Gol de cinema ou de videogame? A nova câmera que faz sucesso no futebol
O esporte sempre andou de mãos dadas com os avanços tecnológicos. A boa nova é um recurso - lançado no Brasil pela Globo - que põe o foco em primeiro plano
Pã, pã, pã, pã, pã… Os leitores mais jovens de PLACAR talvez tenham de perguntar a seus pais e avós como era bonito ouvir os trinados de saxofones e trompetes de Na Cadência do Samba, no escurinho do cinema, inebriados pelos dribles e gols de Pelé, Garrincha, Zico, Roberto Dinamite, Rivellino e outros gênios da bola. O Canal 100, cinejornal que exibia os melhores lances do futebol, em preto e branco, no início, mas depois também em cores, levava os torcedores para dentro dos gramados — olho no olho, próximo mesmo dos jogadores e das arquibancadas. Representou, entre as décadas de 1950 e 1980, o renascimento do futebol e a criação de uma estética que está na memória coletiva do país. Havia o cinema novo, uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, mas havia também o Canal 100.
Assine #PLACAR a partir de R$ 9,90/mês. Não perca!
Pã, pã, pã, pã, pã… O objetivo era chegar mais cedo às salas de cinema, em busca dos mais recentes filmes de Fellini, Glauber e Spielberg, só para tirar uma casquinha dos grandes jogos da rodada como não se via na televisão. Muita gente escolhia as sessões somente depois de saber qual seria a partida registrada pela turma do futebol. Não há, enfim, como escapar da lembrança do Canal 100 ao vermos as imagens que a Globo mostrou no Brasileirão de 2021 — e que serão exibidas também neste ano.
Os gols de cinema estão de volta, com as imagens focadas em primeiro plano e desfocadas ao fundo. Nas redes sociais, deu-se a comparação adequada: “parece videogame”, escreveu um torcedor rubro-negro ao publicar a imagem de Everton Ribeiro em partida contra o São Paulo. O recurso de borrar o que está lá atrás, ao ressaltar o que vem à frente, tem sido feito pelos cinegrafistas com a câmera Alpha 7 III, da Sony. Com o auxílio de um “gimbal”, estrutura que estabiliza o aparelho, os movimentos parecem sempre suaves, sem solavancos. O profissional leva uma mochila às costas com uma antena que transmite as imagens diretamente para a central da Globo. E dá-se o espetáculo.
Há uma diferença fundamental entre as imagens em close do Canal 100 e sua recente “releitura”: o tamanho das ferramentas. A Alpha 7 é pequena, leve e rapidíssima. A Arri 2c, do Canal 100, cujas primeiras versões foram lançadas durante a II Guerra, era um trambolho enorme e pesado. Mesmo os aparelhos mais compactos, como os usados pela BBC nos anos 1950, exigiam revelação de filmes negativos e, obviamente, tempo para que os lances e gols pudessem ser exibidos. O avanço da tecnologia autoriza saltos de qualidade. Sensores digitais de câmeras eletrônicas permitem capturar com nitidez as imagens próximas à lente e abstrair o que está fora do foco.
“É diferente do que se costuma fazer nas transmissões esportivas normais, quando é explorado o foco total da imagem”, diz Rafael Rusak, professor de Comunicação e Audiovisual da PUC-Rio. “É como se, com esse efeito, o espectador estivesse sentado ali na primeira cadeira do estádio, ao lado do campo”. Em tempo de pandemia, com o compulsório e louvável distanciamento social, é um presente e tanto.
Cabe ressaltar que o recurso é um acessório às tradicionais imagens ao longo da partida, a disputa em si. O recurso é usado apenas em momentos de bola parada, como na formação dos jogadores ao cantar o hino brasileiro, entrevistas, na cobrança de escanteio, lateral e, sobretudo, na vibração dos gols, para oferecer um destaque à parte a esses lances. Trata- se, no jargão do esporte televisionado, do bom uso da pitchside cam, a câmera de lado de campo, em tradução livre para o português. A técnica é usada na NFL, a liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos, e na primeira divisão do Campeonato Espanhol. Em nota divulgada à imprensa, as autoridades da La Liga resumiram o recurso: “As imagens comumente vistas no mundo dos filmes e videogames foram trazidas para melhorar a experiência do usuário”.
