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Venezia FC ressurge após pandemia e maior inundação em 53 anos

Volta à elite do futebol italiano, dezenove anos depois, passa pela superação de graves crises e resgate do orgulho próprio do clube e dos venezianos

Os registros da festa promovida há poucos dias pelo Venezia FC, no centro da cidade histórica que carrega o nome do clube, ao norte da Itália, próximo a Piazza de San Marco, rodaram o mundo no início da semana. Jogadores passeando de gôndolas, o charmoso meio de transporte dos canais locais, uma grande aglomeração e um mergulho inesperado do técnico Paolo Zanetti, já ao anoitecer, selaram o ápice da euforia. A volta à elite do futebol do país, após quase vinte anos de ausência, transcendeu o futebol, representou o resgate do orgulho próprio dos venezianos.

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Veneza parecia viver uma espécie de inferno particular em 12 de novembro de 2019. Foi a partir desta data que os cerca de 50.000 “verdadeiros venezianos”, como se auto intitulam os moradores da área insular, viram de perto a um dos maiores desastres da história da cidade: o fenômeno “acqua alta” (água alta, em tradução livre para o português), que ocorre periodicamente quando o Mar Adriático sobe de nível. Desta vez, porém, as marcas eram devastadoras.

O maior registro desde 1966, com a água atingindo 1,87m de altura, provocou um prejuízo bilionário ao governo local. “O centro histórico é espremido como um limão siciliano”, diziam historiadores na época.

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Alta da maré em 12 de novembro de 2012 causou prejuízo bilionário à cidade -
Alta da maré em 12 de novembro de 2012 causou prejuízo bilionário à cidade – Giacomo Cosua/NurPhoto/Getty Images

Monumentos, hotéis, cafeterias e pontos conhecidos, como a Basílica de São Marcos, estavam alagados por água, enquanto figuras públicas se solidarizavam pela cidade. Meses depois, a Itália ainda empilharia outros números preocupantes, desta vez relacionados a pandemia do novo coronavírus. O time local, de campanha modesta na Série B, a segunda divisão do país, era só um coadjuvante.

Exatos 565 dias depois, cidade e clube vivem o ápice de um romantismo, resgatado pela confirmação do acesso para a Série A – com um gol nos acréscimos no empate por 1 a 1 na decisão diante do Cittadella, marcado justamente por um veneziano.

“Foi uma emoção indescritível. Ir para a Série A com a equipe de sua cidade já teria sido algo fantástico. Se somarmos ao que aconteceu, com o meu gol decisivo, tudo teve um sabor ainda mais extraordinário. Sou muito apegado a Veneza, a minha esposa é de Veneza e nossas famílias, também. É um sentimento que já carrego do meu avô, de meu pai e o meu tio”, disse a PLACAR o atacante italiano Riccardo Bocalon, protagonista do enorme feito.

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“A maré alta foi um grande problema, um verdadeiro desastre, mas a força dos venezianos fez com que, depois do pior, a cidade brilhasse novamente. A pandemia foi um pesadelo para todo o mundo, as mortes aumentaram e tivemos, além de perdas humanas, as econômicas. Com certeza, podemos ser um símbolo de um renascimento”, completa.

Depois de 38 jogos na Série B e a quinta colocação geral, custou ao Venezia passar pelos temidos playoffs, um mini torneio eliminatório envolvendo seis equipes para selecionar o dono da última vaga de acesso. As duas primeiras foram garantidas por Empoli, o campeão, e Salernitana, o vice.“Vivemos de perto toda a pandemia na cidade. Vemos uma cidade completamente diferente, agora, algo fascinante e espero que seja algo único”, contou Bocalon.

A conquista do acesso valeu como a de um título. A festa veneziana iniciou no centro da cidade e seguiu em Mestre, polo industrial situado em frente as ilhas de Veneza, onde fica localizado o centro de treinamento do clube. “Sentimos muito carinho e entusiasmo dos torcedores, tudo aumentou ainda mais com o desfile nas águas, parecia cenário de filme”, relata o jogador

Retomada passou por rival e muita solidariedade

Paolo Zanetti conduziu os Leonis ao retorno para a elite do futebol italiano -
Paolo Zanetti conduziu os Leonis ao retorno para a elite do futebol italiano – Venezia FC/Divulgação

Curiosamente, coube a Zanetti, como jogador formado no maior arquirival, o Vicenza, conduzir os Leoni ao retorno triunfal. A ligação improvável entre clubes, no entanto, nasceu bem antes, justamente em meio ao momento de maior dificuldade da cidade, em 2019.

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Na ocasião, o Vicenza pediu por doações e, também, anunciou a produção de uma camiseta para impulsionar a retomada das “atividades econômicas, sociais e culturais” da cidade. A principal organizada, I-Fioi Dea Sud, estendeu uma bandeira com o Leão de São Marco, símbolo de Veneza.

