Gilmar: ‘Ninguém está descartado. Nem tem lugar garantido’
Coordenador defende meritocracia nas seleções e revela que estava de malas prontas para a liga americana quando recebeu a “convocação” da CBF
Dia 17 de julho de 2014, Gilmar Rinaldi foi anunciado como coordenador de seleções da CBF, nove dias depois do maior vexame em Copas da equipe brasileira, atropelada pela Alemanha, no Mineirão, por 7 a 1 – e ainda sem curar a ressaca, quatro dias depois, na disputa pelo terceiro lugar, o Brasil perdeu da Holanda por 3 a 0, no Mané Garrincha, uma melancólica despedida do Mundial em casa, mostrando que dentro de campo e moralmente o futebol nacional estava muito doente. Rinaldi, 56 anos, ex-goleiro do Inter, do São Paulo e do Flamengo e campeão mundial em 1994, apresentou, a toque de caixa e a pedido do presidente José Maria Marin e do vice, à época, Marco Polo Del Nero, uma lista com cinco nomes para o lugar de Luis Felipe Scolari: Tite, Muricy Ramalho, Marcelo Oliveira, Abel Braga e Dunga. “Optamos pelo Dunga, que ja tinha experiência com seleção.”
Um ano depois de um dos maiores desafios de sua carreira, Gilmar, ex-empresário de jogadores e também ex-executivo de clube – trabalhou como superintendente de futebol no Flamengo entre 1999 e 2000 -, fala de seu primeiro ano como chefão das seleções e revela que já estava de malas prontas para trabalhar nos Estados Unidos, na Major League Soccer, quando foi “convocado” mais uma vez para a seleção. Sentado à mesa principal de seu confortável escritório em São Paulo, no bairro de Pinheiros, em que uma televisão fixada na parede fica ligada num canal de esportes, e sempre de olho à sua frente num computador de mesa, num iPad e em dois celulares, Gilmar garante que ninguém está descartado na seleção, e cita nomes como Robinho e Kaká, mas também ninguém tem lugar cativo. “Quem estiver melhor será chamado”, diz o ex-goleiro.
Que momentos da seleção você destaca até agora neste um ano de trabalho?
O jogo contra a França, em Paris, é um exemplo do que podemos fazer. Tomamos o gol e já estava preparada uma festa, muitos apostavam numa goleada francesa. Mas o nosso time se manteve firme, cumpriu exatamente o que o Dunga propôs. Ditamos o ritmo e ganhamos de três. Esse é o jogo para ser copiado. E o oposto aconteceu contra o Paraguai, na Copa América, em que não conseguimos impor nosso jogo, de drible e toque de bola. O futebol é resultado e é preciso ter calma. Fizemos coisa boas e há muito ainda a corrigir. O mundo caiu sobre nós, desproporcionalmente. Quando ganhamos onze partidas, não estávamos perfeitos. E também não estamos tão mal porque perdemos a Copa América.
Como foi assumir justo depois do vexame na Copa?
O ponto alto do nosso trabalho foi resgatar a confiança dos jogadores neles mesmos. É traumático sair de um 7 a 1 e encarar Argentina, França. O nosso mote foi fazê-los entender que havia uma segunda chance de provar seu valor. É o caso específico do Dunga. Conseguimos mostrar aos jogadores que eles tinham condições de jogar bem. Tivemos 11 vitórias consecutivas, muito além do esperado, é verdade. Na Copa América, perdemos quatro titulares (Danilo, Luiz Gustavo, Oscar e Neymar). O erro é que não podemos ter “apenas”11 jogadores, temos de ter 22, trinta e poucos se possível. Mas refizemos uma seleção. A Argentina tem uma base há 12 anos, o Chile também. A nossa seleção é nova.
Você está conseguindo cumprir seu plano de quando assumiu?
Quando cheguei, queria entender a seleção, como funcionavam as coisas. Precisava buscar resultado, mas queria montar uma estrutura para o futuro. Procurei entender o futebol de base, e cheguei à conclusão de que precisávamos de um coordenador de base. Eu sempre gostei dos especialistas, de trabalhar com os melhores. E fizemos isso em todas as categorias, baseado na meritocracia. Até para que os outros profissionais saibam que, se fizerem um bom trabalho, poderão chegar à seleção brasileira. É claro que podemos errar, mas vamos diminuir o risco. Queremos pessoas com o currículo para trabalhar conosco. Acho que esse foi o mérito do meu trabalho.
Mas não soa contraditório falar em meritocracia e ter contratado o Dunga, que trabalhou pouco nos últimos quatro anos?
A escolha do Dunga foi baseada em outros aspectos. Tinha cinco nomes e definimos o perfil que queríamos. A situação era caótica depois do 7 a 1 do ponto de vista psicológico e precisávamos de alguém que tivesse um profundo conhecimento de seleção. Alguém verde não iria dar certo. Por isso, pegamos alguém do ramo. A escolha não foi só minha, foi em conjunto. Levei os nomes do Muricy Ramalho, do Marcelo Oliveira, do Tite e do Abel Braga…Mas eles não tinham experiência em seleção. E o Dunga, que foi uma referência nos quatro anos em que trabalhou na seleção. O próprio Ricardo Teixeira disse que o grande erro dele foi demitir o Dunga depois de 2010.
