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Os riscos da volta do futebol: quem controla a multidão?

O esporte atrai, naturalmente, os torcedores para as ruas. Por isso é obrigatória a rigidez máxima nos protocolos de retomada

“Algumas pessoas acreditam que o futebol é uma questão de vida ou morte. Posso garantir: é muito mais importante que isso.” A frase do treinador escocês Bill Shankly (1913-1981), personagem marcante na história do Liverpool, clube que dirigiu entre 1959 e 1974, pode soar um tanto exagerada, mas talvez ajude a explicar as cenas vistas na última quinta-feira, 25. Milhares de fanáticos torcedores ingleses ignoraram as recomendações estabelecidas pelas autoridades locais para conter a pandemia de coronavírus — que, diga-se, segue com números preocupantes no Reino Unido — e cercaram a estátua de Shankly na entrada do Estádio Anfield para celebrar alucinadamente a conquista do título nacional. A pirotecnia dos fãs, tratada pelos governantes como “decepção”, merece explicação: atual campeão europeu e mundial, o Liverpool amargava um dramático jejum de três décadas sem faturar a cobiçada liga nacional.

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A festa aguardada por uma geração inteira não só atravessou a madrugada como se repetiu no dia seguinte, quando um mar vermelho de gente lotou o Pier Head, um dos cartões-postais locais, com cerveja e abraços em profusão. O próprio clube se viu na obrigação de pedir cautela. “Nossa cidade ainda está em crise de saúde pública e esse comportamento é totalmente inaceitável”, disse o time em um comunicado. “Por favor, comemore, mas de maneira segura e em ambientes privados. Não corra o risco de espalhar essa terrível doença”, completou o carismático treinador alemão Jürgen Klopp, uma versão 2.0 de Bill Shankly.

Cenas semelhantes foram registradas na Itália uma semana antes, quando o Napoli superou a Juventus de Cristiano Ronaldo e conquistou a Copa Itália. O duelo, inflamado pela rivalidade social entre o sul e o norte do país, ocorreu em Roma, sem a presença de torcedores. Mas, depois do apito final, a farra em Nápoles levou às ruas milhares de tifosi, como nos bons tempos em que Diego Maradona era o grande astro do time. Um italiano membro da OMS chiou publicamente, mas foi acusado de “hipocrisia” pelo prefeito local, Luigi de Magistris, que tratou de minimizar a farra futebolística: “Venceu o contágio da felicidade”.

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MANIFESTO - Jogadores do Botafogo protestaram com uma faixa: a pressão econômica os fez entrar em campo. Vitor Silva/Botafogo/Divulgação

Em Liverpool e Nápoles, os números de novas infecções seguem controlados, sem aparente relação com os últimos acontecimentos — o governo inglês anda mais temeroso com o excesso dos banhistas no litoral do país —, mas traumas recentes ligados a eventos esportivos justificam a apreensão. A partida entre Atalanta e Valencia, disputada em 19 de fevereiro, em Milão, foi apelidada por sanitaristas de “bomba biológica”. Dias depois, o vírus se alastrou pela região da Lombardia, uma das mais atingidas em todo o planeta, que soma mais de 16 000 mortes pela Covid-19. Outro jogo, do próprio Liverpool com o Atlético de Madri, em 11 de março, foi o responsável direto por 41 mortes relacionadas ao coronavírus, segundo um estudo local.

Por essas e outras evidências científicas, as principais ligas do mundo só decidiram retomar o futebol quando as curvas de contaminação apresentaram baixa considerável, sob rígidos protocolos e obrigatoriamente com portões fechados. No entanto, o comportamento de manada observado em torno das equipes campeãs sugere o questionamento: de que adianta tirar os torcedores das arquibancadas se não se pode contê-los do lado de fora? “Os hábitos, que na antropologia chamamos de ‘cultura’, comandam nossa vida. Festejar um título com abraços é como comer com garfo e faca. Achar que um europeu teria mais controle sobre isso é uma ilusão bem brasileira, versão do velho ‘complexo de vira-latas’”, diz o antropólogo Roberto DaMatta. “Os europeus são seres humanos como nós, apaixonam-se, têm vida sexual, são violentos… E também projetam no futebol uma exaltação positiva, e celebrar uma vitória é parte de sua identidade.”

No Brasil, onde a contaminação ainda é alta, apesar do ritmo menor de mortes e das discrepâncias entre as regiões, a ciência e o bom senso foram chutados para escanteio — embora não seja possível ignorar a urgência da retomada do futebol para que os clubes possam honrar seus compromissos. O Campeonato Carioca foi reiniciado às pressas, com times em diferentes estágios de treinamento. Pior: a prefeitura do Rio não exclui a possibilidade de liberar a presença de torcedores nos estádios (limitados a um terço da capacidade total) a partir de 10 de julho. “O problema é que os profissionais do futebol não são consultados sobre as decisões, especialmente aqui no Rio”, diz Paulo Autuori, técnico do Botafogo, recentemente suspenso pela federação estadual por fazer críticas às suas decisões. “É um descaso absoluto com jogadores e torcedores. Cogitar portões abertos é inconcebível, dados os números da pandemia.” Mesmo contrariado, o clube alvinegro voltou a campo na semana passada, mas não deixou de protestar. “Protocolo bom é o que respeita vidas”, avisava uma faixa carregada pelos atletas. Assim deve ser: numa atividade que depende da saúde, como o esporte, apesar do anseio de retomada, a cautela é a regra número 1. O resto vem depois.

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Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694

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