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Sucessor de Usain Bolt corre contra a sombra do doping

O americano Christian Coleman seria favorito ao posto de herói, não fosse um episódio mal contado de ausência num exame antidoping

Poucos eventos esportivos têm o poder de fascinação de uma corrida de 100 metros rasos. O silêncio inquietante dos instantes que antecipam a prova, a excitação provocada pelo disparo que autoriza a largada e o êxtase ao ver o primeiro a cruzar a linha de chegada compõem uma experiência rara da força e inteligência da humanidade. Tudo isso em menos de dez segundos — pouco menos que o tempo gasto para ler as linhas acima. O vencedor da disputa, numa Olimpíada, é alçado automaticamente ao posto de herói, o mais rápido do mundo, um deus. Nos últimos três Jogos, em Pequim, Londres e Rio de Janeiro, o olimpo foi do jamaicano Usain Bolt, agora aposentado. Em Tóquio, no ano que vem, o nascimento de mais uma lenda da modalidade será, portanto, compulsório. Há um favorito: o americano Christian Coleman, de 23 anos, que no sábado 28 venceu o Campeonato Mundial, disputado em Doha, no Catar. Coleman já havia superado Bolt em sua prova de despedida das pistas, em 2017, e registrou agora impressionantes 9 segundos e 76 centésimos.

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O tempo foi o sexto mais baixo de toda a história nos 100 metros, registrado em um estádio refrigerado, em meio ao calorão insuportável do deserto no Oriente Médio. A marca foi também a melhor de 2019, o que faz de Coleman, naturalmente, a grande aposta para 2020. O recorde mundial, inalcançável, sobre-humano, ainda é de Bolt: 9 segundos e 58 centésimos. Evidentemente, as comparações com o raio jamaicano são inevitáveis, mas o novato prefere se distanciar delas. “Não quero ser o próximo Usain Bolt”, gosta de repetir Coleman. “Desejo iniciar meu próprio legado.” Embora corram as mesmíssimas distâncias — os 100 e os 200 metros rasos, além do revezamento 4×100 —, os dois atletas não poderiam ser mais diferentes. A começar pela estatura. Bolt tem 1,95 metro e 95 quilos. Coleman é mais compacto, distribui 72 quilos em 1,75 metro. Eles também se distinguem na personalidade. Um era carisma puro: parte do show que vinha da Jamaica era distribuir caretas, gestos e declarações grandiloquentes. O outro é contido e calado.

Mesmo em termos técnicos, de estratégia, os dois se diferenciam como água e óleo: Bolt era genial na parte final dos 100 metros, quando voava, quase literalmente. Enquanto os outros atletas pareciam ficar sem pernas, ele crescia, sorrindo. Coleman tem como característica disparar na primeira metade da prova — e não por acaso é recordista de uma charmosa distância não olímpica, a dos 60 metros. Por fim, mas não menos importante, Bolt e Coleman se distinguem em uma categoria desagradável: a da suspeição de envolvimento com doping. O tricampeão olímpico jamais foi flagrado em delito, em mais de uma década de vitórias (embora tenha perdido uma medalha olímpica no revezamento 4×100 depois de um colega ter sido reprovado num teste retroativo). O americano anda colado a uma incômoda sombra: ele disputou o Mundial de Doha tendo de explicar um embaraçoso caso.

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Há pouco mais de um mês, a Usada, a agência americana antidoping — a entidade que descobriu a vergonhosa farsa na qual estava envolvido o ciclista Lance Armstrong —, abriu uma investigação formal depois de Coleman ter escapado da realização de três sucessivos testes-surpresa, prática comum para identificar contraventores químicos. Quando os fiscais batiam à sua porta para pedir amostras de urina, descobriam que o corredor tinha mudado de endereço, o que tornava impossível a coleta. Segundo os códigos do esporte, essa falta é tão grave quanto ter alguma substância proibida apontada no organismo. A punição para quem perde uma trinca de exames pode chegar a dois anos de suspensão. Coleman escapou do gancho por um mero desencontro de datas anotadas nos documentos, conseguiu se explicar e seguiu em frente. Mas a mancha está lá, posta. Tanto que o compatriota e campeão olímpico Michael Johnson foi categórico ao dizer que os supostos problemas com doping tornavam impossível a designação de Coleman como “a nova cara do esporte”. Contrariado, o jovem velocista respondeu ao comentário dizendo que Johnson não paga suas contas e que a opinião dele pouco importa.

Coleman é inocente até que se prove o contrário. Infelizmente, contudo, a história do atletismo tem sido contada por meio de revelações tardias, depois do pódio, e descobertas desabonadoras como a do envolvimento de treinadores reputados (leia no quadro). A mais emblemática das situações, um modelo ao avesso, foi a fraude perpetrada pelo canadense Ben Johnson nos Jogos de Seul, em 1988: ele venceu a prova, com empáfia e recorde mundial, braços para cima, um herói, um deus, para dias depois descobrir-se que suas passadas eram turbinadas por anabolizantes. O atletismo precisa de um sucessor para Usain Bolt, não para Ben Johnson.

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Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655

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