Você vê que é preciso melhorar a formação do treinador?
Essa é uma grande preocupação nossa, não é uma atribuição minha mas já dei minhas opiniões. Hoje há um curso na CBF, muito bom, mas é terceirizado. Perguntei a eles tudo o que poderia fazer para melhorar esse curso. O problema são os clubes e não a seleção. Precisamos chancelar os treinadores, eles têm de ser preparados. A CBF precisa ter um curso, a Conmebol, também, assim como tem na Uefa. Não é feio copiar o que é bom. Vamos adaptar, e não apenas copiar. É preciso haver intercâmbio de conhecimento. Queremos que treinadores estrangeiros deem a visão deles. Temos de valorizar nossos treinadores, para que sejam valorizados no mercado.
Qual o grande problema do futebol brasileiro?
Precisamos descobrir mais jogadores. Antes, a CBF tinha só um observador para todas as categorias, é muito pouco. Hoje, temos cinco profissionais e ainda é pouco. O técnico Jurgen Klopp, quando estava no Borussia Dortmund, nos contou que o Firmino era o jogador mais alemão do time dele, o Hoffenheim. Nós gostamos de compartilhar essas informações. Estamos investindo em tecnologia, temos um banco de dados, e hoje é possível saber como está atuando qualquer jogador brasileiro no mundo. Estamos começando um grande trabalho e quem chegar à CBF daqui uns oito anos vai se beneficiar disso. Queremos preparar os treinadores, os atletas, espalhar nossas ferramentas. Por exemplo, temos um programa que analisa os números de todos os atletas do mundo, caro, sofisticado, mas compramos e distribuimos para todas as equipes das Séries A, B, C e D do Brasil, porque um clube forte torna a seleção forte. A CBF está aberta, queremos ideias de todos que queiram contribuir. Chamamos técnicos, ex-jogadores, marcamos reunião com atletas em atividade. Não podemos achar que sabemos tudo. Agora estamos colocando tudo no papel, fazendo relatórios. Mas quero que me apontem soluções e não os problemas.
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A expulsão de Neymar na Copa América influiu no time?
Não afetou o rendimento. Os jogadores até quiseram mostrar que eram capazes de ganhar sem Neymar, isso é uma lição para o futuro. O Neymar tem sido tratado pela imprensa de forma muito rude, como se fosse um pecado ter um jogador desse nível. Ele é o nosso plus, temos de ter um grande time e, ainda bem, um jogador que é referência no mundo. Assim como Portugal tem o Cristiano Ronaldo e a Argentina tem o Messi, temos um jogador que não fica devendo nada a eles. Como disse o Falcão, não temos de buscar o craque, temos de buscar a excelência, o grande jogador. O gênio nasce naturalmente de tempos em tempos.
E o que aconteceu naquele momento com o Neymar?
Os colombianos o irritaram o tempo todo, é o ônus do craque. Perdemos o jogo, ele ficou irritado com ele mesmo, chutou a bola, empurrão, confusão. O Neymar ficou irritado e queria falar com o juiz. Tentei tirá-lo de lá, pedi que saísse. Mas ele disse que sabia o que estava fazendo, empurrou os seguranças da seleção, e fez besteira. Mas acho que isso também serve de aprendizado. Ele sabe que errou, que passou do ponto.
A faixa de capitão dele pode ser reconsiderada?
Não temos apenas um capitão, temos de ter vários capitães. Apareceram vários líderes, como o Miranda, o Filipe Luis, um jogador de poucas palavras, mas com liderança natural. Queremos vários atletas com voz para tomar decisões. Precisamos que eles se cobrem e precisamos fazer aflorar essas novas lideranças.
Qual a diferença básica entre a seleção de 1994 e esta de 2015?
Aquela seleção apanhava muito e não sentia, estava calejada, era quase sem emoção, não acusava golpe nunca. O foco era sempre no título. Todos carregaram o peso das críticas, o Dunga, o Branco, mas todos sabíamos que a cobrança estava dentro do contexto. A única forma de dar experiência a um atleta é dar as oportunidades de errar, de perder. É assim que se amadurece.
Os casos de corrupção na Fifa têm alguma influência no trabalho?
Isso não respinga no nosso trabalho e temos esse cuidado. Nosso trabalho é campo e bola, não temos nem capacidade para julgar nem avaliar o caso da Fifa, isso não é problema nosso. Tem influência zero no nosso trabalho. O que posso dizer é que a CBF nos dá todas as condições para trabalhar.
Está valendo a pena o trabalho?
É muito sacrificante, mas não estou lá por dinheiro. Eu já nem ia mais ser empresário, estava me programando para morar nos Estados Unidos, com minha família. Não encarei o chamado da CBF como convite e sim como convocação, pois acho que posso fazer algo para melhorar o futebol, e não poderia recusar essa chance. Posso errar, mas não posso me omitir, porque a confiança que me depositaram não me dá esse direito. A liga americana é o grande fenômeno, o futuro. Eu ia morar nos Estados Unidos por isso, fui convidado por duas equipes, visitei, pesquisei. Ia trabalhar para a Major League Soccer, mas ai apareceu a seleção.
