O rei e fim de papo: por que Pelé é o maior de todos os tempos
Messi é tão talentoso que nem parece humano e agora tem a Copa. Maradona é um deus na Argentina. O debate é válido, mas PLACAR crava: o rei é brasileiro
Matéria publicada na edição impressa 1497, de março de 2023
Pelé tinha uma maneira espirituosa de driblar os constantes questionamentos vindos do Rio da Prata sobre quem é o maior jogador de futebol de todos os tempos: “Os argentinos já me compararam com Di Stéfano, depois com Sivori, Maradona e agora Messi. Eles primeiro têm de decidir quem é o melhor entre eles para depois competir comigo”. A morte do Rei, aos 82 anos, em 29 de dezembro do ano passado — se é que Pelé morre —, e a taça erguida por Messi no Catar reviveram a máxima do eterno camisa 10. Na Argentina, a conquista do canhotinho do PSG fez o tango desandar. Diego Armando Maradona, que morreu em 2020, é cultuado como um deus, e será sempre difícil tirá-lo da torre de marfim. Mas o que Messi fez no deserto catari foi coisa grande, e aos 35 anos ele pode, sim, ter deixado Maradona de lado. Tudo somado, há um problema no país vizinho, e que eles tratem de resolvê-lo — ou não.
Nós, no Brasil, estamos resolvidos: é Pelé, e ponto. Um modo de medir a dimensão de sua inigualável grandeza — para além das três Jules Rimet e mais de 1 000 gols, um gênio inspirado e inspirador — é relembrar da comoção mundial em torno de sua passagem, associada ao carinhoso funeral em Santos. Quem, hoje, produziria tantas capas de jornal, como se vê na montagem abaixo? Ninguém, nem mesmo um papa emérito — Bento XVI faleceu em 31 de dezembro, dois dias depois de Pelé, e não foi tão chorado na imprensa.
Convém ressaltar, agora mais do que nunca, depois do feito de Messi na Copa de 2022, que compará-lo a Pelé já não é crime de lesa-pátria, embora seja indevido. Um passeio pelos argumentos a favor e contra o embate do diez e do dez é interessante demais para ser desdenhado — é discórdia que vale a pena ser dissecada, ainda que o resultado, reafirme-se com convicção, dê a vitória a Pelé, e fim de papo. Mas PLACAR sempre gostou de mexer nesse vespeiro. Em maio de 2012, a provocativa reportagem de Gian Oddi e Rodolfo Rodrigues sobre o “duelo dos deuses” avisava: “Pela primeira vez na história surge um jogador cujos feitos tornam possível uma comparação com Pelé”. A revista previa que Messi pudesse alcançar os 762 gols de Pelé aos 37 anos, mesma idade com que o brasileiro pendurou as chuteiras jogando pelo New York Cosmos, dos EUA, clamando por “love, love, love”. Não era uma aposta óbvia, visto que o argentino estava bem distante do Rei tanto nas estatísticas quanto na relevância de suas
marcas. Além disso, o senso comum fazia crer que La Pulga, então com 25 anos, estaria vivendo o esplendor de sua forma, para depois experimentar uma queda natural, como ocorre com todos os jogadores. Não foi o que aconteceu.
Sem nenhuma lesão grave na carreira, o atleta do Barcelona, hoje no PSG, desenvolveu sua faceta mais goleadora e se manteve sempre em altíssimo nível. Messi marcou mais de cinquenta gols em um mesmo ano nove vezes. Ronaldo e Romário, a título de comparação, só alcançaram o feito uma vez. Pelé alcançou meia centena de bolas anuais na rede em sete oportunidades. Em fevereiro, o argentino conquistou sem surpresa alguma o prêmio de melhor do mundo da Fifa pela sétima vez (2009, 2010, 2011, 2012, 2015, 2019 e 2022). Exaltá- -lo é chover no molhado, ainda mais depois de um título mundial incontestável, com gols em todos os jogos do mata-mata, sendo dois na final contra a França, uma das mais eletrizantes de todos os tempos. Messi é puro talento e genialidade, tem a fúria dos grandes matadores e a generosidade e visão dos melhores garçons. Além disso, é uma figura afável. Exatamente como foi Pelé em seu tempo — e é aí é que entram os pontos centrais da discussão.
