Pelé 80 anos: o cidadão Edson sem a bola
No nascimento do filho, no cotidiano do lar, na carreira de ator, em sua primeira incursão na política – PLACAR sempre esteve de olho em Edson
O mundo do futebol já se prepara para a festa: no próximo dia 23 de outubro, Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, completa 80 anos de vida. A revista PLACAR, apenas três décadas mais jovem e de história indissociável à do camisa 10 – basta dizer que a edição inaugural, de março de 70, trazia Pelé na capa e vinha com um brinde, uma moeda com a efígie do craque – preparou uma edição especialíssima, histórica, que traz um compilado de grandes reportagens sobre o Rei do Futebol, escolhidas e comentadas por ele próprio. Daqui até o grande dia, PLACAR publicará diariamente em seu site algumas das reportagens da edição de setembro, que está nas bancas e disponível para dispositivos iOS e também Android. Boa leitura!
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PLACAR seguiu, desde sempre, a vida de Pelé além dos gramados — com um acesso à intimidade do Rei que poucos veículos de comunicação tiveram. Nos anos 1970, a revista acompanhou o nascimento de seu filho, Edinho, futuro goleiro, e revelou seu inacreditável e riquíssimo tesouro de troféus, medalhas, diplomas e homenagens. Mas o gol de placa do Pelé fora dos campos foi publicado em 1984. No auge da campanha pela volta das eleições diretas para presidente, o ex-jogador estava no Rio filmando Pedro Mico. Alguns dias antes de iniciar o trabalho, ele apareceu na TV com uma réplica da Taça Jules Rimet declarando apoio às Diretas Já. Ronaldo Kotscho, fotógrafo de PLACAR, tomou para si a tarefa de conseguir a inédita (e exclusiva) imagem de Pelé com uma camisa em favor do movimento pró-democracia. Velho conhecido do Rei, ele chegou sem avisar ao Morro do Pavãozinho, onde ocorriam as filmagens. Com uma camisa da seleção pintada com a frase da campanha, disse que perderia o emprego se não conseguisse a foto. Pelé estava irredutível, e Kotscho teve uma ideia: exibiu a camisa para as pessoas que se aglomeravam diante do set. Aí não houve saída. “Alemão, te dou dez segundos”. E assim foi. Na capa de PLACAR, na semana seguinte, aparecia apenas Pelé, “recortado” sobre um fundo azul, com as letras pretas se destacando na camiseta canarinho (veja na pág. 53). A foto original está aqui ao lado, com os fios aparentes e as casas de madeira da favela carioca. Mais um golaço da fabulosa história de PLACAR e Pelé. Nas páginas internas, ele reforçava sua visão: “O governo atual já teve a oportunidade dele. A pressão é muito grande e acho que todo mundo deve ter essa oportunidade (de votar). Essa é outra Copa que a gente tem de ganhar e foi por isso que ergui a minha réplica da Jules Rimet pelas eleições diretas”.
TESOURO ESPECIAL
A bola do gol 1 000 de 1969, o sombrero do jogo 100 pela seleção, incontáveis troféus, diplomas e medalhas… — o repórter Michel Laurence e o repórter fotográfico Sebastião Marinho revelaram a extraordinária coleção pessoal que o Rei guardava em casa
(Publicado em 24 de julho de 1970)
Uma enorme coroa de ouro, com uma enorme bola de prata por cima. Abaixo dela um sorriso amigo, que muita gente já tentou definir. A seus pés, em cima de uma mesa de centro, um tesouro. Ouro, prata, pedras preciosas misturam-se numa fantasia que só a imaginação consegue alcançar. Um pouco separadas, na mesa, estão uma bola de futebol e uma camisa branca, de pano comum de algodão. Parecem destoar no meio desse tesouro. Só que na camisa branca estão bordados o escudo do Santos Futebol Clube, duas estrelas douradas e um enorme 10 em preto, nas costas. Foi com essa camisa e essa bola que Pelé conseguiu o milésimo gol de sua fantástica carreira. “Sabe, vou mandar isso tudo para a exposição que o Bobby Moore, o capitão da seleção da Inglaterra, está organizando. Já fiz o seguro, que deve ser aprovado. Só a camisa avaliei em 60 000 dólares (300 000 cruzeiros)”, diz. Para todos os troféus e coroas que estão sobre a mesa, Pelé pediu um seguro de 300 000 dólares. “Muitos dos meus troféus já sumiram.
A camisa azul da CBD, da final da Copa do Mundo de 1958, sumiu numa exposição, para a promoção do meu filme (O Rei Pelé), e nunca mais apareceu”, lembra o Rei. Na mesma mesa também está um sombrero todo de prata e trabalhado com desenhos como os verdadeiros chapéus mexicanos. “O povo mexicano é um dos melhores que conheço. A ele devemos um pouquinho do tri. Vocês podem não acreditar, mas não tenho ideia de quantos troféus e medalhas ganhei até hoje. Só em medalhas tenho mais de 2 000.”
Pelé agora está na rua. Uma menina vem correndo, com um sorvete na boca, e o puxa pela manga. Mostra um caderno e uma caneta, sem dizer nada. Pelé sorri, abaixa-se, assina o autógrafo e a menina sai correndo. “Meu maior troféu não está em nenhuma prateleira”, diz. “Meu maior tesouro foi ter ajudado a fazer o Brasil conhecido pelo mundo.”
