Publicidade
O Comentarista do Futuro ícone blog O Comentarista do Futuro Ele volta no tempo para dar aos torcedores (alerta de!) spoilers do que ainda vai acontecer

A ‘Síndrome de Hulk’ no futebol

Cronista vai a 1972 ver o Grêmio x Cruzeiro em que o calmo e nada violento lateral Everaldo, do Escrete de 70, tem um ‘ataque de fúria’ contra o juiz

Foi certamente uma das cenas mais violentas e inesperadas da história do Futebol. Numa repentina explosão de raiva, o jogador desferiu um soco no árbitro da partida, levando-o a nocaute no gramado. Mais surpreendente ainda, queridos leitores e queridas leitoras de 1972, é o que vou lhes revelar agora: a cena que descrevo não é a que vimos ontem no Estádio Olímpico, durante o empate (1 x 1) entre Grêmio e Cruzeiro, e sim a que aconteceu, ou melhor, acontecerá daqui a 49 anos, em 2021, coincidentemente também no Rio Grande do Sul, num jogo entre Guarani e Sport Club São Paulo (* ‘Nota da Redação da Placar abaixo’). Não é difícil concluir, portanto, que meio século não será tempo suficiente para extinguir as agressões descabidas do esporte. Como sou um ‘Viajante do Tempo’, essa é a notícia triste que trago a todos vocês do futuro. Deixei 2022 às vésperas de se completar 50 anos do pugilismo indefensável registrado em partida da 12ª rodada do Brasileiro, principal campeonato do país que acaba de se tornar o único tricampeão do planeta. Até o também imbatível Éder Jofre, outro orgulho nacional, deve ter desaprovado a atitude. Ainda mais vinda do sempre tranquilo, leal e bem comportado lateral-esquerdo Everaldo, titular no Tri do México e agraciado, há apenas quatro meses, com o ‘Belfort Duarte’, prêmio concedido a jogadores de bom comportamento em campo. Mas faço uma ressalva. No ‘campo’ da Medicina, vamos, sim, evoluir muito e, quando lá chegarmos, em 2022, já terá sido identificada clinicamente a ‘Síndrome de Hulk’, doença que acomete algumas pessoas e as impede de controlar impulsos agressivos. E, de fato, é razoável supor que o nosso querido Everaldo, naquele instante, tenha mesmo ficado ‘verde de raiva’.

Publicidade

Assine #PLACAR por apenas R$ 9,90/mês. Não perca!

Antes de seguir nesta resenha, preciso explicar a vocês, queridos torcedores de 1972, o quanto é adequado recorrer à expressão popular que associa a coloração esmeraldina à ira durante um ‘Ataque de Fúria’ (outro nome da patologia). E principalmente o que vem a ser o citado ‘Hulk’ – figura que no futuro ganhará fama mundial mas até hoje só deu as caras no Brasil numa mísera e única revistinha de quadrinhos. Trata-se de um super-herói – tipo o atualmente adorado cowboy ‘Tex Dawson’ – que demonstra extrema calma na vida cotidiana, como médico, ‘Dr. Banner’, mas transforma-se num animal irracional e violento ao se irritar com alguma coisa, mesmo que de diminutas proporções, como o pênalti marcado ontem pelo árbitro José Favile Netto, a vítima. Criado nos Estados Unidos há 10 anos, o personagem é um imenso homem (ou ‘fera’) que saiu das pranchetas dos desenhista com a pele cinza, mas por um erro da gráfica que imprimiu o gibi, acabou ficando… VERDE! – daí a ilação. Saibam que ‘Hulk’ irá muito além dos limites dos quadrinhos, brilhando na TV, nos cinemas, na cultura pop e, como visto, até na Ciência. O estrelato, inclusive, fará com que, no início do Século 21, tenhamos um jogador (de Seleção!) com este apelido, mas sem dar socos em ninguém. Mas nos cartórios, ao menos que se saiba, não teremos ninguém batizado assim. Já ‘Everaldos’, continuarão a existir muitos.

