Suicídio no Uruguai reacende debate sobre saúde mental no futebol
A PLACAR, psicólogos citam urgência para discutir o tema diante dos crescente casos de depressão na elite esportiva
Uma tragédia recente paralisou o futebol uruguaio. Williams Martinez, do Villa Teresa, foi encontrado morto em seu apartamento após cometer suicídio, no último sábado, 17. Um dia depois, a Associação Uruguaia de Futebol (AUF) anunciou a suspensão da rodada do campeonato nacional em decorrência do ocorrido.
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Martinez era um atleta bem sucedido. Tinha 38 anos, atuava como zagueiro e já defendeu a camisa da seleção do Uruguai. Além disso, chegou a jogar pelo time inglês West Bromwich e no futebol francês. Seu caso não é isolado. O goleiro alemão Robert Enke, que morreu em 2009, e o atacante uruguaio Morro Garcia, que tirou a própria vida neste ano, são outros tristes exemplos. Os casos de depressão se tornam cada vez mais frequentes (no Brasil, Nilmar e Pedrinho são alguns dos ex-atletas que admitiram ter sofrido com a doença).
Procurado pela PLACAR, Bruno Vieira, psicólogo especializado em esporte, com dezenas de atletas entre seus clientes, apresentou um ponto de vista científico sobre a incidência de atletas com doenças psiquiátricas. O profissional afirmou que grande parte dos casos de depressão são causados pela falta de apoio desde a base, juntamente à pressão que muitos atletas carregam de ser o sustento financeiro para a família.
“Ele não vê outras perspectivas para sustentar a família. Esse é um grande ponto que gera a ansiedade e pode engatilhar em uma depressão. E nessa hora, muitas vezes, ele não tem o apoio necessário.”, disse Bruno.
A assistente social do futebol Silvana Trevisan ressaltou que muitos atletas sentem dificuldade em lidar com a fase derradeira da carreira; “O jogador da base até o profissional tem dificuldade de abandonar o futebol, mas quando o futebol abandona o jogador é muito difícil aceitar essa rejeição e pode desencadear sintomas depressivos e desenvolver ideações suicidas e ato que pode resultar em sua morte.”.
Na mesma linha, Thabata Telles, Doutora em Psicologia e presidente da ABRAPESP (Associação Brasileira de Psicologia do Esporte), alertou sobre os impactos do esporte profissional. “O esporte de alto rendimento não é saudável”, afirmou a profissional.
O suicídio geralmente é relacionado ao chamado “mal do século”: a depressão, que de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) atinge mais de 320 milhões de pessoas no mundo. Por outro lado, Thabata também afirmou que se suicidar pode estar ligado a diversos transtornos mentais.
Em 2020, após o início da pandemia causada pelo novo coronavírus e o início do isolamento social, a FIFpro realizou uma pesquisa sobre a saúde mental dos atletas. Segundo a entidade, 22% das jogadoras questionadas relataram sintomas depressivos, assim como 13% dos jogadores. “Para a mulher esportista, até engravidar pode ser prejudicial, é da sociedade.”, respondeu Thabata Telles, em tom crítico sobre o machismo dentro do mundo esportivo.
Sobre a diferença da porcentagem entre os gêneros consultados, o psicólogo Bruno Vieira afirmou: “A sociedade ainda faz com que o homem seja muito mais preso para admitir um problema psicológico do que uma mulher, mas muitas vezes quando ele vai ver, já está em situação irreversível. Porém, posso te afirmar que tem muito mais homem com depressão do que mulher.”.
O profissional fez questão de não colocar o futebol como único local da sociedade com grande taxa de suicídios. Porém, manteve a opinião que as instituições escondem o alto número de problemas na saúde mental de jogadores, pois não é favorável à imagem externar a dificuldade de lidar com a situação. Assim, o tabu que estigmatiza tratamento psicológico como algo de “loucos” é mantido.
