Pelé e PLACAR: uma eterna história de amor
A Copa de 1970 marcou o início da história de PLACAR, no momento em que Pelé foi coroado Rei do Futebol. A nossa relação será eterna como vossa majestade
Esta é a história de um relacionamento. Ela começou há cinquenta e dois anos, teve muitos altos e alguns baixos. Muito amor e, claro, um pouco de mágoa, algumas doses de intriga e até um tantinho de ódio. Tudo sempre renovado, porque os protagonistas nunca se cansaram de celebrar seus grandes feitos. Nesta quinta-feira, 29, Pelé conduziu PLACAR a registrar a parte mais triste de nossa história: a da separação pela morte. Mas engana-se quem acha que ela acaba aqui — será eterna como vossa majestade — porque ainda há muitas páginas para sempre reverenciar o Rei do Futebol.
Assine a revista digital no app por apenas R$ 9,90/mês
Era uma vez uma revista esportiva, lançada em março de 1970. No país do futebol, torcedores, jornalistas e jogadores só falavam na Copa do Mundo, que seria disputada no México dali a três meses. Todos sonhavam com a conquista definitiva da Taça Jules Rimet. Mas havia nervosismo e insegurança. Se o sonho era comum, o caminho para chegar a ele era tortuoso, e as páginas de PLACAR revelavam essa tensa valsa. Uns defendiam voltar ao passado, outros apostavam em estratégias nunca antes usadas. Nem mesmo o protagonista da nossa história era unanimidade, naquele tempo, apesar de ser personagem onipresente nas capas e reportagens.
Seu apelido: Pelé. Nascido na pequena Três Corações, interior das Minas Gerais, em 23 de outubro de 1940, Edson Arantes do Nascimento tinha se tornado uma estrela de brilho internacional ao conquistar, com apenas 17 anos, o primeiro Mundial do Brasil, depois da vitória de 5 a 2 contra a Suécia, dona da casa, na final da Copa de 1958. Três décadas mais tarde, ele seguia vestindo a camisa 10 da seleção canarinho, o mítico número estampado dali para a frente como o do craque decisivo para qualquer time.
PLACAR e Pelé, indissociáveis, e talvez fosse o caso de grafar o nome do gênio também em letras maiúsculas. PLACAR e PELÉ. A primeira
edição chegou às bancas com o Rei na capa, é claro, e um brinde especial: uma moeda comemorativa com a efígie do craque, presente aos leitores. Os agrados, os elogios, os agradecimentos pelos feitos do nosso craque inigualável, no entanto, eram alternados com dúvidas em relação à sua forma física (estaria ele “velho” aos 29 anos?), temores sobre sua capacidade de “jogar para o time”, críticas ao mau desempenho nos jogos preparatórios para o torneio do México
Sim, a revista publicava artigos, reportagens e entrevistas enaltecendo nosso maior jogador. Dois meses antes da Copa, estampou uma foto de Pelé sobre o título assertivo (e, de certa forma, contraditório): “Vamos ganhar. Só nos falta humildade”. Disse Pelé: “Um time humilde não treme diante da responsabilidade. Esse time sabe que vai ter de lutar muito para ganhar o jogo. E lutará”. Ao mesmo tempo, contudo, vinham os questionamentos e as provocações. “E agora, Tostão ou Pelé?”, tascaram os editores em outra reportagem (já que a grande maioria da população achava mesmo que os dois não podiam atuar juntos). A estocada mais contundente veio às vésperas da estreia no México. Aymoré Moreira, que tinha sido o treinador da seleção na Copa de 1962 e escrevia uma coluna para a revista, afirmou que não tinha dúvida: tiraria Pelé do time caso ficasse evidente ser impossível montar um esquema eficiente com ele em campo. “Qualquer técnico tem que ter independência e liberdade para fazer isso”, sentenciou.
Mas os jogos, enfim, começaram e o encantamento por aquele futebol único, mágico, logo voltou com toda força. Além de Aymoré, o time de PLACAR na Copa de 1970 era composto do editor Woile Guimarães, dos repórteres Hedyl Valle Júnior, José Maria de Aquino e Michel Laurence e dos fotógrafos Lemyr Martins e Sebastião Moreira. A edição de 22 de maio trouxe os primeiros textos e imagens produzidos no México. Nas cinco semanas seguintes, o deslumbramento com o que Pelé fez em campo transbordou nas páginas da revista e voou pelo mundo.
Nas reportagens, o clima geral era o de estar testemunhando uma revolução no futebol: organização tática e preparo físico acima da média personificados em Pelé. Depois da vitória sobre a Checoslováquia, por 4 a 1, PLACAR publicou seis depoimentos de jornalistas estrangeiros debaixo de um título que não pressupunha comentários — “Ele não existe”. Eis o que disse Gert Borst, da agência alemã ocidental Süd: “Pensei que fosse ver um símbolo, um jogador que era escalado porque ninguém tinha coragem de tirá-lo. Vi o maior jogador de futebol da minha vida”.
Vittorio Notarnicola, comentarista do italiano Corriere della Sera, seguiu o tom da prosa: “Joguei futebol profissional e posso dizer que
jamais vi um fenômeno igual. Nesta Copa do Mundo só existem dois nomes: Brasil e Pelé”, emendou. Mas foi Alan Hoby, do jornal londrino Sunday Express, quem deu o tom que ficaria para a história. “Para nós, europeus, Pelé parecia estar acabando, mas ele ressurgiu. Não está mais cansado, não tem aquele ar blasé. E nós, ingleses, temos de admitir que ele é o único Rei.” No Brasil (e nas páginas de PLACAR), Pelé já era tratado como monarca. Com o tricampeonato, nunca mais lhe tiraram o cetro e a coroa.
