O repouso de Charles Miller, o pai do futebol brasileiro
O canto onde repousam os restos mortais do introdutor da bola no Brasil, filho de um escocês e uma brasileira, é um pouco como ele era — discreto
(Reportagem publicada na seção R.I.P da PLACAR de novembro de 2020)
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Charles William Miller, filho de um escocês que veio ao Brasil para ajudar a administrar a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí e de uma brasileira de família inglesa, retornou de uma viagem de estudos a Southampton, na Inglaterra, no fim de 1894, com peças curiosas na mala. Segundo relato do escritor e historiador John Mills, Miller trouxe na bagagem um livro de regras da Association Foot ball, duas bolas de capotão, um par de chuteiras e uma bomba de ar. Em 14 de abril de 1895, no campo da Várzea do Carmo, em São Paulo, ele organizaria a primeira partida de futebol oficial no Brasil, entre as equipes do The São Paulo Railway e do The GasWorks Team. Resultado: 4 a 2 para o Railway, mas o placar era o que menos importava.
Para Miller, muito além de vitórias ou derrotas, o que lhe dava prazer era a introdução do novo esporte como ferramenta de amizade, de cooperação. Durante a semana ele trabalhava na São Paulo Railway e aos sábados reunia os amigos na sede do São Paulo Athletic Club, no bairro paulistano do Bom Retiro, para ensinar o funcionamento daquela modalidade coletiva, que exigia cooperação, raciocínio, passes e não apenas a individualidade — era um espanto para uma turma acostumada ao aristocrático críquete.
E dos bigodes daquele homem minucioso e entusiasmado — o primeiro jogador brasileiro em um clube profissional da Europa (o Southampton Football Club), artilheiro de dois campeonatos paulistas pelo SPAC (1902 e 1903) — nasceria uma paixão nacional. Miller morreu em 1953, aos 78 anos, a tempo de acompanhar o choro da derrota da seleção para o Uruguai, em 1950, mas antes da era de ouro inaugurada em 1958, na Suécia.
Conseguiu, contudo, saber que daquela sua mala de viagem brotara um modo de vida no Brasil. Foi enterrado a menos de 1 quilômetro da atual sede do SPAC, em São Paulo, no pequeno Cemitério dos Protestantes, desde 1858 instalado na Rua Sergipe, no bairro da Consolação.
Entre os túmulos, há pés de árvores frutíferas. Não muito longe do canto de Miller, há uma lápide com o nome de Marlene Dietrich — não, não é a atriz alemã. É uma homônima, mera curiosidade — mas é proximidade que ajuda a compor o cenário elegante e tranquilo do gramado bem aparado onde repousa o homem que fez das relvas o palco de epopeias, calma e docemente. Ele descobriu o Brasil.