O craque gaúcho não demora a declarar publicamente seu arrependimento. Aliás, consciente do grave erro que cometeu, logo em seguida ao ‘direto’ no rosto de Favile, dirigiu-se espontaneamente – ou confessadamente – para fora do campo. Jamais saberá explicar exatamente quais os motivos que o levaram a isso, mas nos próximos dias a imprensa esportiva não economizará laudas para debater algumas questões que, supõe-se, podem ter sido causadoras da explosão, iniciando debates sobre questões como o ‘excesso de jogos no campeonato’, ‘qualidade da arbitragem brasileira’ e o ‘comportamento abusivo e humilhante dos juízes ao se dirigirem as atletas’ – todas elas ainda na pauta do dia daqui a 50 anos. Pra início de conversa, preciso dizer: foi pênalti! E mesmo que não fosse nada justifica o soco dado por Everaldo no ‘Homem de Preto’. Talvez só a ‘Síndrome de Hulk’ mesmo. E ainda bem que o apito não estava na boca do juiz. O estrago seria maior.

Publicidade

Já os ‘Homens de Branco’, jalecos, no futuro entenderão que a patologia pode ter raízes em violências e abusos sofridos pelo agressor na infância, mas isso somente em níveis graves da doença, quando há recorrência no comportamento, e aí é melhor usar o nome científico: ‘Transtorno Explosivo Intermitente’ (TEI). Não é o caso do lateral gremista. Outros fatores associados a explosões de raiva deste tipo serão a Depressão e o Estresse, e nesse ponto Everaldo tem sim o que relatar ao psicólogo – caso ele procure, óbvio, mas é uma boa ideia. Todos sabem a tristeza e revolta que o jogador sentiu recentemente, ao ser inexplicavelmente preterido pelo técnico Zagallo na última convocação do nosso escrete. Para agravar a tensão, a CBD resolveu marcar um amistoso justo contra o selecionado gaúcho, o que provocou, como todos vocês sabem, aquele espetáculo de animosidade contra a Seleção Brasileira, com torcedores gremistas e também os colorados, do Internacional, unindo vozes num coro a favor do lateral, num 3 x 3 que será sempre lembrado como o ‘Jogo da Vingança’. Em poucos dias, aguardem, Everaldo quebrará o silêncio pedindo desculpas, dizendo que pensa em devolver o prêmio Belfort Duarte (não vão aceitar a renúncia, adianto) e revelando o que pensa sobre tudo: “Foi sobrecarga emocional”.

Soco em Favile foi resolvido na delegacia
Soco em Favile foi resolvido na delegacia

O relógio marcava 32 minutos do primeiro tempo quando o gramado do Olímpico teve o seu momento de ringue de boxe. Everaldo já vinha demonstrando nervosismo, tanto que 7 minutos antes, ao reclamar veementemente com Favile, levara um cartão amarelo. Um detalhe do lance pouco falado é que, ao advertir o atleta, o juiz ergueu na outra mão o cartão vermelho, como uma espécie de ameaça, assustando e irritando o lateral. Depois, quando Palhinha arrancou pelo lado direito da área e foi derrubado – há os que acham que o desarme foi ‘na bola’ – por Beto Bacamarte, Favile não teve dúvidas: apontou para a marca de cal e iniciou aquela clássica corridinha para se posicionar ao lado, entre o cobrador e o arqueiro. ‘Pown’! Nas imagens da TV só faltou isso: um balãozinho com alguma palavra inventada para imitar o som de uma traulitada na cara. E foi forte o soco, atingindo olho e causando hemorragia no nariz da chamada ‘maior autoridade em campo’. Depois de ser atendido e erguer-se para levar a partida adiante, o juiz mal apitou e já correu para chamar a polícia e dar voz de prisão ao jogador. Mas Everaldo, evitando o flagrante, já avançara por algum flanco esquerdo desconhecido do estádio. Ele sempre soube se defender.

