Há 15 anos: o gol na Bombonera que valeu dois títulos mundiais a Iarley
Façanha do Paysandu no mítico estádio do Boca Juniors mudou a vida do atacante, o único brasileiro campeão mundial por clubes de Brasil e Argentina
Quando recebeu passe de Sandro Goiano, cortou dois marcadores argentinos e bateu rasteiro para o fundo das redes de La Bombonera, Pedro Iarley não poderia imaginar o quanto aquele lindo gol mudaria a sua vida. Naquela noite de 24 de abril de 2003, o Paysandu, primeira e única equipe do Norte do Brasil a disputar a Copa Libertadores, surpreendeu o Boca Juniors, que se sagraria campeão do torneio, e venceu por 1 a 0 em jogo válido pelas oitavas de final, em uma noite mágica para o futebol do Pará. Acabaria eliminado com derrota por 4 a 2 em Belém, mas aquela partida em Buenos Aires jamais seria esquecida pela torcida do “Papão da Curuzu” – e mudaria a vida de Iarley para sempre.
Meses depois, o atacante cearense, já com 29 anos e passagens de pouco destaque por oito clubes do Brasil e da Espanha (incluindo o Real Madrid B), desembarcava em Buenos Aires para vestir a camisa azul e amarela do Boca – nada menos que a 10 que foi de Maradona e Riquelme. O que se seguiu depois foram anos de glória e idolatria, em Buenos Aires e Porto Alegre, com títulos históricos por Boca e Inter, tornando-se o único brasileiro com mundiais de clubes conquistados em um time brasileiro e um argentino.
Iarley nasceu no interior do Ceará, na pequena Quixeramobim, de pouco mais de 70.000 habitantes, a cerca de 200 km da capital Fortaleza. Sempre sonhou jogar pelo seu clube do coração, o Ceará, e não só realizou o sonho, como foi muito além, sendo protagonista em grandes conquistas, como em 2006, quando deu o passe para o gol de Adriano Gabiru, na vitória de 1 a 0 sobre o Barcelona de Ronaldinho Gaúcho, dando o título mundial ao Inter de Porto Alegre, onde vive hoje com sua família.
O ex-atacante foi um dos artilheiros do Paysandu na Libertadores de 2003, com três gols e ajudou o time a passar da fase de grupos de forma invicta. Os jogadores do time paraense, além de ter de enfrentar o Boca nas oitavas de final, também tinham de lidar com atrasos de salário. “Apesar da dificuldade financeira, os jogadores eram muito unidos, nos esforçávamos muito dentro de campo”, declarou Iarley.
Perto do final da carreira, que inclui ainda boas passagens por Goiás e Corinthians, Iarley retornou ao Paysandu, em 2013, clube que mudou o rumo da sua vida. Aos 38 anos, no entanto, o retorno a Belém não foi como o esperado e decidiu sair do time no fim da Série B para “ajudar Vandick – ex-companheiro de time e então presidente do Paysandu – a pagar os outros jogadores. No ano seguinte, abandonou o futebol. Quinze anos depois do gol na Bombonera, Iarley, de 44 anos, relembra sua primeira visita ao estádio e repassa momentos marcantes de sua carreira.
O início no Paysandu
“O presidente do Paysandu, Arthur Tourinho, me mandou uma proposta depois de um jogo com o Ceará, em 2002. Aceitei porque queria disputar a Série A, a Libertadores e também pela torcida. Desde o início, a conversa no vestiário era de que 2003 era o ano para entrar na história do clube. Os salários atrasavam, cheguei a ficar sem receber três meses, mas nossa vontade e amor pelo clube eram maiores, isso nunca nos abalou. A relação com o Tourinho era complicada, ele não passava confiança de que iria pagar. Não sei o que aconteceu com o Paysandu quando saí, mas depois de chegar às oitavas da Libertadores, o clube deveria ter ficado numa situação melhor, todos tinham o desejo de ficar, mas a falta de pagamento fez a situação ficar insustentável”.
