O adeus de Formiga da seleção: ‘Sensação de dever cumprido’
Aos 43 anos, com 7 Copas e 7 Olimpíadas no currículo, lenda da modalidade fará sua despedida do Brasil no Torneio Internacional de Manaus
A Arena da Amazônia, em Manaus, será o palco do fim de uma das histórias mais bonitas da história do futebol feminino. Aos 43 anos, a baiana Miraildes Maciel Mota, a Formiga, se despedirá da seleção brasileira após mais de duas décadas de serviços prestados, no Torneio Internacional de Futebol Feminino, que começa nesta quinta-feira, 25. O Brasil encara a Índia, a partir das 22h (de Brasília, 21h de Manaus), com transmissão do SporTV.
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As quatro equipes participantes (Brasil, Chile, Índia e Venezuela) enfrentam-se em turno único. Quem somar mais pontos (vitória vale três e empate um), será declarado campeão. Favorita, a seleção brasileira joga nos dias 25, contra a Índia, dia 28 diante da Venezuela, e em 1º de dezembro contra as chilenas.
Formiga iniciou sua carreira aos 15 anos justamente por seu clube atual, o São Paulo, com quem tem contrato até o fim do ano que vem. O apelido, uma referência ao espírito guerreiro e coletivo das formigas, veio ainda na adolescência, em Salvador (BA), onde nasceu. Logo vieram as convocações para a seleção, pela qual Formiga bateu marcas históricas: é a única pessoa, entre homens e mulheres, a ter disputado sete Copas do Mundo e sete Olimpíadas no futebol.
Os títulos não vieram (foi vice no Mundial de em 2007 e terceira em 1999, e prata olímpica nos Jogos de Atenas-2004 e Pequim-2008), mas foi protagonista do desenvolvimento da modalidade no país.
“Sem dúvidas, me sinto realizada. A sensação é de que fiz de tudo que estava ao meu alcance para ajudar a modalidade no país, mesmo nos momentos mais difíceis, em que o preconceito atrapalhava a nossa evolução. A sensação é de dever cumprido, totalmente, de que não deixei a desejar, especialmente vendo hoje essas meninas terem toda essa estrutura aqui dentro. Saio realizada e com esperança de que dias melhores sempre virão”, disse, em entrevista coletiva na véspera do jogo.
Ela se disse ansiosa para o adeus e especialmente contente com a presença da mãe, dona Celeste, a grande incentivadora, na Arena Amazônia. “Já comecei a me emocionar bastante desde hoje. Espero que todos possam se emocionar tanto quanto eu. Principalmente minha mãe, que vai estar presente também, então vai ser uma alegria imensa e é maravilhoso poder compartilhar esse momento com vocês, especialmente aqui em Manaus, que é um lugar que realmente abraça o futebol feminino.”
Formiga lamentou a ausência de Cristiane e Marta, suas grandes parceiras, nesta convocação. “Espero que outras possam ter esse privilégio também de serem homenageadas também, como a Cristiane, que ela possa ter uma despedida merecida pelo tanto que fez e continua fazendo. Sentirei falta das duas, porque fazem parte da minha história, são duas guerreiras que vêm ao meu lado lutando por melhorias e, nesta reta final, não faz sentido elas não estarem presentes. Espero que num futuro próximo a gente esteja vestindo a mesma camisa em prol da modalidade”.
Pouco antes de sua despedida olímpica em Tóquio, Formiga estampou a capa da PLACAR de julho e concedeu entrevista exclusiva ao repórter Alexandre Senechal. No papo, a eterna camisa 8 relembrou sua trajetória, falou sobre preconceito e homossexualidade no futebol feminino e de seus objetivos para quando encerrar a carreira.
Formiga ainda pretende seguir em ação pelo São Paulo até 2023, para depois realizar cursos e quem sabe voltar à seleção brasileira nos bastidores. Confira, abaixo, alguns destaques da entrevista concedida à PLACAR de julho:
Como você se preparou para se tornar profissional? Na rua, como muitas outras. Jogando, deixando o tampão do dedo no asfalto. Essa foi minha base. Jogar com os meninos. Tinha muitas amigas, mas os pais não as deixavam jogar. E muitas também ficavam preocupadas com o preconceito, que era terrível.
Sofreu preconceito? Muito. Eu nem me importava com o que falavam, que eu era “mulher-macho”, que aquilo não era para mim. O mais difícil era com os meus irmãos. Eles só me deixavam jogar se estivessem presentes. Quando me encontravam jogando, eu apanhava horrores. Ainda assim, sabia que o esporte poderia me levar para um lugar bacana. Isso só me fortaleceu e me fez acreditar que teria uma chance de me tornar a pessoa que sou hoje. Para os meus vizinhos, eu não estava nem aí. Jogava bola e ainda chutava na grade deles para ficarem putos mesmo.
No futebol feminino profissional parece haver mais respeito. É isso mesmo? Sim. A gente já enfrentou muito preconceito e resistiu. Recentemente, eu e minha mulher, Erica, recebemos uma mensagem de um cara falando que ela estava errada por ser lésbica e casada com uma jogadora de futebol negra. Quanta gente ignorante! O futebol feminino está quebrando isso. Sei que muitas pessoas ainda têm medo de ser atacadas na rua. Mas a gente não pode continuar se escondendo. É lamentável estar no século XXI e ainda precisar pedir respeito.
Qual a importância de craques como você tomarem posição? Podemos influenciar as pessoas a se conscientizarem e respeitarem a orientação sexual dos outros. Às vezes a pessoa já nasce homossexual, como no meu caso. Às vezes a pessoa não tem informação e não sabe como lidar com isso. Influenciar para o lado certo é vital.
Quanto o futebol feminino perdeu por causa da falta de incentivo ao longo dos anos? É impossível calcular. As pessoas literalmente esqueceram do futebol feminino. Você percebe quantos anos investimos para criar uma base?
Como está nossa estrutura em relação à de outros países? De 0 a 10, dou 5. Hoje tem o Brasileiro, mas acabou a Copa do Brasil. Por quê? Só com mais jogos e torneios o esporte vai evoluir.
O que mudou desde o início de sua carreira? Há mais campeonatos de base, o que me deixa muito feliz. Como o preconceito contra as meninas fez com que a gente perdesse tantos talentos no futebol feminino. Uma vez a seleção foi convidada a fazer um amistoso contra a Holanda, com o time sub-20. Não tínhamos atletas suficientes. Fizemos um catado, perguntando para as pessoas se conheciam meninas dessa idade para montar um time. Foi vergonhoso passar por uma situação dessa. Hoje a gente tem essa base.
Pretende jogar até quando? Meu contrato com o São Paulo vai até o fim do ano que vem. Quero continuar em atividade até o fim de 2023. Se surgir uma chance de renovação, não vou dizer não.
Em 2023 tem Copa do Mundo… Eu sei, mas a ideia é ficar só no São Paulo. Na seleção, quem sabe eu possa ajudar as meninas de alguma forma, mas não jogando.
Nem se o São Paulo estiver bem e você voando? Não, já tá bom. Vou ficar só nos bastidores. Pretendo fazer os cursos da CBF, tanto de gestão quanto de treinadora. Só não posso ficar longe do futebol. Vou ver onde me encaixo melhor.
Qual é o segredo da longevidade? Eu brinco que é a água de coco, mas a genética e os cuidados que tomo fazem mais diferença. Temos de cuidar do corpo sempre.