasco, o de Sergipe; do Corinthians, o de Presidente Prudente; e o Flamengo, aquele do Piauí. Mas sempre dando a volta por cima, superando as agruras da vida.
A vocês, queridos leitores e leitoras de 1985, só me resta dizer que este ano ficará marcado pelo surgimento de algumas personalidades ícones para o Brasil, como o falecido Tancredo, primeiro presidente que elegemos de forma direta após a Ditadura, e o jovem Ayrton Senna, que apenas começou a jornada ao vencer, em abril, seu primeiro GP na Fórmula 1, em Portugal. Mas não descartem da lista este sergipano de fibra chamado Jacozinho. Um cidadão que não vai desistir jamais. Um brasileiro de carne e osso.
PRA VER OS LANCES DO JOGO E O GOL DE JACOZINHO:
FICHA TÉCNICA
Flamengo 3 X 1 ‘Amigos de Zico’
Competição: Amistoso pela volta de Zico ao Flamengo
Data: 12 de junho de 1985
Local: Maracanã
Público: 39.263 pagantes
Renda: Cr$ 395 milhões e 105 mil cruzeiros (tempos de inflação)
Árbitro: José Roberto Wright
Auxiliares: Élson Pessoa e Luis Antônio Barbosa
FLAMENGO: Fillol (Cantareli); Jorginho (Aílton), Leandro (Ronaldo), Guto e Adalberto (Nem); Andrade (Elder), Adílio (Júlio César) e Zico; Titã (Heider), Chiquinho e Marquinhos (Vinícius)
TÉCNICO: Telê Santana
“AMIGOS DE ZICO”: Paulo Victor (Gilmar); Pedrinho (Alemão), Oscar, Edinho Nazareth (Delgado) e Branco; Falcão (Jacozinho), Júnior e Maradona; Toninho Cerezo, Roberto Dinamite (Nunes) e Eder Aleixo (Tato)
Gols: Primeiro Tempo – Tita, aos 17’; Marquinhos, aos 191; 1 Zico, aos 24’ (Flamengo); Segundo Tempo – Jacozinho, aos 26’