La Bombonera
“Não foi azar cair contra o Boca logo nas oitavas, e sim uma grande oportunidade. O grupo sabia que se passasse pelo Boca, ia ter muita chance de vencer a Libertadores. Não ficamos nervosos, o Darío Pereyra – técnico do Paysandu em 2003 – nos levou para conhecer a cidade, a cultura local, fomos ao Museu do Boca para nos ambientarmos ao clima da Bombonera. O problema é que na hora do jogo o barulho era dobrado. O clima na Argentina era de que eles já tinham ganhado, ninguém conhecia o Paysandu, nem a torcida nem a imprensa. Fizemos um jogo maravilhoso no primeiro tempo, mas as expulsões de Robson e Vanderson atrapalharam, ficamos encurralados. Se tivéssemos com os onze, poderíamos até ter saído com um resultado melhor do que apenas 1 a 0”.
Dor da eliminação
“O momento mais triste da minha carreira foi após a eliminação no segundo jogo, quando perdemos em casa por 4 a 2. Ver aquela multidão saindo do estádio, mais de 60.000 pessoas que foram ao jogo a pé, de bicicleta, a cavalo, foi devastador. Até hoje fico triste quando lembro”.
Vida na Argentina
“Uma semana após o título do Boca na Libertadores, um empresário argentino, amigo do Carlos Bianchi – técnico do Boca na época – entrou em contato comigo e me disse que o próprio Bianchi queria me contratar. Eu queria ficar no Paysandu, mas o presidente não garantiu pagar os salários. Os primeiros meses na Argentina foram complicados, porque era desconhecido, e a desconfiança só cresceu quando o Bianchi me ofereceu a camisa 10: ‘Você sabe o que a camisa 10 representa para os nossos torcedores, para o nosso povo?’ Eu respondi que sabia e que iria honrar aquela camisa. ‘Boa sorte, a camisa 10 que foi de Maradona é sua’, ele me disse. A relação com os argentinos era muito boa, havia muita brincadeira dentro do vestiário sobre Brasil e Argentina, Pelé ou Maradona. Para não ficar mal, elogiava o Maradona, mas sempre preferi o Pelé. Fui feliz, fiz gol contra o River Plate, fui campeão mundial no Japão contra o Milan. Aí meu contrato encerrou no fim da temporada e recebi uma proposta do México. Estava muito complicado morar na Argentina, havia problemas com segurança, protestos todos os dias, a economia ia mal, muita gente desempregada. Tinha contrato de três anos mas preferi aceitar a proposta do Dorados”.
Retorno ao Paysandu
“Quando voltei ao Paysandu, esperava encontrar o clube em melhores condições, mas estava tudo do mesmo jeito. O clube não tinha se modernizado, estava praticamente quebrado. As dificuldades eram enormes. Quando era jovem, encarava e seguia em frente, mas aos 38 anos não tinha escolha. Era o jogador que ganhava mais no elenco, mas não me sentia bem, pois via companheiros com salários atrasados, em péssimas condições financeiras. Precisava de preparação especial para entrar em forma, alimentação, academia… Conversei com o Vandick e disse para usar o dinheiro para pagar os outros jogadores. Não me arrependo. Pena que nos dois períodos em que estive no clube havia muita dificuldade financeira, Hoje melhorou, o jogador sabe que vai receber. Na minha época, jogava por amor”.
Aposentadoria
Sou realista. Quando se tem um garoto na marcação e você não consegue ganhar uma disputa dele… está na hora de parar. Vivi o futebol ao máximo, com intensidade, sempre me dediquei, chegava mais cedo e saía mais tarde que todos, nunca tive lesão muscular, nunca faltei em treino, quando vi que não dava mais, parei, já perto dos 40 anos, e nem olhei para trás”.
Vida pós-futebol
“Trabalho nas categorias de base do Internacional desde 2016, como coordenador técnico, e agora ajudo em um projeto para aprimorar os recursos técnicos de todos os jogadores da base, junto aos técnicos. Vou fazer o curso da CBF para treinador de alguma categoria e depois pular para o profissional. Sonho em ver meus filhos jogando futebol. O mais novo já está no sub-9 do Inter e o de 13 anos está na escolinha. Se optarem por outro caminho, não vou perder o sono”.