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Opinião: as armadilhas de ‘vestir a camisa’ em tempos de ódio

Jogadores, dirigentes e até jornalistas contribuem para o ambiente tóxico no qual a “imparcialidade” só existe quando favorece meu time do coração

Acontece invariavelmente a cada rodada. Um erro, ainda que apenas um “suposto erro”, de arbitragem ganha enorme destaque. Mais ainda se tiver participação do VAR. Torcedores se revoltam nas redes sociais. O cartola que se sente prejudicado denuncia um complô contra seu clube e enumera lances (apenas os que lhe convém, claro). Para tornar a situação ainda mais incendiária, a imprensa dedica horas e horas sobre o tema e o jornalista que “ousa” embarcar em ondas conspiratórias imediatamente se torna o “imparcial” para a torcida que se sentiu prejudicada. Fecha-se assim um ciclo que nada contribui para a solução do problema (se é que realmente existe um), um fenômeno bastante similar ao que ocorre em outras esferas da sociedade, entre elas das discussões políticas.

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A tão evocada parcialidade do juiz parece estar escrita no livro de regras do futebol, algo que acontece em todas as partes do mundo onde uma bola é chutada. No entanto, a tese do “apito amigo” ganhou uma enorme caixa de ressonância com a chegada da era das redes sociais. Hoje, apostando nessa interação, todos os canais esportivos oferecem horas e horas de debate ao vivo – alguns quadros imitam descaradamente formatos oriundos da Terra Santa do entretenimento, os Estados Unidos –, vários deles ao melhor estilo “papo de boteco”. Antes considerada um meio asséptico, os canais de TV a cabo cada vez mais adotam fórmulas antes vistas no “telecatch” do canais abertos. Muito desse movimento decorre da necessidade de atrair a audiência, e vários profissionais ganharam fama nas redes graças à fórmula eficaz de criar polêmica pela polêmica, virando quase um personagem de esquete.

O VAR, ainda que tenha reduzido significativamente o número de erros crassos da arbitragem, parece ter contribuído ainda mais para as velhas teorias conspiratórias que sempre apontam para um resultado “manchado” pela corrupção. Os acertos, quando existem, tornam-se notas de rodapé na crônica esportiva, afinal, não “vendem” tanto quanto uma falha de julgamento. Os lances discutíveis, inevitáveis em um esporte de contato e com regras abertas à interpretação e à subjetividade, são analisados com lupa (e muitas vezes com o fígado). Dirigentes, então, fazem uso da memória seletiva para pressionar os próximos apitadores. É quase uma obrigação, pois o cartola que não reclama, pasmem, é acusado no dia seguinte de omissão por sua própria torcida. Embora hipócrita, é uma tática que funciona: afinal, árbitros de futebol acompanham o noticiário como qualquer ser humano e podem, ainda que sem intenção, ser influenciados pela pressão externa.

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Há, no entanto, uma total inversão de valores quando jornalistas – aqueles diplomados, que passaram pelos bancos universitários e tiveram noções de imparcialidade e de como verificar uma informação – embarcam na onda dos comentaristas ditos “boleiros”, cuja formação foi feita dentro de campo, defendendo (e ganhando popularidade) vestindo uma cor de camisa – aliás, o telhado de vidro de ex-jogadores é frequentemente apedrejado na internet, algo do tipo: “faça o que eu digo, mas não faça o que faço (ou já fiz no passado)”. Apontar erros e cobrar maior qualidade da arbitragem não é só um direito, é um dever de quem é pago para dar sua opinião na TV, rádio ou em meio escrito. Mas apontar o dedo ou insinuar conluios sem prova é um ato irresponsável – dependendo da forma, até criminoso – e só joga gasolina numa fogueira extremamente nociva.

O chamado “clubismo” se tornou tóxico. A brincadeira sadia entre rivais, algo que sempre alimentou a paixão pelo esporte e estreitou laços de amizade, parece ter se transformado em instrumento de ódio, especialmente nas redes sociais. Se o Twitter é uma excelente ferramenta para se informar, por vezes ele acaba se transformando em uma praça de guerra, frequentada por pessoas que não sabem lidar com suas paixões e frustrações.

Até pouco tempo atrás, quem trabalhava com esporte, especialmente narradores e repórteres de campo, evitavam revelar seus times do coração temendo a violência física. Atualmente, são retirados do armário a força graças a registros indiscretos de quando estão vestindo uma camisa, literalmente, em seus momentos de folga ou lazer. A covardia dos ataques das redes sociais são ainda mais danosos, tanto que acabam “obrigados” a vestir a camisa, desta vez no sentido figurado, quando estão no ar. Uma simples opinião é tratada como “clubista” ou “bairrista” por aqueles que dela discordam, enquanto a outra parte o trata como imparcial, honesta, profissional. Há ainda um fenômeno recente e, de certa forma, assustador. Assim como ocorre na política, seguidores viraram fãs ou haters incondicionais de determinados jornalistas. “Jantou cedo” é a expressão do momento, usada quando o glorioso internauta aponta a opinião vencedora do debate da vez.

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Assim como os árbitros, estes profissionais também são seres humanos e podem se deixar levar pelas emoções causadas pelas demonstrações de amor ou ódio, e terem suas opiniões contaminadas. Faz parte, tanto quanto os erros de arbitragem contra ou a favor dos eu time. Em uma época de tamanha intolerância, ao menos o ambiente do futebol poderia voltar a ser mais leve.

 

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