Entre atletas que conviveram com a doença, existem relevantes nomes do cenário brasileiro. Nilmar, ex-atacante com passagens pelo futebol europeu, Santos, Internacional e seleção brasileira, foi um dos atletas que sofreu com a depressão, principalmente nos anos finais de sua carreira e só descobriu a gravidade da situação quando o corpo manifestou sintomas.
“Na concentração eu estava tão estressado que não tinha vontade de treinar, de jogar, tinha perdido o prazer daquilo que eu mais amava. Paralisou todo meu lado direito do corpo, fui para o hospital e fiquei dois dias. Exames no corpo todo e não tinha nada. Coração a 200 por hora e não era ‘nada”, contou ao canal do jornalista Duda Garbi no Youtube.
O aposentado jogador afirmou que não conseguia aceitar que um problema psicológico poderia acometer alguém que externamente era vitorioso e feliz. “Não é que não acreditava, mas achava muito difícil uma pessoa que tem tudo… Eu, pai de família, joguei na seleção, Copa do Mundo, ganhei dinheiro, aquela coisa. Pensamento bobo. Hoje eu sou o Nilmar de novo, e até melhor do que eu jogava – porque quando jogava vivia no automático. É difícil se reencontrar.”.
Todas as fontes profissionais escutadas relataram a dificuldade das instituições do futebol na aceitação do tratamento de transtornos psicológicos. Também procurado pela redação, Luiz Manfrinati, mestre em ciências da saúde e especialista em psicologia do esporte, disse enxergar um entrave político e econômico na falta de diálogo aberto sobre o assunto em grandes entidades esportivas.
Outro relevante jogador que precisou vencer a depressão foi Pedrinho, ex-atleta com destaque pelo Palmeiras e Vasco. O hoje comentarista do Grupo Globo relatou os impactos mentais que as lesões recorrentes geravam, e confirmou que a falta de empatia nas críticas da imprensa também o faziam mal.
“Se perguntarem pra mim se prefiro ter cinco lesões no joelho ou ter depressão, prefiro ter as lesões, porque a depressão quase tirou a minha vida”, disse o ídolo vascaíno em uma live em seu Instagram.“A depressão é muito grave, tomou da cabeça. Tirou minha saúde, minha paz, tirou a minha vida. Não tinha mais vontade de viver, não tinha prazer em nada.”
O psicólogo Bruno Vieira também dialogou sobre a falta de acompanhamento psicológico efetivo em clubes brasileiros e comparou ao futebol europeu, local onde o trabalho mental faz parte do cotidiano do atleta. “Quando atletas me contratam, o atendimento não é apenas ficar dentro do consultório, mas sim acompanhar treinamentos ‘in loco’ e analisar comportamentos. Se não isso, como vou entender o posicionamento do atleta em situações adversas?”.
Por outro lado, o psicólogo disse que o acompanhamento vai além do tratamento, mas de uma profilaxia contra a depressão e que também funciona no maior rendimento do atleta. “Muitas vezes quem vive no meio do futebol tem um ego inflado, e quanto maior esse ego, maior deve ser o acompanhamento.”.
Muitas vezes, pela cobrança excessiva, a torcida e a imprensa esquecem que os atletas são pessoas. Sobre isso, Silvana, que já trabalhou na formação de atletas no Corinthians e Santos diz: “O esporte tem um viés ideológico pautado no capital, que impede de enxergar o ser humano que produz por meio de seu corpo uma forma de enriquecer as instituições e clubes esportivos.”. Também em sua conversa com PLACAR, a profissional fez um apelo para a maior atenção ao assunto. “Enquanto todos que atuam e amam o esporte não assumirem sua responsabilidade ética e social com o ser humano que veste uma camisa de time, discutir a depressão e o suicídio no esporte será algo que acontecerá apenas em momentos de tragédia”, finalizou.
(Se você precisa de ajuda, o CVV (Centro de valorização da vida) disponibiliza atendimento gratuito 24h. Basta ligar 188 que você poderá conversar com um voluntário preparado para te ajudar e oferecer apoio emocional.)