A agressão ainda vai ter novos capítulos, com Favile prestando queixa na delegacia e o policial responsável indo à emissora de TV assistir à cena que não vira (deve ser torcedor do Inter, o ‘delega’ …). Teremos briga também no campo das ideias, uns defendendo a punição de 1 ou 2 anos de afastamento ao jogador, outros encontrando argumentos que em 2022, suspeito, não seriam muito bem vistos pelo senso comum, politicamente correto. No Rio, o colunista Zózimo Barroso do Amaral daqui a poucos dias escreverá numa crônica:

Publicidade

“Quando um jogador como o lateral do Grêmio, modelo de correção e disciplina na sua carreira de atleta, chega ao ponto de mandar o braço na cara do juiz, alguma coisa deve estar errada! É muito mais lógico a gente procurar a origem da atitude do atleta exemplar como o Everaldo, do que a punição pura e simples de um crime de que ele não é o único autor” 

O texto depois será citado e reproduzido no jornal Zero Hora por outro ‘craque’ do jornalismo, João Saldanha, junto a novas ponderações de defesa, como a desumana maratona de jogos e as muitas viagens de avião por todo o Brasil que destroem a saúde do jogador. Dirá em seu texto Saldanha: “Esse negócio de juiz dar queixa em delegacia foi muito chato. A coisa poderia ter ficado apenas no terreno esportivo. (…) A briga em futebol é uma coisa totalmente impessoal (…) Ele (Everaldo) não tem nada contra o Favile Netto.” O assunto vai render. Hoje, podem atestar, só se fala nisso nas ruas. Afinal, no Brasil somos 90 milhões de técnicos de futebol e também 90 milhões de desembargadores. E, além do mais, atire o primeiro tijolo quem nunca na vida teve ao menos um momento ou um ‘Dia de Fúria’? Isso dá filme…

O descontrole episódico de ontem, assim como (alerta de spoiler!) a suspensão de um ano que receberá pelo soco e, no futuro, o precoce encerramento de sua carreira – por motivos que nada têm a ver com os gramados* – não conseguirão apagar a grandeza da história de Everaldo Marques da Silva no futebol brasileiro e mundial. Nascido em Porto Alegre (1944), ele começou no próprio Grêmio, com breve passagem (por empréstimo) pelo Juventude em 1964. Em 1970, viajou para a Copa no México como reserva, mas ganhou a vaga do jovem Marco Antônio, do Fluminense, fala-se que por cumprir à risca as ordens de Zagallo e por dar mais segurança à defesa e liberdade aos craques ‘amontoados’ no meio-campo. Dizem ainda que foram os próprios jogadores, liderados por Brito, Clodoaldo e Gerson, que fizeram o alerta e sugeriram a troca ao treinador. 

É mesmo um marcador implacável, tanto que foram dele os desarmes que, na final contra a Itália, deram início às jogadas dos gols de Gerson e Carlos Alberto. Nos treinos, costuma ficar um bom tempo sozinho aprimorando sua maior qualidade, a ‘roubada de bola’, jogada que chama de ‘bote’: posiciona uma camisa velha a sua frente e se joga numa espécie de ‘carrinho’, tentando deslocar a roupa sem levantar um fiapo de grama. Ambidestro, tricampeão gaúcho (1966, 1967 e 1968) e mundial, é dono de um futebol aparentemente simples mas muito eficiente. No futuro, será erroneamente taxado de ‘mediano’, muito pelo fato de jogar ao lado de gênios como Pelé, Rivelino, Gérson e cia. Mas não difere deles: será eterno.

Imprensa da época noticiou o caso
Imprensa da época noticiou o caso

Ao voltar ao Brasil com o Caneco, há dois, foi alvo de uma das maiores e mais belas demonstrações de carinho e reconhecimento nas ruas de Porto Alegre, por ser o primeiro jogador gaúcho numa Seleção Brasileira campeã do mundo. Pelo feito, seis dias após sua chegada, a diretoria do Grêmio decidiu homenageá-lo inserindo uma estrela dourada na bandeira oficial do clube. E é tentando botar um pouco mais de serotonina no sangue do jogador, que informo a todos e especialmente a ele que, em 2022, a estrela ainda estará lá. Dá um sorriso aí, Everaldão! Na vida, tudo passa! Menos os ponta-direita, é claro! 

