Nós somos jovens
A inclusão de modalidades radicais, como surfe, skate e escalada, na próxima edição da Olimpíada, em 2020, é a estratégia do COI para renovar a audiência
O paulista Gabriel Medina repetiu no mês passado um ritual consagrado entre os praticantes do surfe: ao sair da água com o bicampeonato mundial garantido, o brasileiro permitiu-se ser carregado nos ombros por uma turba de descamisados que assistiam, eufóricos, a seu desempenho espetacular na Praia de Pipeline, no Havaí. A cena, emblemática por representar o ambiente descontraído das competições do esporte disputado sobre as ondas, pode ser substituída muito em breve por um ritual bem mais sisudo, porém não menos simbólico. Em agosto de 2020, haverá a possibilidade de Medina aparecer vestindo calça e agasalho com as cores do Brasil e isolado no alto do pódio, entoando os versos do Hino Nacional. E, em vez do tradicional colar de flores havaiano, poderemos ver pendurado em seu peito outro adereço: uma medalha olímpica.
Formal ou informal, com ou sem brasileiro, a cerimônia de premiação da primeira competição de surfe da história dos Jogos será, certamente, um dos eventos mais curtidos e compartilhados da próxima edição, que ocorrerá em Tóquio daqui a um ano e meio — os surfistas competirão na Praia de Shidashita, a 100 quilômetros da capital japonesa. O objetivo declarado é angariar o maior número de likes possível — isso mesmo, likes. “Com as muitas opções de entretenimento que os jovens têm hoje em dia, não podemos mais esperar que eles venham automaticamente em nossa direção. Nós temos de ir até eles”, disse o presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), o alemão Thomas Bach, ao confirmar a inclusão de cinco esportes no programa dos Jogos de 2020 (a cada quatro anos há sempre o acréscimo de novas modalidades). Além do surfe, foram adicionados o skate, a escalada esportiva, o caratê e o beisebol (softbol, na competição feminina). A escolha das modernidades foi feita a quatro mãos pelo COI com os organizadores do país-sede, o que justifica a seleção do caratê, do beisebol e do softbol, muito populares no Japão. Já o surfe, o skate e a escalada fazem parte do plano de renovação da audiência tão almejada pelos dirigentes do esporte olímpico. O espectador de televisão dos Jogos de Sydney, em 2000, tinha, em média, 45 anos. No Rio de Janeiro, em 2016, a audiência foi quinquagenária (53 anos, em média). A esperança é que a incorporação dos esportes radicais, com evidente apelo entre a moçada, reverta a curva inexorável de envelhecimento. Tanto que para a Olimpíada de Paris, em 2024, o Comitê Olímpico estuda a inclusão de uma novidade ainda mais imberbe: os chamados e-sports, os campeonatos de jogos eletrônicos que movimentam cifras milionárias e possuem um séquito leal, composto em grande maioria de meninos e meninas na faixa abaixo dos 20 anos. Resta responder, ainda, à pergunta que não quer calar: e-sport é esporte?
Não é a primeira vez que o Comitê Olímpico faz mudanças em seu programa com a ideia de rejuvenescer seu principal evento. Basta lembrar a inclusão de versões mais modernas de modalidades bem conhecidas: caso do vôlei de praia e do ciclismo BMX. Embora esteja rodeada de pompa, a chancela olímpica ao surfe, ao skate e à escalada tende a beneficiar muito mais a imagem dos organizadores da Olimpíada do que seus praticantes. No surfe e no skate (bem menos na escalada), há um calendário de competições consolidado e os atletas exibem uma profusão de patrocinadores (haja vista a quantidade de empresas que estampam logomarcas na prancha de Gabriel Medina). Aliás, este é um ponto sensível: nos Jogos de Tóquio, surfistas e skatistas não poderão exibir seus patrocinadores — só será permitida a “propaganda” do fabricante dos uniformes e equipamentos, como manda o COI. E, no jogo de adaptações, muita água ainda vai rolar.
“Não devemos mudar nossa essência nem virar robôs porque estaremos dentro das Olimpíadas”, garante o brasileiro Bob Burnquist, atual presidente da Confederação Brasileira de Skate (CBSk) e lenda viva da modalidade. “Vamos infectar os Jogos com o espírito do skate, mostrando alma, coração e garra.” O COI se fia na experiência bem-sucedida da incorporação dos milionários jogadores da NBA na competição olímpica de basquete — em 1992, o Dream Team, comandado por Michael Jordan, Magic Johnson e companhia, foi a grande atração dos Jogos de Barcelona e proporcionou um salto de qualidade do espetáculo. Desde então, a presença dos melhores (e mais ricos) atletas de cada esporte passou a ser regra.
