Pelé, 80 anos: Longa vida ao rei
A trajetória de uma das personalidades mais universalmente conhecidas de nosso tempo — alguém tão grande que foi obrigado a se dividir em dois
Em 1968, o ano que nunca terminou, o artista plástico americano Andy Warhol (1928-1987) cunhou uma de suas mais conhecidas frases, estampada no catálogo de uma exposição em Estocolmo: “No futuro, todo mundo será famoso por quinze minutos”. Em 1977, dias antes de Pelé pendurar as chuteiras com a camisa verde do Cosmos de Nova York, o gênio da pop art reescreveu a máxima depois de apontar sua inseparável Polaroid Long Shot para o rei, base para uma coleção de serigrafias: “Pelé é um dos poucos craques que contrariam minha tese. Em vez de quinze minutos de fama, terá quinze séculos”. Nesta sexta-feira, 23, Edson Arantes do Nascimento completará 80 anos — pouco ainda diante do túnel de eternidade que tem pela frente. Instado por VEJA a dizer o que o Pelé de 80 anos diria ao Pelé de 17, revelado pelo Santos e descoberto pelo mundo na Copa de 1958, ele imagina o seguinte comentário de um para o outro, em resposta enviada por WhatsApp: “Deus te deu o dom, mas você tem de estar bem preparado fisicamente e com a saúde em dia. Mas atenção ao que realmente importa: o talento foi um presente divino, cuide bem dele”. Numa única frase, Pelé parece resumir oito décadas de vida — sempre reconheceu que fora privilegiado e, a partir desse big bang original, tratou de burilar a vantagem de largada, como se ela não houvesse.
O condão — cujo sinônimo é inteligência — talvez lhe permitisse largar mão, mas nunca foi assim. De 1956 a 1977, em 21 anos de carreira profissional, Pelé sempre foi o primeiro a chegar aos treinos e o último a abandoná-los. No livro Pelé — Os Dez Corações do Rei, o jornalista José Castello conta um episódio revelador dessa obsessão pela qualidade. Num exercício de rotina antes da Copa de 1970, que o consagraria com o tri, os pontas e os laterais cruzavam a bola para que os meias e os atacantes finalizassem. Deles se esperava que matassem a bola no peito e depois chutassem para o gol. Pelé preferia sempre bater de primeira, apesar da insistência do treinador Zagallo e de seus auxiliares. “Ora, se for para matar no peito, fica muito mais fácil, aí não me interessa.” Em depoimento exclusivo à revista PLACAR, Tostão, o companheiro de glória no México, iluminou ainda mais a postura rigorosa do maior de todos, homem de 1,73 metro: “Além do brilho e da magia, o Rei jogava com grande objetividade. Quase não fazia embaixadas, não driblava para os lados, mas sempre em direção ao gol. Sua genialidade e condição física eram naturais, geneticamente determinadas. A natureza lhe deu quase tudo, e ele fez a parte que lhe cabia, jogando com alegria, garra, determinação e humildade”. Em 2012, Marcos Duarte, professor de engenharia biomédica da Universidade Federal do ABC, escrutou o mais plástico dos movimentos de Pelé, a bicicleta, para concluir que ele conseguia estabilizar o corpo na horizontal, um átimo de segundo antes de tocar a bola, de forma mais eficiente do que todos os outros pares. Duarte depois analisaria com recursos de vídeo e algoritmos a famosa cabeçada contra o goleiro inglês Gordon Banks, em 1970 — naquela que é considerada a mãe de todas as defesas. Pelé subiu mais de 70 centímetros — contra “apenas” 50 centímetros do desnorteado zagueiro adversário, Tommy Wright. Desferiu a bola a 45 quilômetros por hora, velocidade de um chute. É a ciência a serviço da beleza no esporte, que pode ainda ser traduzida pela estatística. Foram 1 281 gols em 1 363 jogos, três títulos mundiais pela seleção brasileira, o primeiro aos 17 anos, e dois pelo Santos. E que outro craque seria lembrado também pelas bolas que não entraram, como a da defesa de Banks, concessão destinada apenas aos inalcançáveis? As emissoras de TV e os canais no YouTube não cansam de repetir dois outros lances com cinquenta anos de história: o quase gol contra o goleiro uruguaio Mazurkiewicz, a pelota de um lado, o brasileiro de outro, em cena de lindo balé de corpos; ou então o chute do meio de campo a triscar a trave, em ansiosa parábola, para desespero do checo Viktor e espanto do planeta.
