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O remador brasileiro que entrou para a história em Tóquio

Depois de igualar o melhor resultado do single skiff nacional em todos os tempos, Lucas Verthein vai disputar a semifinal da prova nesta quarta, 28

Os heróis-sem-medalha são miseravelmente chutados ao rodapé da história na “cultura” esportiva brasileira, segundo a qual os que ficam fora do pódio são considerados fracassados. Em meio ao oba-oba olímpico dos últimos dias da pátria de chuteiras, de quimono, de prancha, de vela ou de qualquer outra coisa que tenha cheiro de ouro, prata ou bronze, no entanto, está mais do que na hora de valorizar algumas performances impressionantes registradas até aqui por atletas nacionais em Tóquio. No remo, o carioca Lucas Verthein, de 23 anos, atleta do Botafogo, entrou para a galeria de notáveis da modalidade no país ao conseguir se classificar para a semifinal do single skiff masculino, igualando o melhor resultado brasileiro nesta prova em todos os tempos. A exemplo de todo o cronograma do remo, a realização da semifinal com a presença do brasileiro sofreu adiamento devido à aproximação do tufão Nepartak, cujas rajadas podem chegar a 90 quilômetros por hora. Agora, salvo novo imprevisto, Lucas deve entrar na água nesta quarta, 27, às 23h (horário brasileiro) para tentar o feito inédito de uma vaga na decisão. Independentemente do que ocorrer daqui para frente, já levará para a casa o título de estar em meio à seletíssima categoria dos doze melhores remadores dessa prova nos Jogos – e isso vale ouro. O único outro brasileiro até hoje a alcançar esse patamar foi Paulo Cesar Dvorakowski, em Moscou, há mais de quatro décadas.

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O país que já teve o remo entre seus esportes mais populares até as primeiras décadas do século XX, com arquibancadas cheias nas regatas disputadas em cidades como Rio e São Paulo, chegou a enviar 22 atletas para as Olimpíadas de Berlim, em 1936, mas só conseguiu classificar um competidor para os Jogos de 2020. Exército de um homem só, de certa forma, Lucas carrega no evento o remo brasileiro nas costas e não vem fazendo feio até aqui, muito pelo contrário. Na competição do single skiff, uma das provas mais mentalmente desafiadoras e fisicamente excruciantes da modalidade, um competidor de alto nível executa mais de 240 remadas para vencer os 2 000 metros do percurso. Na largada e no sprint final, o ritmo chega a 40 remadas por minuto. Só os bravos superam o nível de fadiga fora do comum. “É como se você tivesse escalado o Everest e todo o seu corpo ficasse atrofiado pelo esforço, sem você conseguir ter condições de respirar e de se movimentar”, compara Paulo Vinicius Alves de Souza, técnico do Botafogo e treinador de Lucas.

Paulo Vinicius Souza, treinador do Botafogo
Paulo Vinicius, treinador de Lucas: “Ele percebeu que pode andar mais rápido” Acervo pessoal/Divulgação

Considerado um atleta ainda jovem em uma modalidade em que os campeões se mostram competitivos mesmo com mais de 30 anos de idade, Lucas disputou a prova de sua vida nas quartas de final, realizada na madrugada do último domingo, 25. Saltou entre os primeiros com uma forte largada e completou os 2 000 metros na Sea Forest Waterway, na Baía de Tóquio, em segundo lugar, à marca de 7min14s, enfrentando vento contrário e leves marolas laterais. No trecho final, o barco do brasileiro chegou a pouco mais de dois segundos do skiff do alemão Oliver Zeidler, atual campeão mundial, e deixou para trás o lituano Mindaugas Griskonis, medalha de prata nos Jogos do Rio de Janeiro no double scull (barco duplo).