Num primeiro momento, a percepção generalizada entre os skatistas era que a sisudez do movimento olímpico atingiria em cheio os fundamentos rebeldes do esporte. A mera escolha da entidade que representaria os atletas foi ponto de discussões acaloradas. Inicialmente, o Comitê Olímpico do Brasil (COB) reconheceu a Confederação Brasileira de Hóquei e Patins (CBHP) como a responsável por organizar a classificação dos skatistas para Tóquio. Houve reação dos principais expoentes da modalidade. A situação só foi contornada graças ao envolvimento de figuras mundialmente relevantes como o próprio Burnquist e Sandro Dias, hexacampeão mundial. Em 2017, o COB reviu sua posição e apontou a CBSk, mais arejada, como a responsável pela administração do skate olímpico no país.
Mas serão inevitáveis alguns problemas em outros ares, digamos. No início do ano, o skatista Pedro Barros, um dos destaques da seleção brasileira, testou positivo no exame antidoping para um dos princípios ativos da maconha. O catarinense de 23 anos conquistou o campeonato mundial da modalidade olímpica park em novembro e só pôde competir porque a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem optou por não aplicar uma punição preventiva. De acordo com a CBSk, ele não será suspenso pelo flagrante, pois o exame aconteceu antes de a confederação ter tempo de explicar as regras aos atletas. O presidente Bob Burnquist conta que a partir desse caso houve conversas com o COI para conscientizar e educar os skatistas. Pedro Barros foi testado novamente durante o torneio mundial, e nas amostras coletadas ao longo da competição não foi detectada nenhuma substância ilegal. “Estamos sabendo das regras e decididos a mudar nosso estilo de vida para conseguir fazer parte desse momento”, disse o skatista após receber o Prêmio Brasil Olímpico do COB como melhor atleta da modalidade em 2018.
É difícil afirmar, hoje, que novas modalidades se perpetuarão nas Olimpíadas — ou as que sumirão. Podem vir a permanecer, como aconteceu com o vôlei de praia, ou a desaparecer, como se deu com a prova de “escalada de corda”. Desde 1896, na primeira Olimpíada da era moderna, até a edição de 1932, o torneio premiava os bravos atletas que conseguiam chegar ao topo de uma torre de 15 metros pendurados em um cabo de fibra natural. A modalidade caiu em esquecimento porque soava estranha demais aos novos humores do século XX — até que, agora, renasceu com uma prima, a escalada esportiva. “Os novos esportes que a cada Olimpíada podem ser acrescentados precisam ter a admiração do público jovem e força nas novas mídias”, diz Rogério Sampaio, diretor-geral do COB. “São pré-requisitos que mantêm a força incomparável das Olimpíadas.”
Com reportagem de Rafael Valesi
SURFE
Como será a competição: nos moldes do circuito mundial, os atletas se enfrentarão em baterias eliminatórias. Vencerá o surfista que tiver a melhor soma de duas ondas — cada onda é avaliada de zero a 10 por cinco juízes, mas a média é calculada apenas com as três notas intermediárias (a maior e a menor nota são tiradas da conta)
Quantos atletas se classificam: vinte homens e vinte mulheres (não há provas mistas)
Critério de qualificação: estarão garantidos os dez melhores atletas do masculino e as oito melhores do feminino na temporada 2019 da World Surf League — respeitando-se
o limite de dois representantes por país. As demais vagas serão escolhidas em competições da Associação Internacional de Surfe, e o país-sede terá direito a pelo menos uma delas
SKATE
Como será a competição: haverá duas modalidades, street (que emula os obstáculos urbanos, como escadas e corrimãos) e park (disputada numa espécie de piscina vazia com rampas e obstáculos). Na street, os atletas se apresentam sete vezes: duas baterias cronometradas e outras cinco num ponto específico da pista para realizar apenas uma manobra. Na park, os atletas têm quatro tentativas de um minuto cada uma. Uma comissão de cinco juízes atribuirá as notas aos movimentos, e quem tiver o maior somatório vencerá
Quantos atletas se classificam: quarenta homens e quarenta mulheres (não há provas mistas)
Critério de qualificação: os três primeiros colocados do campeonato mundial garantirão vaga automaticamente. Outros dezesseis atletas entrarão através do ranking de junho de 2020. Uma vaga será reservada a um representante do país-sede, e não poderá haver mais de três skatistas do mesmo país em cada modalidade
ESCALADA
Como será a competição: haverá uma disputa combinada de três modalidades — velocidade (subir um paredão vertical de 15 metros), boulder (escalar um paredão menor, de apenas 4 metros, mas sem cordas) e lead (um percurso com inclinações e desnivelamento de agarras, imitando uma montanha real). O desempenho nas três provas será somado e apenas os seis melhores no cômputo geral irão à final
Quantos atletas se classificam: vinte homens e vinte mulheres (não há provas mistas)
Critério de qualificação: o campeonato mundial vai conferir sete vagas automáticas. Outras seis serão decididas numa seletiva específica para os Jogos de Tóquio. Também irão à Olimpíada os cinco campeões continentais, um representante do país-sede e um escalador convidado pela confederação. Haverá no máximo dois atletas da mesma nacionalidade
Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615