a qualidade da nova câmera da Globo para transmissão do futebol é uma coisa surreal
“efeito de cinema” presente tb nas câmeras dos novos iPhones pic.twitter.com/a8J921FIWp
— adson (@adson) November 14, 2021
Melhoram, sem dúvida — em novo passo de um tango decisivo para o esporte, o casamento entre o jogo jogado e o que é visto pela televisão. O futebol, reafirme-se, é entretenimento. Muito mais gente acompanha as partidas diante da televisão do que em estádios com ingressos a preços invariavelmente caros. Na Copa do Mundo, em 2018, na Rússia, cada partida era registrada por 33 câmeras, das quais 25 câmeras regulares, oito câmeras super slow-motion, quatro câmeras ultra slow-motion e duas câmeras exclusivas para o VAR, o controverso árbitro assistente de vídeo, nas linhas de impedimento das duas áreas. Resumo do espetáculo: nada mais escapa à tecnologia.
Percorreu-se, porém, um longo caminho. A década de 1930 inaugurou a era das transmissões esportivas. A Olimpíada de Berlim, em 1936, aquela em que o atleta americano negro Jesse Owens calou o líder nazista Adolf Hitler nas arquibancadas, foi a primeira a ser televisionada. O show de imagens, a princípio, era artigo de luxo. A maior parte dos 1 283 gols de Pelé nem sequer foi filmada — se todos os gaiatos que disseram ter visto, in loco, em 2 de agosto de 1959 o gol que o próprio Rei sempre disse ser o mais bonito, aquele em que ele chapela três defensores do Juventus antes de estufar as redes, a acanhada Rua Javari, na Mooca, precisaria ser maior que o Maracanã.
Os primeiros títulos mundiais do Brasil, em 1958 e 1962, por exemplo, foram comemorados pelo radinho de pilha. Pode parecer loucura, mas o replay, a repetição dos lances, recurso que mais diferencia a experiência de assistir a um jogo no estádio e no sofá, só estreou na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. Já o tri no México, em 1970, foi o primeiro transmitido ao vivo no país e também em cores, mas apenas para alguns pouquíssimos privilegiados brasileiros com os aparelhos de última geração.
A década de 1980 viu emergir novidades tecnológicas que seriam o embrião do VAR. O chamado tirateima, no qual linhas eram traçadas para verificar se uma bola entrou ou se o atacante estava em impedimento, estreou na Copa de 1986. O ex-árbitro Arnaldo Cezar Coelho, que em 1989 inaugurou a função de “comentarista de arbitragem” no país, relembra as inovações. “Cada ano aparecia uma câmera nova, a Globo sempre investiu nisso”, diz. “Mas é como no VAR. A tecnologia nos ajudava a avaliar um lance, mas não era infalível, operada por um ser humano no switcher (sala de cortes de câmeras que é o “coração de uma transmissão”), que poderia errar o momento de parar a imagem e traçar uma linha.” Os árbitros e comentaristas podem até ser os mais beneficiados pelos últimos avanços, mas é o espectador que as emissoras precisam fisgar.
Em texto escrito para a revista Piauí, o jornalista Bruno Torturra lembrou das peripécias de seu avô, Francisco Torturra, cinegrafista do Canal 100, mestre da Arri 2c: “Cada chassi tinha apenas quatro minutos de película. Se o cinegrafista começasse a filmar antes da hora, perdia o chute, o drible, o pênalti, o gol. Torturra desenvolveu o talento de filmar apenas o essencial — e intuir a jogada certa e o alarme falso. Conversava com técnicos e jogadores para se antecipar às jogadas ensaiadas. Rente ao chão, com os dois olhos abertos, um no visor, outro no campo, ocupou o fosso do Maracanã como se aquilo fosse a sua terra natal. Foi o primeiro a usar câmera lenta. Walter Carvalho, fotógrafo de Lavoura Arcaica, Madame Satã e Carandiru, entre outros filmes, escreveu que “Torturra posicionava sua câmera no nível da grama e dominava o percurso da bola com a destreza do seu olho e os reflexos dos seus músculos. Como Garrincha, levava a bola até o gol”. E, agora, o futebol não para de se reinventar na televisão, com uma pequena câmera na mão.
(Texto publicado na edição impressa de PLACAR de fevereiro de 2022)