Bate-volta — dia 10: já são quantas guerras depois do ‘jogo da paz’?
Antes de ver reencontro de Irã e EUA em Copas, hoje no Catar, cronista vai ao jogo de 1998, tão tenso que escalaram árbitro com mais neutralidade política
Quem se chama Urs Meier não ‘bobeia’! (Ou ‘bobéier’, há controvérsias). O árbitro suíço cujo sobrenome parece homenagem ao famoso bairro da zona norte carioca tinha todas as credenciais para ser escalado ontem, no mais esperado encontro desta Copa da França, entre as seleções dos Estados Unidos e do Irã, há 10 anos sem conflito armado mas ainda mantendo relações diplomáticas e políticas de poucos sorrisos – nenhum, pra ser mais exato. Meier fala quatro idiomas – alemão, francês, inglês e espanhol –, é leitor voraz, amante de Jazz, esqui, velocidade e viagens pelo mundo. Só mesmo um juiz de futebol assim, com perfil de ‘Embaixador’, seria capaz de conduzir, ou mediar, com tranquilidade e elegância, o tenso ‘olho-no-olho’ desta partida pela segunda rodada do Grupo F, em que, pela primeira vez, estiveram frente à frente nos gramados as duas nações, digamos, ‘inimigas’. Um ‘Sincerão da Bola’! Também diplomaticamente, apresento a vocês, queridos leitores e queridas leitoras de 1998, minhas credenciais: vim do futuro, do próximo Século, com uma Máquina do Tempo, e voltarei à minha época, 2022, no dia do segundo confronto das duas seleções em Copa do Mundo, que estará rolando no Catar, no Oriente Médio. O ‘Jogo da Paz’, assim batizaremos, ainda será lembrado, pouco importando o placar (Irã 2 x 1), fundamentalmente pelos belos exemplos de humanismo e cordialidade a que assistimos – como as flores entregues pelos iranianos aos adversários americanos ou o abraço de todos para a foto oficial. De triste, sou obrigado a revelar que daqui a 24 anos os governantes (não os povos!) de Irã e Estados Unidos ainda não se ‘bicarão’ (dois ‘bicudos’!) e, pior, guerras e conflitos entre países continuarão acontecendo em grande número pelo mundo. Em 2022, pelo menos 28 estarão em curso no período da Copa. Mesmo assim, para os que defendem a Paz, ontem foi dia de ‘batalha vencida’.
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Se você perdeu esta aula, relembro que o pontapé inicial da animosidade Irã-Estados Unidos foi dado pelos americanos – sempre enxeridos –, que, em 1953, junto com os ingleses, apoiaram o golpe de Estado que derrubou um Primeiro Ministro eleito democraticamente, Mohamed Mossadeq, restaurando a monarquia ao Xá Mohamed Reza Pahlevi. Nasceu ali, entre os iranianos radicais, a identificação dos EUA como o tal ‘Grande Satã’. Mas foi em 1979 que as pendengas se acirraram, tanto pelo sequestro da Embaixada americana na capital Teerã, em que estudantes com carteirinha de terroristas mantiveram 52 norte-americanos como reféns por 44 dias, como por conta da consolidação da Revolução Islâmica, que levou ao poder o Aiatolá Khomeini. O novo líder, imposto, implantou uma teocracia com rigorosos valores islâmicos e, ao entrar em guerra contra o vizinho Iraque, viu os americanos (lá vão eles de novo!) se perfilarem com o inimigo, em apoio ao presidente Saddam Hussein. Aí, babou geral! Acho que gabaritei. Anotem, jovens, porque no futuro pode cair no Enem (assim chamaremos o bom e velho Vestibular)!
Por tantos imbróglios, o governo do Irã, desde o sorteio dos jogos do Mundial da França, há seis meses, tratava o confronto de ontem como uma ‘guerra’, um ‘tira-teima’ de forças, embarcando nesta de que Copas do Mundo são como gladiadores se matando no Coliseu, um circo (entretenimento) para suprir a ausência de batalhas de verdade, com sangue e morte. Sorte que os atletas em campo foram superiores aos que os governam, preferindo e evocando o espírito da Paz. O elenco iraniano, a propósito, tinha um motivo extra para ignorar a visão dos que comandam o país: foi o governo autoritário do Aiatolá que, há 14 anos, matou o jogador – e capitão da seleção – Habib Khabiri, tido como ‘espião’, suposto informante do Ocidente. Quem foi o cego que inventou essa história de “futebol, política e religião não se discute”? É tudo uma coisa só. Vida!