O brasileiro fez tudo o que fez, mais vezes e antes de todo mundo. O maior pecado de Pelé? Ter tido seus arrebatadores feitos pouco documentados, numa era pré-redes sociais, em que a televisão vivia a infância. Basta dizer que os mais belos de seus gols (o dos três chapéus diante do Juventus na Rua Javari, em 1959, e o gol contra o Fluminense, enfileirando marcadores, que lhe rendeu uma placa no Maracanã em 1961) não têm registros em vídeo. Ainda assim, só com o que foi eternizado nos arquivos, como os gols em Copas, Libertadores e Mundial Interclubes, já seria suficiente para levá-lo aos céus do panteão. Enquanto Messi só chegou ao título mundial na quinta tentativa, para lá de trintão, Pelé o fez de primeira, aos 17 anos, com direito a um gol na final de 1958 afeito a virar moldura em museu (leia na pág. 64).
Como Pelé, não esqueçamos, fez tudo na frente dos outros, é o caso de afirmar que a atuação de Messi no Catar fez lembrar, na verdade, o tri de Pelé no México: um camisa 10 maduro, cerebral, capaz de brilhar intensamente com simples toques de genialidade, sem correr, enxergando o que outros não são capazes. Não por acaso, como confirmação dessa evidência, logo de pois da morte de Pelé circulou um vídeo que mata a charada. O título: “Pelé did it first”. É um magistral compilado de lances de craques do presente com movimentos praticamente idênticos aos feitos pelo Rei décadas antes. Tem elástico, bicicleta, toque de letra, tem de tudo.
Como bem lembrou Neymar, na homenagem póstuma ao grande incentivador, “antes de Pelé o 10 era só um número”. Depois, virou sinônimo de “craque do time”. Eleger o maioral — o Goat (acrônimo para greatest of all time, o maior de todos os tempos) — é escolha de tom subjetivo, de coração, e nesse aspecto Pelé é Pelé, e não há mais nada a dizer. Não basta beber da estatística, ferramenta fundamental, mas que nem sempre estabelece verdades e certezas absolutas. Senão, vejamos. Um erro comum entre os mais jovens é medir o passado com a régua do presente. Recentemente, um canal americano causou alvoroço ao apontar o que seriam os pontos fracos da carreira de outros mitos: Maradona não tem Copa América, Ronaldo Fenômeno não ergueu a Liga dos Campeões, Cristiano Ronaldo não venceu a Copa do Mundo… e Pelé não jogou na Europa, como se isso fosse algum demérito. Ora, bastaria uma simples pesquisa para entender quão tolo e eurocentrista é esse argumento. Nas décadas de 60 e 70 era incomum atletas sul-americanos se transferirem para o estrangeiro. Além disso, o Brasil tinha a liga mais qualificada do planeta, e, com a renda obtida nas excursões para o exterior e contratos publicitários, o Santos era capaz de manter não só Pelé, mas outras estrelas da seleção, como Zito e Pepe. Até mesmo o peso das competições mudou.
Enquanto o PSG de Messi, Neymar e Mbappé briga desesperadamente para vencer sua primeira Liga dos Campeões, o Santos de Pelé tinha como prioridade, acredite se quiser, o Campeonato Paulista, cuja taça foi erguida pelo Rei em dez ocasiões. A Libertadores era relevante, mas, depois de conquistar a América em 1962 e 1963 e cair nas semifinais nos dois anos seguintes, em jogos controversos contra Independiente e Peñarol, o Santos abriu mão de disputar as edições de 1966, 1967 e 1969, mesmo estando classificado. E assim, comparando o incomparável, muita gente séria deu bola fora. Uma das mais gritantes veio de uma coirmã de PLACAR, a revista inglesa FourFourTwo. Em outubro do ano passado, antes mesmo de Messi se consagrar em Doha, uma eleição da publicação colocou Messi, Maradona e Cristiano Ronaldo nos três primeiros postos do elenco de Goat. Pelé ficou apenas em quarto. Os eleitores são profissionais jovens, que provavelmente se encantaram com o Napoli de Maradona nos domingos de calcio na TV ou nem eram nascidos, e que não têm a menor dimensão do que foram aquele Santos de Pelé e a seleção a caminho do tri.
