Um toque de Brasil entre os donos de clubes na Inglaterra
Desde novembro de 2021, o paulistano Guilherme Decca comanda o Wakefield, time da 11ª divisão inglesa, com um olhar de longo prazo para conquistar espaço
A onda dos clubes-empresa pode estar só começando no Brasil, mas na Inglaterra ela é realidade há muito tempo. Todos os principais times têm dono. E, mesmo sem a trajetória de um Ronaldo Fenômeno, vários deles são quase tão famosos no mundo da bola: o russo Roman Abramovich, do Chelsea; os irmãos americanos Avram e Joel Glazer, do Manchester United; o sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan, do Manchester City. Muitos degraus abaixo, na enorme pirâmide do esporte inglês, um brasileiro realizou, em novembro do ano passado, o sonho de ter uma equipe (da 11ª divisão) para chamar de sua. Guilherme Decca, paulistano de 44 anos, comprou o Wakefield AFC, na cidade de mesmo nome — a 300 quilômetros ao norte de Londres, tem pouco menos de 80 000 habitantes e é considerada a maior do país sem um esquadrão profissional de futebol.
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O mais curioso, contudo, é o fato de ele morar do outro lado do Atlântico, no estado americano de Connecticut, onde é o CEO e cofundador da VO2 Capital, empresa de gestão de patrimônio. “Aqui, a gente ganha dinheiro. O Wakefield é paixão mesmo”, diz. Tudo começou meio por acaso, avaliar o que deu certo e onde melhorar. Discute estratégias de jogo, atuações individuais, possíveis contratações. Só não interfere na escalação. “Preciso me controlar, não quero ser um Eurico Miranda”, brinca. Mas, claro, exerce seu papel com determinação. Em janeiro, o ex-jogador Adam Lockwood passou de técnico a diretor de futebol. Em seu lugar, assumiu o brasileiro Gabriel Mozzini, que estava no juvenil do Queens Park Rangers, da segunda divisão.
“Precisávamos de um treinador mais jovem, aberto a trabalhar de um jeito mais científico”, diz Decca. “Ele não tem a mesma experiência do Adam, mas adora análise, estatísticas, fazer vídeos. Depois do jogo de estreia, já mandou clipes com lances para os atletas. Esse novo jeito de agir está mais alinhado com o que a gente espera.”
Para quem está de fora, esse olhar moderno pode até parecer exagerado. Afinal, a 11ª divisão (há pelo menos vinte no país) é semiprofissional. Muitos atletas são amadores, outros recebem ajuda de custo. Desde que foi fundado, o Wakefield só participou de meia temporada, por causa da pandemia de Covid-19.Neste momento, disputa uma das ligas regionais, a Sheffield & Hallamshire County Senior Football League, que tem catorze participantes.
Até o fim de janeiro, quando esta reportagem foi escrita, doze partidas tinham sido disputadas e o time ocupava a quinta posição. Os três melhores garantem o acesso. Mas Decca afirma que subir como um foguete não é a meta. Ao contrário. “Se eu colocasse bastante dinheiro, poderia ser promovido várias vezes, falar que o clube vale muito mais do que paguei e pular fora”, diz. “Mas eu quero rodar esse negócio pelos próximos quarenta anos.” Segundo ele, o trabalho com gestão de patrimônio exige um olhar de longo prazo — e a ideia é replicá-lo na experiência futebolística. “Jornalistas e torcedores muitas vezes têm um jeito de pensar muito imediatista”, comenta. “Se o time ganha, todos são craques. Quando perde, precisa mudar tudo”. Não pode ser assim.
A preocupação em adotar práticas modernas de gestão aparece também na estratégia de recrutamento: em vez de atletas “cascudos”, o Wakefield busca jovens compassagens pela base de equipes maiores. O melhor exemplo é Mason Rubie, lateral-direito que atuou pelo sub-19 do Leeds.
“Ele joga muito, às vezes penso: ‘Como esse cara está com a gente?’”, espanta-se Decca. A estrutura do clube tem sido um dos principais cartões de visita. O time manda seus jogos no estádio do Wakefield Trinity, que disputa a primeira divisão de rúgbi e tem capacidade para 7 000 torcedores (os ingressos são gratuitos, “até porque o espetáculo ainda não faz jus”, com público em torno de 500 pessoas por confronto, acima da média do torneio). O sonho agora é construir um campo próprio para abrigar os treinos do time principal e os jogos do sub-23 e da base. Com isso, haveria uma economia com o aluguel dos espaços. “Sem falar que quem vem às partidas sempre compra comida, bebida ou algum souvenir”, diz.
https://twitter.com/Wakefield_AFC/status/1458780830050963456
Outra iniciativa inovadora é uma parceria com escolas da região para oferecer aulas de futebol às crianças. “Além de reforçar nossa marca e trazer as famílias para os jogos, teremos a chance de descobrir talentos”, acredita Decca. O projeto deve começar no meio do ano e a meta é ter cinquenta colégios parceiros até dezembro. Na avaliação do CEO, o envolvimento com a comunidade é central para o futuro do clube. Por isso, pelo menos 15% das ações ficarão sempre nas mãos dos torcedores locais. “Gerar negócios em torno do clube” é o mantra para tornar o Wakefield uma operação lucrativa.
Além das reformas de infraestrutura, da busca pelo crescimento da torcida e da captação de talentos, o futebol feminino é um caminho a explorar. A ideia inicial era começar um time do zero, mas surgiu a oportunidade de incorporar o Wakefield Trinity Ladies ao Wakefield AFC. A equipe disputa a quinta divisão nacional (de um total de dez).
A North East Regional Women’s Football League conta com dez participantes. “Infelizmente, o futebol feminino tem pouquíssimo
apoio da imprensa e quase nenhum dinheiro”, explica Decca. Só os grandes sobrevivem.
A Women’s Super League congrega apenas as duas primeiras divisões. Nem os melhores da Terceira têm garantia de acesso — é preciso passar por um processo de avaliação para ser aceito. No dia a dia, muitas atletas lavam o uniforme em casa, dada a falta de estrutura. O elenco feminino do Wakefield é considerado melhor do que o masculino. Emily Heckler, camisa 10 e capitã, já esteve na seleção inglesa sub-20. Por isso, a nova diretoria sonha alto. “Se conseguirmos subir duas divisões, passaremos a jogar contra Leeds, Newcastle, times bem melhores”, aposta Decca. O problema, diz ele, é mesmo a falta de dinheiro. “Ainda não conseguimos nenhuma empresa para patrocinar a camisa. Como ela é toda branca, vou até colocar o logo da VO2 Capital para não ficar feio.”
Até onde pode chegar o sonho? Ainda é cedo para fazer previsões. Por enquanto, é só investimento mesmo. “Precisamos conquistar a população, aumentar a torcida, começar a trazer dinheiro.” Decca reconhece que, “no fundo, o projeto é uma diversão pessoal de quem queria ter um time e comprou o mais organizado que estava disponível”. Ele sabe que há um abismo entre o mercado financeiro e a realidade de um pequeno clube no interior da Inglaterra. Mas, claro, seus olhos brilham quando pensa na possibilidade de enfrentar times tradicionais, tanto no masculino quanto no feminino.