O NASCIMENTO DO HERDEIRO
Os repórteres Narciso James e Michel Laurence estavam em Santos quando nasceu Edson, filho do papai Edson, que sonhava em dar a ele “um futuro sem a sombra do seu nome, sem a fama de Pelé” — missão para lá de inglória para um mito universal
(Publicado em 4 de setembro de 1970)
— Meu Deus, um menino! Engraçado como as coisas me acontecem. Eu estava preparado para que fosse uma menina. Um menino! Agora, meus planos têm de mudar completamente.
— Pelé, por favor, segura o garoto mais uma vez?
— Tenho de pedir para que tomem cuidado com os flashes. Acho que atrapalham a vista do menino. Ele faz cara feia toda vez que um é disparado. — Pelé, será que ele vai ser um grande jogador de futebol?
— Não sei. Mas já estamos pensando no menino em termos de Pelé. Não é nada disso que eu quero. Vou ter de tomar cuidado para que minha fama e o futebol não interfiram na vida dele. Ele tem de ser o que ele quiser. Pode ser até que ele nem goste de futebol.
— Por favor, mais uma foto.
— Por hoje chega, o menino tem de descansar. A Kelly Cristina está feliz. Agorinha mesmo estava anunciando, no quarto ao lado, que nasceu seu irmãozinho. Até agora tudo lá em casa era para ela. Com o menino, pode estranhar, ficar com ciúme.
***
A festa foi planejada para comemorar o aniversário de Ramos Delgado e de Júlio Mazzei, no restaurante de Ramos Delgado, o Casarão do Lucas, em São Vicente, litoral de São Paulo.
— Como é, Pelé? Um novo rei?
— Não comecem a chamar o menino de “novo rei”. Eu não quis que ele se chamasse Edson Arantes do Nascimento para não ser Júnior ou Filho. Isso vai complicar a vida dele.
Júlio Mazzei ri sem parar: “O Crioulo está tontinho, dando bom-dia às 9 da noite. Está bobo, bobo”. A mulher de Ramos Delgado aproxima-se de Pelé. Pede a ele que se levante para abraçá-lo e começa colocando um babador em torno de seu pescoço. Depois, uma fralda amarrada à cintura. Uma chupeta na boca e finalmente um banho de talco. Pelé aceita tudo rindo, brincando. Nada parece ter importância para ele, a não ser um menino, de olhos fechados, que está nos braços da mãe, na maternidade.
— Um menino com responsabilidade demais. Um menino para quem eu não quero a minha vida.
EM CENA, UM NOVO MALANDRO
Pelé apostava com força na carreira de ator em um momento decisivo para o Brasil, que brigava para voltar à democracia, como contou a repórter Regina Echeverria
(Publicado em 20 de abril de 1984)
Será que o Brasil aguenta? Vinte e oito anos depois de ter iniciado a mais retumbante carreira da história do futebol, tempo em que mereceu o título de atleta do século e em que preservou uma impecável folha de serviços prestados à moral e aos bons costumes, o inigualável Pelé resolveu entrar em cena para mais um drible.
O Brasil verá no cinema, até o fim do ano, um Pelé de bigode cafajeste, costeletas, cabelos menos arrepiados — um bandidão dos brabos, que só vai entrar em mansões para assaltar milionários. Vai morar no morro e namorar uma prostituta. Vai fumar e beber cerveja. Em seu décimo filme, Pelé será Pedro Mico, um ladrão. Trata-se do personagem principal da história que Antonio Callado escreveu em 1958 para o teatro e que agora foi adaptada para as telas pelo cineasta Ipojuca Pontes. O diretor levou quase um ano e meio para convencer sua relutante estrela. “Ninguém melhor do que ele driblou os adversários e o subdesenvolvimento”, acredita Pontes. “É, pensando bem”, diz Pelé, “toda minha escalada, o sucesso de um garoto pobre, sem estudo, pode ter sido um drible no destino, um grande drible.” “Há seis meses recusei viver um gigolô envolvido no tráfico de drogas no cinema americano”, diz ele, ao contar por que achou um bom motivo para encarnar o marginal Pedro Mico: “Ele representa a convivência entre a polícia e os bandidos, coisa que acontece no Brasil e tem mesmo de ser denunciada”.
Quem diria que este é o velho Pelé que todos nós conhecemos. Ele já surpreendera o país dois dias antes de começar as filmagens, no dia 13 de março, ao erguer na televisão a réplica da Taça Jules Rimet numa saudação à campanha por eleições diretas já. “Chegou o Pelé 1984”, anuncia. Aos 43 anos, admite estar em processo de “grande mudança”, amadurecendo suas concepções de vida, sua visão de mundo. Playboy, homem de negócios, ator. Admirado como o maior jogador de futebol do mundo, mas muitas vezes criticado das mais variadas formas que podem disfarçar a inveja — ou porque se recusa a maiores elaborações quanto a suas posições políticas, como se fosse obrigado a ser um filósofo, ou porque cuida com extremo zelo de seus negócios, como se tivesse de assumir a culpa pela pobreza nacional, a verdade é que Pelé se revela cada vez mais vitorioso em tudo o que faz.
Publicado em PLACAR de junho de 2020, edição 1467