O futebol feminino briga para ter as mesmas condições do masculino
A Federação de Futebol dos Estados Unidos anunciou condições semelhantes para as seleções. É um louvável primeiro passo para a igualdade
Seria natural, e desejado, que a luta das mulheres por igualdade de tratamento em relação aos homens entrasse nos gramados — e, nesse caminho, 2020 foi um bom ano, apesar dos estádios vazios em decorrência da pandemia. No início de dezembro, a Federação de Futebol dos Estados Unidos (USSF, na sigla em inglês) chegou a um acordo inédito com as jogadoras: a partir de agora, elas terão condições de trabalho como as deles. Voarão em aeronaves fretadas, ficarão hospedadas em hotéis de qualidade e terão apoio profissional como acontece no mundo masculino. É decisão louvável, que precisa ser celebrada — convém lembrar, contudo, que o jogo mal começou, e muita água há de rolar. É como se a partida feminina estivesse nos minutos iniciais do primeiro tempo. Faltam ainda quase noventa minutos do tempo regulamentar e mais uma prorrogação de meia hora para elas chegarem aonde deveriam realmente estar.
O início da virada foi resultado de uma briga que começou logo antes da mais recente Copa do Mundo, em 2019, vencida pela quarta vez pelas americanas. A reação foi liderada pelas craques Carli Lloyd, a melhor do mundo em 2015 e 2016, e Megan Rapinoe, a vencedora da Bola de Ouro da Fifa no ano passado. Elas partiram para o confronto exibindo valores gritantes: pelo título da Copa do Mundo de 2015, a seleção feminina recebeu apenas 1,7 milhão de dólares como premiação — enquanto a equipe masculina, que nem sequer se classificou para o Mundial de 2018, ficou com 5,4 milhões de dólares depois da eliminação nas oitavas de final em 2014, no Brasil. E mais: a atacante dinamarquesa Pernille Harder, de 27 anos, foi vendida pelo Wolfsburg da Alemanha ao Chelsea da Inglaterra por tímidos 300 000 euros — em 1967, portanto há mais de cinquenta anos, foi esse o valor da transação do também dinamarquês Harald Nielsen do Bologna para a Internazionale de Milão, recorde daquele tempo. Resumo da vergonhosa e atual ópera: foram necessárias cinco décadas para que as atletas com a bola nos pés alcançassem os atletas. É muito, muito tempo.
A discrepância de pagamento entre gêneros, apesar de acontecer no esporte, é proibida por lei nos Estados Unidos desde a decretação do Ato de Igualdade de Salários, de 1963, pelo qual americanos e americanas deveriam receber a mesmíssima remuneração para atividades iguais. Molly Levison, porta-voz das jogadoras da seleção feminina dos EUA, disse que elas estão comprometidas a alcançar salários iguais para a próxima geração. “Agora pretendemos entrar com recursos nos tribunais, para que se leve em conta o fato de que as atletas recebem salários menores que os dos homens”, disse.
O fosso nos Estados Unidos soa como brincadeira se comparado ao do Brasil, com situações tristemente insólitas, de amadorismo inaceitável. Em outubro, a equipe do Taboão da Serra perdeu por 29 a 0 para o São Paulo, no Campeonato Paulista. A capitã do time derrotado, Nini Baciega, fez um relato forte sobre a realidade do cotidiano dela e das companheiras. “Não temos salário, condução, nem roupa de treino. Não temos apoio nenhum do clube. Usamos o nome do clube para participar do torneio, porque é uma oportunidade para as meninas mais novas”, desabafou. Ressalve-se, contudo, a bem da verdade, que já foi pior. Há três meses, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) contratou a ex-zagueira da seleção e então coordenadora da Federação Paulista de Futebol, Aline Pellegrino, para coordenar as competições femininas. Duda Luizelli, diretora do Internacional, também foi levada para acompanhar as equipes da seleção. No dia da apresentação das duas profissionais, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, anunciou que os pagamentos de diárias e premiações passaria a ser igual entre homens e mulheres, ecoando a movimentação americana. É promessa que precisa acontecer. O Corinthians, que no domingo 6 ganhou de 4 a 2 do Avaí/Kindermann e levou o título do Brasileirão, paga rendimentos em média trinta vezes menores do que os entregues ao esquadrão dos homens, que, venhamos e convenhamos, anda bem mal das pernas. No caso do Corinthians, não há dúvida: as mulheres estão jogando muito mais bola.
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717