É recorrente a tentativa de comparação de Pelé com dois argentinos: Maradona e, mais recentemente, Messi — e as novas gerações têm todo o direito de ensaiá-las, embora seja inútil, porque Pelé foi único, e a trinca de vitórias em Copas do Mundo sempre fará diferença. E talvez ele nem precisasse ir tão longe, ao assegurar para o Brasil a posse definitiva da Taça Jules Rimet, que depois seria roubada e derretida. Antes mesmo de Pelé ser recebido por reis e rainhas, por papas, por Nelson Mandela e Barack Obama, por Jimmy Carter e Gerald Ford, por Mikhail Gorbachev, Vladimir Putin e Elizabeth II, antes mesmo de parar guerras, porque os oponentes queriam vê-lo em campo, lá atrás, ainda em janeiro de 1959, o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues intuiu o que se construía: “Pelé. Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um gênio indubitável. Digo e repito: gênio. Pelé podia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: como vai, colega?”. Para o autor de Vestido de Noiva, “dir-se ia um rei, não sei se Lear, se Imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis”. Tudo isso, reafirme-se, escrito quando Pelé mal saíra da puberdade.
E, no entanto, como ressalta Tostão, nunca lhe faltou humildade, apesar dos mantos invisíveis, embora fosse preciso inventar um recurso que sempre soou risível, mas talvez fosse mesmo necessário: Edson se referir a Pelé na terceira pessoa do singular, e o que soa arrogante nada mais é do que um recurso de sobrevivência. Um outro modo de expressão é o “nós”, o plural majestático, figura de linguagem adequada a quem tem sangue azul a correr pelas veias. Uma coisa é o Edson — este que atravessa a quarentena no Guarujá com a mulher, a empresária Márcia Cibele Aoki, isolado, sem nem mesmo ter podido acompanhar o velório e enterro do irmão Zoca, que morreu em março. O Edson com dificuldade de locomoção depois da cirurgia nos quadris, feita em 2012, alheio à fisioterapia, forçado a aprender a mexer no smartphone, evidentemente trancado e protegido. Outra coisa é Pelé, o personagem a respeito do qual não há muito mais a dizer. Manter a distância entre as duas figuras foi uma prática também inigualável. “O narcisismo de Pelé nunca chegou aos pés da vaidade do dedo mindinho de Neymar”, diz o antropólogo Roberto DaMatta. “A consciência maior de Pelé foi sua modéstia.”
Consciência que não significou abandonar a compreensão de sua grandeza. Depois de um encontro com Garrincha, no início dos anos 1980, ele chegou a mandar entregar àquele que conhecíamos como “a alegria do povo”, alquebrado e alcoolizado, uma boa quantia de dinheiro, porque atravessava dificuldades. Para um amigo fotógrafo que conhecera nos Estados Unidos logo após se separar da primeira mulher, e que depois mudara para Paris, Pelé criou uma artimanha de generosidade: desembarcava na capital francesa sem avisar ninguém. Ao amigo, sugeria que fizesse fotos exclusivas, vendidas em seguida, num piscar de olhos — só depois de garantir que o companheiro conseguira alguns trocados é que admitia ter chegado à Europa. E então outras lentes o caçavam, mas já sem tanto valor de negociação.
O despojamento, irmão da generosidade, não significa, evidentemente, que tenha tido uma vida sempre reta, campeão em tudo. Pelé foi muito criticado pelo comportamento com uma filha, Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento, que reconheceu tardiamente — e a amigos nunca escondeu a tristeza e o desconforto pela situação, sobretudo depois da morte prematura de Sandra, de câncer, em 2006, aos 42 anos. Apanhou muito quando disse que o povo não sabia votar, nos anos 1970, ainda debaixo da ditadura militar (“O povo brasileiro não está preparado para votar, por falta de prática e de educação; vota mais por amizade”). Não adiantou explicar que não era bem aquilo que havia dito, porque de Pelé se esperava fora de campo o que fazia dentro dele — algo humanamente impossível. Exigia-se que ele fosse como Muhammad Ali, o boxeador que desferia socos com a desenvoltura de quem soltava opiniões políticas agudas, a um só tempo ícone do esporte e da cultura dos anos 1960 e início dos 1970. Mas atenção: o Brasil não é os Estados Unidos, a herança da escravidão daqui é diferente do segregacionismo de lá, Pelé cresceu na ditadura e Ali, na democracia. O 10 dividia o tempo com os companheiros e o pugilista tinha lições com a liderança radical de Malcolm X — e nas bandas de cá o mito da democracia racial se espraiou sorrateiramente. Foi apenas em 2017, em depoimento exclusivo a VEJA, que Pelé tratou pela primeira vez de preconceito, de modo contundente e esclarecedor. “Nunca neguei minha cor de pele, eu gosto de ser negro. Sempre admirei muito meus pais, meus irmãos, toda a minha família, de pessoas negras. Mas Deus me pôs num caminho diferente do da maioria da população brasileira e, desde criança, nunca tive problema com racismo”, disse. “Quando penso no racismo brasileiro, eu me lembro sempre do encontro com o Nelson Mandela, quando eu era ministro de Esportes do governo do Fernando Henrique Cardoso. Foi emocionante. O Mandela, com toda aquela grandeza, toda aquela história, foi objetivo: ‘Pelé, puxa vida… Como pode um país como o Brasil, tão lindo, onde há um único idioma, sem conflitos segregacionistas e insuperáveis como os da África do Sul, ter de conviver com tanta fome, com tanta miséria — e com o racismo?’. Nem soube o que falar, fiquei envergonhado.” Para DaMatta, “Pelé é um sujeito de imensa sensibilidade, mas nada indicava que tivesse ciência do que poderia simbolizar para a sociedade, para além dos gramados”. E vale lembrar, nesse hipotético embate com Muhammad Ali, ainda segundo DaMatta, que o esporte de Pelé é coletivo, e ele nunca esteve inteiramente sozinho como o boxeador. Compará-los só seria possível tendo como régua Andy Warhol: uma das serigrafias de Pelé, daquelas de 1977, foi leiloada em 2019 pelo equivalente a 3,6 milhões de dólares. Uma outra com a figura de Ali, do mesmo período, foi ao martelo por 42 milhões de reais.