* Nota da Redação da Placar, em 2022 (1): o cronista refere-se ao episódio ocorrido na segunda divisão do Campeonato Gaúcho, em 2021, quando o jogador William Ribeiro (do Sport Club) socou o juiz da partida, Rodrigo Crivellaro, e depois, com a vítima no chão, ainda o chutou na nuca. Isso tudo apenas por ter recebido um cartão amarelo 

* Nota da Redação da Placar, em 2022 (2): Everaldo Marques da Silva faleceu tragicamente num acidente de carro ocorrido no Km 43 da BR-290, estrada que liga Uruguaiana a Porto Alegre, dois anos após esta partida com o Cruzeiro, em 27 de outubro de 1974. O jogador dirigia o ‘Dodge Dart’ que ganhara de presente de uma concessionária após a conquista do Tri no México e chocou-se com um caminhão. Na colisão, morreram também uma irmã, esposa e uma filha do atleta; um tio, a cunhada e a outra filha sobreviveram. Ele retornava de Cachoeira do Sul, onde fizera uma partida de veteranos e vários comícios políticos, pois era candidato a deputado estadual no Rio Grande do Sul. Tinha então 30 anos. Atuou em 398 jogos (28 deles pela Seleção Brasileira); fez 2 gols, ambos pelo Grêmio. Além do Mundial de 1970, pelo Brasil esteve nas conquistas da Copa Rio Branco (1967) e da Copa Roca (1971). Sua última partida antes da morte foi pouco mais de um mês antes do acidente, em 8 de setembro de 1974: Esportivo 0 x 0 Grêmio. Neste dia, foi escalado como lateral-direito.

 

PRA VER OS GOLS DA PARTIDA

https://www.youtube.com/watch?v=3BOuHsapOI4&ab_channel=CruzeiroemGols

PRA VER O SOCO NO ÁRBITRO

https://www.youtube.com/watch?v=Nr9MIIsCOYc&ab_channel=rluiz66

LANCES E MOMENTOS DA CARREIRA DE EVERALDO MARQUES

https://www.youtube.com/watch?v=pG2ZZF9Fn5w&ab_channel=BRAZUCAESPORTECLUBE

A TRANSMISSÃO PELO RÁDIO DA CHEGADA DE EVERALD A PORTO ALEGRE, APÓS O TRI NO MÉXICO

https://www.youtube.com/watch?v=uK87pW8yOTM&ab_channel=Gr%C3%AAmioHist%C3%B3rico

IMAGENS DE OUTRAS AGRESSÕES a árbitros nahistótria 

https://www.dailymotion.com/video/x23cuvi

FICHA TÉCNICA

GRÊMIO 1 x 1 CRUZEIRO

 

Competição: Campeonato Brasileiro de 1972 – 1ª Fase – 12ª Rodada

Data: 18 de outubro de 1972 (quarta-feira)

Local: Estádio Olímpico, em Porto Alegre (RS)

Público: 23.667 pagantes

Renda: Cr$ 147.548,00

Árbitro: José Favile Netto

Auxiliares: Jeferson de Freitas e Airton Bernardoni

GRÊMIO: Jair; Everaldo, Ancheta, Beto Bacamarte e Jorge Tabajara; Jadir e Ivo Wortmann; Buião (Renato Cogo), Oberti, Lairton e Loivo

Técnico: Daltro Menezes

 

CRUZEIRO: Hélio; Lauro, Darci Menezes, Fontana e Vanderelei; Piazza (Rinaldo) e Zé Carlos; Eduardo Amorim (Misael), Roberto Batata, Palhinha e Lima

Técnico: Hilton Chaves 

Gols: Primeiro Tempo: Lima, aos 41’ (pênalti); e Oberti, aos 47’ 

Cartões Vermelhos: Everaldo e Fontana

QUER FALAR COM O COMENTARISTA DO FUTURO? QUER CONTAR ALGUMA HISTÓRIA OU SUAS LEMBRANÇAS DESTE JOGO?

Escreva para o colunista: [email protected]

Assine o Amazon Prime e garanta 30 dias grátis de acesso ao Prime Video e outras vantagens

Publicidade