“Existem coisas que vão muito além da rivalidade esportiva e o drama que Veneza está vivenciando é claramente uma delas”, disseram os torcedores à época. A comoção também atingiu a Federação Italiana de Futebol (FIGC, na sigla do idioma), jogadores, ex-atletas e dirigentes de outros clubes.

“Estou perto de todos os venezianos e desta cidade maravilhosa que tanto me deu. Forza Leoni, Forza Venezia!”, disse o ex-atacante Filippo Inzaghi, que treinou a equipe entre 2016 e 2018 e conquistou o acesso para da Série C para a Série B. Outros clubes também anunciaram a doação de rendas de jogos para ajudar.

Camisa ‘cult’, balsas e outras curiosidades

Os Arancio Nero Verde (laranja, preto e verde), termo alusivo as cores adotadas, reservam peculiaridades. O clube manda os seus jogos no pequeno estádio Pier Luigi Penzo, com capacidade para 7.300 pessoas e acesso somente por balsas ou barcos. São cerca de quarenta minutos de deslocamento de Mestre até o local dos jogos. Também é possível chegar caminhando, numa rota longa e pouco utilizada.

“Os adversários adoram, é uma experiência única, um trajeto bem bonito. Pelo limite de velocidade acaba durando cerca de quarenta minutos, mas não é longo”, conta a PLACAR o goleiro brasileiro Bruno Bertinato, 23 anos.

“O principal meio de transporte são as bicicletas e os barcos. O acesso ao nosso estádio é assim, passamos pela cidade, pela laguna, pelo mar. Veneza não se anda de carro, se faz tudo a pé ou de barco. Então, vivenciamos bastante o calor da torcida, apesar da maior parte morar em Mestre”, acrescentou.

Estádio Pier Luigi Penzo, pequeno reduto do FC Venezia -
Estádio Pier Luigi Penzo, pequeno reduto do FC Venezia – FC Venezia/Divulgação

Bertinato chegou ao Venezia em janeiro de 2019, após um acordo de liberação com o Coritiba. Na última temporada, acabou emprestado ao Vis Pesaro, clube 14º colocado na Série C, a terceira divisão. Antes, jogou pelo Calcio Lecco, mas já foi o primeiro reserva da equipe. “Foram vários atrativos para aceitar o Veneza: o fato de possuir cidadania italiana, um contrato de três anos e meio e a promessa que montariam um time competitivo, para subir a Série A. Era uma grande vitrine, espero jogar agora”, explicou.

O clube possui sua própria balsa. Em dias de jogos, disponibiliza balsas de Mestre para Veneza a torcedores que desejam ir as partidas. O trajeto também pode ser feito a pé. Ainda há incertezas se o clube poderá utilizar o local para receber nomes como Romelu Lukaku, Zlatan Ibrahimovic, Cristiano Ronaldo e outros.

“Há um projeto aprovado pela comunidade local para a construção de um estádio em Mestre, mas, por enquanto, prefeito e presidente do clube conversam para que seja liberado o estádio aqui”, relata Bertinato. No fim da década de 90, quando o clube disputava a Série A, outros brasileiros passaram pelo clube, como o atacante Tuta, o zagueiro Fabio Bilica, além de outros nomes conhecidos por aqui como o sérvio Dejan Petkovic e o uruguaio Alvaro Recoba.

Nos últimos anos, o uniforme do Venezia também chamou atenção e ganhou ares “cult” entre os colecionadores por ser belo e com um design único. Além disso, a equipe do norte da Itália era uma das poucas fora da elite a ser patrocinada pela Nike. O potencial turístico de Veneza e sua ligação com luxo e elegância atraíram a marca americana, que fornece ao Venezia coleções exclusivas, de sua chamada linha “premium” (junto com Corinthians, América do México, Spartak Moscou e outros).

Uniformes do Venezia FC, em tons predominantes de preto ou branco, com listras laranjas e verde s -
Uniformes do Venezia FC, em tons predominantes de preto ou branco, com listras laranjas e verde s – Venezia FC/Divulgação

Ou seja, está apenas abaixo da linha “elite” (Liverpool, Barcelona, PSG, Inter de Milão e outros) e acima da linha “standard”, cujos modelos são genéricos, como o espanhol Sevilla, um clube muito mais tradicional. Vendidas na casa dos 80 euros (496 reais), apenas no exterior, as camisas do Venezia costumam esgotar rapidamente nas lojas virtuais.

Agora com o orgulho recuperado e de volta aonde sonharam por quase duas décadas, venezianos, enfim, têm motivos para sorrir e sonhar ao longo desta temporada.

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