Há hoje poucas almas que vivenciaram e mantêm lembranças de Pelé. Dois deles, porém, surgem como fortíssimos “advogados” do Rei, justamente pelo fato de serem argentinos. César Luis Menotti, técnico alviceleste na conquista da Copa de 1978, e ex-atacante com breve passagem por Santos e Juventus da Mooca, sempre apontou o brasileiro como o maior da história e se manteve firme no adeus ao amigo. “Para mim, foi o maior, único e incomparável. Era como se unisse as qualidades de todos os craques em um só. Além das virtudes técnicas, tinha um físico muito privilegiado. Não houve ninguém como ele”, disse Menotti, de 84 anos, com a voz embargada em entrevista à TV argentina. Outro celebrado treinador talvez tenha ainda mais propriedade ao tratar do assunto: Alfio Basile, de 79 anos, enfrentou Pelé em seus tempos de zagueiro do Racing e dirigiu Maradona e Messi na seleção. “El Negro chutava igualmente bem com a esquerda e com a direita, driblava para os dois lados, parava no ar para matar no peito (…)”, disse Basile, anos atrás. Ele destacou, ainda, que Pelé era guapo y malo, no sentido de ser malandro e até mesmo maldoso quando o jogo pedia.
“Pelé sabia bater, quebrou uns três ou quatro. Não podíamos irritá-lo porque, se ele ficasse bravo, ninguém segurava.” As comparações entre gerações são sempre traiçoeiras. Nos Estados Unidos, está cada vez mais quente o duelo dos fãs de LeBron James e Michael Jordan pelo trono do basquete, ainda que a imensa maioria que tenha assistido a ambos prefira, de longe, o lendário camisa 23 do Chicago Bulls. No futebol, os defensores de Messi e Maradona argumentam que os argentinos brilharam em um contexto mais exigente, com espaços reduzidos, marcadores mais fortes e bem preparados. Por outro lado, contudo, é um equívoco ignorar que Pelé atuou em gramados ruins, com pouca assistência tecnológica e até mesmo a regra jogando contra (na época, não havia cartão amarelo, o que aumentava a incidência de botinadas em campo).
Desde 2012, por uma questão de isonomia, PLACAR tem contabilizado na disputa numérica apenas os chamados gols oficiais de Pelé. De fato, do total de 1 282 gols documentados, há centenas de lances banais, como os tentos marcados pelas Forças Armadas ou pelo Sindicato dos Atletas. Mas atenção, porque, entre outros descartados da lista, há golaços em partidas como Real Madrid 5 x 3 Santos, no Santiago Bernabéu, em 1959, no único embate entre Pelé e Alfredo Di Stéfano, o primeiro dos argentinos a postular o trono de maior da história. Naquela excursão, o Peixe ainda goleou a Inter de Milão por 7 a 1 e o Barcelona do brasileiro Evaristo de Macedo por 5 a 1. Eram amistosos, mas valiam muito. Ou seja: estatística é bom, mas pode ser um mal. Serve como régua, mas não pode ser o único instrumento de aferição para um esporte tão bonito quanto o futebol.
Resumo da ópera: Maradona foi brilhante e não pode ser esquecido. Messi é tão genial que nem parece humano. Mas Pelé só tem um e será eterno.
ARTILHARIA PESADA
Os três maiores gênios da bola aliaram criatividade com um impressionante faro de gol. Messi, aliás, superou todas as expectativas. Na comparação inaugural de 2012, PLACAR acreditava que o argentino sofreria uma queda natural ao se aproximar dos 30 anos, mas não foi o que aconteceu. O craque de Rosário se manteve imparável, sem lesões graves nem más fases, e ultrapassou Pelé em gols nos chamados jogos oficiais ainda em 2021. Vale ressaltar, porém, que a conta — utilizada por ser a melhor forma de padronização — exclui jogos históricos da carreira do Rei, como o das excursões internacionais do Santos. Ao todo, contando amistosos e jogos festivos, o brasileiro somou 1 283 bolas na rede em 1 372 jogos (média de 0,93 por jogo, acima do 0,79 de Messi na conta oficial)