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Mindaugas Griskonis
O lituano Griskonis: adversário forte na semifinal Acervo pessoal/Facebook

Mas nada disso é perto do desafio que vem pela frente. Há três vagas em disputa para passar à próxima fase. Os mais fortes competidores da semifinal são o norueguês Kjetil Borch (favorito inclusive a um lugar no pódio na final) e o croata Damir Martin (prata nos Jogos do Rio). Outro páreo duro será o lituano Griskonis, com quem o brasileiro duelou boa parte do percurso das quartas de final na briga pelo segundo lugar, até superá-lo nos metros derradeiros do percurso. “Na semifinal, as primeiras posições devem ficar com o Borch e o Martin, enquanto a terceira e última vaga vai ficar para a briga entre o Lucas, o Griskonis e o canadense Trevor Jones”, analisa Matias Boledi, remador do Clube Pinheiros e comentarista do Bandsports. O treinador Paulo Vinicius passou os últimos dias estudando os vídeos das últimas provas com Lucas e, por motivos estratégicos, prefere não adiantar os ajustes combinados com o pupilo para a semifinal. Segundo o técnico, a ultrapassagem sobre o lituano no último trecho das quartas de final é um bom exemplo de que é possível acelerar mais. “Ele mostrou para ele mesmo que pode ter mais velocidade”, afirma.

No dia 1º de julho de 1894, nascia na praia de Botafogo o CLUB DE REGATAS BOTAFOGO
Botafogo: um dos pioneiros do esporte no país Acervo Botafogo/Facebook

Em 21 participações nos Jogos, alguns remadores brasileiros disputaram finais e chegaram perto do pódio, mas em barcos coletivos, a exemplo do que ocorreu em Los Angeles, 1984, com o quarto lugar na decisão a bordo do Dois Com Masculino (M2+) com a guarnição formada por Valter Hime Soares, Ângelo Rosso Neto e o timoneiro Nilton Alonço. Embora não exista uma hierarquia clara na modalidade que confira a uma determinada prova o título de carro-chefe do esporte, é inegável que as regatas do tipo que Lucas disputa na Baía de Tóquio possuem um sabor especial. “Todas as classes têm sua importância, mas qual remador ou remadora não sonhou em ser o maior no single skiff?”, diz Paulo Vinicius, que não arrisca prognóstico para a semifinal. “Na minha humilde opinião, só se sabe o vencedor de uma regata depois que se cruza a linha de chegada. Lucas irá precisar de muita frieza e consciência técnica, vai ter que remar com sua melhor mecânica e potência.” Não bastasse a duríssima semifinal, caso avance, terá que dar outro salto tremendo de performance para chegar na decisão em condições de disputar uma medalha.

Se tal feito parece hoje muito difícil, há dez anos essa possibilidade era inimaginável para o garoto que passava boa parte do tempo em frente à TV jogando videogame. Em uma maré de agruras financeiras da família, chegou a entregar encomendas de brownies caseiros para ajudar a mãe com as despesas do lar. Apesar das dificuldades pessoais, o investimento esportivo começou a dar resultado. Ele se destacou no mundial júnior de remo disputado na Holanda, em 2016, ficando com a medalha de bronze, façanha inédita entre remadores sul-americanos. Para conquistar a vaga em Tóquio, o estudante de administração de empresas venceu as três provas pré-olímpicas disputadas em março na Lagoa Rodrigo de Freitas, sendo que a última vitória foi por pouco mais de 1 segundo de vantagem em relação ao segundo colocado, o chileno Felipe Cárdenas.

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O atleta que não ficou de fora dos Jogos por um piscar de olhos tentará escalar na semifinal desta quarta um novo degrau no “Everest” da raia da Sea Forest Waterway. Assim, irá elevar seu nome ainda mais na galeria de notáveis e, quem sabe, vencida essa etapa, entrar na disputa entre os maiorais para tentar subir ao topo do esporte que foi definido como a “sinfonia do movimento” pelo lendário designer americano George Yeoman Pocock, responsável pela construção do barco que carregou uma guarnição de Washington com oito atletas e um timoneiro a uma histórica e inesperada vitória contra os alemães nas Olimpíadas de Berlin, em 1936, diante dos olhos atônitos de Adolf Hitler.

Vitórias como essa que desafiam os prognósticos servem de inspiração ao remador brasileiro, que confia em seu poder de continuar surpreendendo os adversários na Baía de Tóquio.

Avante, Lucas!

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