A diferença no “índice Warhol” mostra como a marca Pelé foi maltratada enquanto ele jogava. Foi vítima de empresários inescrupulosos, teve maus conselheiros e viveu o apogeu antes da explosão do marketing esportivo e da internet. “Ele nunca foi capitalizado como deveria, dada sua dimensão”, afirma Amir Somoggi, sócio-diretor da Sports Value, um dos grandes especialistas no assunto. “Hoje Pelé teria outro tamanho, com as ferramentas da internet, mas convém considerar também o atávico desprezo de um país que não aprendeu a cultuar seus ídolos.” Estima-se que a marca Pelé valha atualmente algo em torno de 100 milhões de dólares, segundo uma ferramenta confiável e muito utilizada, o Celebrity Net Worth. É muito, até que se passeie por valores de outros atletas. Messi: 400 milhões de dólares. Neymar: 200 milhões de dólares. O.k., os dois estão ainda na ativa. Pegue-se, então, Michael Jordan, o Pelé do basquete, e com o perdão pelo lugar-comum: ele vale 2,2 bilhões de dólares, atrelados especialmente ao contrato vitalício com a Nike. Pelé já esteve ligado à Puma, marca que o atraiu em 1970, e ainda o namora em iniciativas pontuais, como a da celebração dos cinquenta anos do milésimo gol — entretanto já não têm contrato fixo. “Mas Pelé terá sempre valor, por ser o maior de todos os tempos. O legado de sua imagem, envolvido por respeito, é muito forte, e não por acaso será eternizado”, diz Fabio Kadow, diretor de marketing da Puma no Brasil. Em 2009, depois de muito vaivém, os direitos de imagem de Pelé foram vendidos a uma empresa americana, a Sports 10. Não há valores anunciados de rendimentos anuais, mas há organização de viagens (quando se podia viajar), há controle de postagens nas redes sociais, e foram inauguradas lojas na Disney, em Miami e em Nova York com produtos relacionados ao lendário jogador.
Hoje, Pelé tem uma dupla a acompanhá-lo: o americano Joe Fraga, nos EUA, e o brasileiro Pepito Fornos, a voz de permanente bom senso. É caminho para que Pelé tenha, enfim, o tamanho de Pelé, e Edson possa sorrir relembrando a trilha do passado. VEJA quis saber dele quem foi seu grande marcador. “Beckenbauer, forte e leal.” E os gols mais importantes? “O primeiro na Copa de 1958, contra o País de Gales, e o milésimo, porque foi um gol que até hoje ninguém fez e é um recorde.” Ou, como escreveria Carlos Drummond de Andrade, “o difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé; é fazer um gol como Pelé”. Caberia também uma frase do cineasta Pier Paolo Pasolini: “No momento que a bola chega aos pés de Pelé, o futebol se transforma em poesia”. E aqui, pela primeira vez nesta reportagem, usa-se a palavra futebol, a atividade do mito, mas que não basta para contê-lo. Em Nova York, no tempo das discotecas dos anos 1970, Pelé tinha escritório no mesmo prédio onde o ator Robert Redford cuidava de seus negócios. Certa feita, durante um evento empresarial, os dois chegaram juntos ao recinto. Lindo, no auge da fama, Redford ficou impressionado com a quantidade de pessoas que cercaram o brasileiro à cata de um autógrafo e o abandonaram no vazio. O galã se aproximou de Pelé e resumiu a ópera que agora chega aos 80 anos: “Cara, como você é popular!”.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710