Depois da vitória contra a Inglaterra, por 1 a 0 (jogo da primeira fase que era tratado pela imprensa como uma espécie de final antecipada, a verdadeira “partida do século”), a revista fez uma reportagem sobre o camisa10 com o hiperbólico título “O Super-Rei”. “Ficou provado mais uma vez: Pelé é o Rei, o homem que despreza todas as lógicas do futebol, que excede.
E também, entre os nossos 22 heróis que lutam no México, o homem que mais quer a Copa. ‘O Brasil não perde a Copa se souber explorar os nossos chutes fortes, excepcionais. Entrar nas defesas europeias com tabelinhas e jogadas calculadas será muito difícil. É bem provável que ganhemos alguns jogos com chutes de bola parada ou de muito longe’, afirmou ele. Para quase todos os brasileiros, dentro e fora dos gramados, a grande barreira do jogo contra a Inglaterra, mais do que a genialidade de Bobby Charlton, era o goleiro Banks. Menos para Pelé: ‘Já conhecia Banks e nunca o considerei um goleiro sensacional. Uma vez, com o Santos, jogamos contra seu
time, o Stoke City, e ganhamos de 3 a 2. Fiz dois gols’.
Semana após semana, a empolgação só fazia crescer. PLACAR não se cansava de falar de Pelé, e Pelé não se cansava de receber os jornalistas da revista. Nossos fotógrafos tinham as melhores fotos, imagens exclusivas e históricas que já rodaram o mundo nas últimas cinco décadas contando a conquista do tri e as glórias do filho de Dondinho. Nas reportagens, transparecia a confiança entre entrevistadores e entrevistado, como se lê no texto “E quando Pelé acabar?”, publicado no meio da Copa. Assim:
“O que você vai sentir no dia em que a seleção brasileira entrar em campo e dentro daquela camisa amarela número 10 não estiver mais um corpo negro e atlético, ágil e imprevisível? Qual será sua sensação ao ver a camisa 10 amarela correr pelos gramados do mundo fazendo as coisas comuns que qualquer jogador comum faz, sem a graça, a agilidade e a magia que você está acostumado a ver dentro dela desde 1958, gritando, pulando ou simplesmente sorrindo? Prepare-se para isso, porque Pelé, o grande dono dessa camisa, já decidiu: esta será sua última Copa.
— Pode parecer que não, mas isso cansa. Ficar quatro meses longe da família, preparando-se para seis jogos, é duro. Ficar trancado. Pode fazer as contas. Acho que é a hora de parar.
Nesta última Copa de Pelé, todos esperam ver coisas mais impossíveis do que as fantásticas que ele já tem feito. A cada jogo do Brasil o estádio está lotado, à espera dos milagres de Pelé. Mas ele está muito mais preocupado com os resultados de nossos jogos:
— Olha, não quero fazer nada de anormal, só quero ganhar a Copa, levar o caneco para o Brasil, chegar no meio do povo e dizer: ‘Tomem, é de vocês’. Se conseguir isso, acho que poderia até pendurar as chuteiras, não fazer mais nada, porque eu seria um homem realizado no mundo.”
Daí em diante, o clima de romance se transformou em paixão. Pelé “comeu a bola”, como se dizia, e o Brasil atropelou o Peru (4 a 2) nas quartas de final, exorcizou o fantasma do Uruguai (3 a 1) na semifinal e arrasou a Itália (4 a 1) na grande final, para delírio de milhares de torcedores que invadiram o campo depois de o juiz dar o último apito no Estádio Azteca. A sensação de que estávamos vendo a história ser construída diante dos olhos era visível também nas páginas da revista, como na genial charge de Henfil, reproduzida na página ao lado, ao lembrar o lance inigualável contra o goleiro Viktor, da Checoslováquia, o “quase-gol” do meio de campo.
E o que dizer daquela camisa 10? Em maio deste ano, quando PLACAR publicou um especial sobre os cinquenta anos da conquista do tri, Pelé contou o seguinte: “Por coincidência, eu nasci no mês 10; na escola, 10 era a nota máxima; como católico, respeito os Dez Mandamentos. Para completar, na seleção eu recebi a camisa 10”. Simples assim. A 10 que aparece na foto acima é uma das três que ele usou naquela final, na Cidade do México (uma no primeiro tempo, outra no segundo e uma terceira na cerimônia de entrega da taça), leiloada em Londres, numa multiplicidade que só ajudou a aumentar ainda mais a fama e a mística da mãe de todas as 10.
Terminada a Copa, Pelé e PLACAR seguiram firmes e fortes. Nenhum outro atleta teve sua intimidade tão exposta em nossas páginas. Reencontramos os dez meninos que jogavam com ele em seu primeiro time, ainda no infantojuvenil, na cidade paulista de Bauru. Estivemos juntos (só nós dois) na milésima partida como profissional. Acompanhamos cada uma das despedidas (da seleção, do Santos, do Cosmos). Promovemos reencontros emocionantes e inesquecíveis com velhos amigos, como Garrincha e Tostão — uma eterna história de amor que você acompanhou.
Texto adaptado da publicação da edição 1467, de setembro de 2020