Historicamente, futebol e política já entraram em campo juntas outras vezes, como o embate em 1974 das duas ‘Alemanhas’ (Ocidental e Oriental) ou, em 1978, a ditadura argentina se apropriando e manobrando os jogos da Copa em seus domínios. Em 2022, os americanos ainda manterão sanções econômicas ao Irã, mas a tensão estará bem menor, embora, cerca de 3 anos antes da Copa do Catar, um lunático morador da Casa Branca, homônimo do Pato Donald, vai ordenar que o exército americano realize um ataque com ‘drones’ (espécie de ‘aviãozinho de controle remoto’, mas com bem mais tecnologia) a um comboio iraniano próximo ao Aeroporto Internacional de Bagdá, no Iraque, o que resultará na morte de 10 pessoas, entre elas um dos mais importantes líderes militares do futuro no Irã, cujo nome omitirei em respeito à família. Como resposta, o Irã fará ataques a bases americanos no vizinho Iraque, sem deixar feridos. E espero que venhamos a ficar por aí… E que nem inventem de, na Copa de 2022, continuar a briga ‘lá fora’, no campo, acertando joelhos e canelas do oponente. Tipo crianças na escola: “Me espera na saída!”
Quando deixei o futuro, o clima já tinha esquentado. Vou adiantar o rolo a vocês: dois dias antes da partida, a Federação Iraniana de futebol pedirá à FIFA que os Estados Unidos sejam excluídos do Mundial, indignados e ofendidos pela publicação na internet (difícil imaginar a força que uma mísera postagem na web terá força e impacto daqui a 24 anos) de uma imagem mostrando a classificação do Grupo B em que a bandeira iraniana aparece sem o emblema da República Islâmica ao centro. Os americanos vão confessar a manipulação mas justificando tratar-se de mais um gesto em defesa dos direitos das mulheres no país-sede da Copa. Isso ao mesmo tempo em que um futuro ex-treinador dos EUA, alemão (‘Nota da Redação de Placar em 2022: Jurgen Klinsmann’), estará em bate-boca público com o técnico português à frente do selecionado iraniano. Ou seja: duas nações que vão estar debatendo questões como acordo de capacidade nuclear, com impacto direto no preço do petróleo, mas que se comportam como duas criançonas querendo provar quem é mais forte e mais valente. O problema é que, neste caso, se o pau quebra mesmo, podem acabar ‘chutando’ bombas pra tudo que é lado, inclusive no Brasil.
Na disputa esportiva, em que a única arma é o talento com a bola nos pés, antes do Mundial do Catar já terá acontecido uma segunda partida entre os turrões, empate (1 x 1) em amistoso que será realizado daqui a dois anos na Califórnia (EUA), por iniciativa dos americanos (nada como presentear flores!) Se ontem, até as torcidas adversárias se confraternizaram no estádio de Lyon, é difícil prever o que me aguarda no jogo de 2022. O Mundial do Catar, adianto a todos, terá começado com várias manifestações políticas nos gramados: 1) a seleção do próprio Irã recusando-se a cantar o hino nacional, em protesto ao regime teocrático e à repressão às mulheres (o país estará há meses mobilizado pela morte de uma jovem, espancada pela “polícia da moralidade” por não utilizar o ‘hijab’, as vestes com véu); 2) Os ingleses se ajoelhando antes de a bola rolar, contra o racismo; 3) O time da Alemanha se perfilando para a foto com as mãos tampando a boca, numa manifestação contra a Fifa, que terá proibido gestos de apoio à comunidade LGBTQIA+ (essa não terei espaço para explicar, mas considere que seja a comunidade de homossexuais e outras opções e perfis, todos criminalizados no Catar); 4) e a Dinamarca trajando uniforme monocromático, brado pelos direitos dos milhares de trabalhadores que terão construído os estádios em péssimas condições análogas à escravidão. E por aí vai… Menos mal que o nosso ‘mediador’ do jogo de ontem, o suíço Meier, aquele que não ‘bobeia’, estará, aos 63 anos, trabalhando como instrutor da FIFA, dando aulas aos árbitros do Mundial. Vamos mesmo precisar! Ufa!
P.S.: Da série ‘Comentarista do Futuro também é cultura’: o bairro carioca tem este nome por ter crescido em terras que pertenceram a Augusto Duque Estrada Meyer, descendente de alemães e grande amigo de D. Pedro II.
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FICHA TÉCNICA
IRÃ 2 X 0 EUA
Competição: Copa do Mundo de 1998, na França
Data: 21 de junho de 1998
Horário: 21h (local)
Local: Estádio Gerland, em Lyon, na França
Público: 39.100
Árbitro: Urs Meier (Suíça)
Assistentes: Laurent Rausisi (Suíça), Nicolae Grigorescu (Romênia)
e Lucien Bouchardeau (Nigéria, 4º Árbitro)
Irã: Abedzadeh; Khakpour, Pashazadeh e Zarincheh (Sadavi Sad); Estili, Mohammadkhani (Peyrovani), Bagheri e Mahdavikia; Azizi (Mansourian), Ali Daei e Minavand. Técnico: Jalal Talebi
Eua: Keller; Regis, Kejduk e Pope; Ramos (Radosavljevic), Jones, Dooley (Maisonneuve), Moore e Reyna; McBride, Wegerle (Stewart) Técnico: Steve Sampson
Gols: Primeiro Tempo: Estilo, aos 40′; Segundo Tempo: Mahdavikia,
aos 39′; e McBride (EUA), aos 42′
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