Há muita contestação sobre sua formação para o cargo.
Tenho duas Copas do Mundo, uma Olimpíada, um ano e meio como executivo do Flamengo, doze anos como agente… Vivo o futebol desde os 14 anos. Fiz três faculdades: direito, educação física e administração de empresas, mas não concluí por causa da rotina de viagens de jogador. Ter sido agente não é um problema, é uma vantagem. Conheço o mercado, sei como funciona.
E como viu as críticas de Zico sobre seu passado como agente?
Não me preocupo com as opiniões dele. Pode falar o que quiser do meu trabalho, mas não da minha honra. Acho que ele poderia contribuir para a seleção, mas me acusando sem provas não contribui nem para a seleção nem para o futebol. Fiquei surpreso e triste quando soube, porque ele me conhece. Ele foi acusado das mesmas coisas quando trabalhou no Flamengo. Fiquei muito decepcionado.
O que você achou das críticas do Daniel Alves à seleção da Copa?
Ele deu as opiniões dele, acho isso ótimo, jogador tem de se posicionar. Ele é experiente, passou por Copas do Mundo, tem uma cicatriz grande que ninguém consegue tirar. Prefiro o jogador que fala. Suas opiniões são respeitadas, como todas.
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Mas há regras de comportamento na seleção, uma cartilha?
Existem normas, sempre existiram. As coisas tem de ser claras. Um exemplo prático: rede social. Eu disse aos jogadores que a rede social é um problema deles enquanto não envolver a seleção. Eles têm de ter consciência disso. O mesmo vale para política e religião. Cada um pode seguir a linha que quiser, mas não pode usar a seleção para vincular suas escolhas, não é o lugar. Também definimos quem pode frequentar a concentração e o hotel. Definimos o que é família: pai, mãe, irmão e filho. Não é amigo, assessor, gente que vai para tirar foto com os jogadores.
Como encara as pressões da mídia?
Temos de conviver com isso, ter equilíbrio. E o Dunga tem muita experiência nessa área. Ele não muda uma vírgula do que pensa por causa de pressão externa e esse talvez seja outro motivo para ele estar lá. Ninguém manda na seleção.
Qual a importância do chefe de delegação?
Não é nossa parte e não faz diferença. É um cargo institucional, participa de reuniões, recebe dirigentes do outro time. A função dele é reportar o que acontece ao presidente. Eu respeito a hierarquia e reporto tudo ao chefe de delegação. Mas ele não participa de preleção, de palestra, nada.
Qual foi a lição com o caso do corte do Maicon, em Miami?
Eu teria dado a notícia de uma forma diferente, mas não mudaria a atitude. Era nossa primeira viagem, precisávamos dar nosso cartão de visita. Teve uma folga, ele deveria voltar às 8h da noite e voltou às 8h da manhã do dia seguinte. Quando chegou, já estava tudo resolvido, o presidente estava comunicado, outro jogador convocado. Eu o tratei com dignidade, disse que foi por atraso, mas não expus o motivo do atraso. Poderia proteger o grupo ou expor, e prefer proteger o grupo, como vou fazer sempre. Fui muito criticado e poderia ter conduzido melhor a comunicação do que aconteceu, mas sei aprender.
Está confirmado a escolha de apenas duas sedes nas Eliminatórias?
Ninguém da CBF deu essa informação. Isso me criou problemas, trataram um boato como um comunicado oficial. Por enquanto, o Brasil pode escolher quantas sedes quiser. A única recomendação é que a escolhida esteja a 100 quilômetros ou a uma hora e meia de distância de um aeroporto.
Esses novos mercados que têm levado jogadores atrapalham a seleção, certo?
Não temos o que fazer. Como vou falar para um jogador não fechar um contrato? Pior do que o Everton Ribeiro ir para os Emirados Árabes são os meninos de 18 anos que deixam o país e vão para um lugar difícil, não jogam, ficam encostados. Nessa idade têm de jogar, se desenvolver. O Falcão foi para a Itália com 27 anos, o Zico foi com 26, já estavam prontos. Mas isso não existe mais. Eu gostaria que atletas como o Everton Ribeiro e o Ricardo Goulart fossem para mercados mais nobres, mas muitas vezes o lado comercial fala mais alto. O caso do Robinho, que é um atleta que poderia nos ajudar muito, é o mesmo problema, foi para a China.
Kaká e Robinho têm chances de voltar a seleção?
Sim. Da geração dos “cascudos”, são os que sobraram. Não se pode desprezar a experiência e a categoria que têm, além da influência que exercem no time. Uma palavra do Kaká ou do Robinho numa hora de dificuldade tem um grande peso. Temos um buraco numa geração. Todos têm chance, ninguém está descartado, nem o Fred nem o Maicon… E ninguém está garantido.