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Elas exigem respeito

Fortalecidas pelos movimentos de empoderamento feminino, jogadoras de futebol ao redor do mundo se insurgem contra a desigualdade, o preconceito e o assédio

Não se trata de ir às ruas pelo direito ao voto, para queimar sutiãs ou celebrar a pílula anticoncepcional, nem para dizer que elas podem usar azul — não é nada disso, ou talvez seja a soma de todas essas lutas agora associadas à vitrine do esporte. Liderada pelas jogadoras de futebol, uma fascinante revolução feminina está agitando os gramados. Em todo o mundo, as atletas têm promovido protestos e reivindicações, sempre atrelados a pedidos de igualdade com os atletas masculinos, sobretudo em salários e premiações.

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Nos Estados Unidos, um grupo de 28 jogadoras da seleção tricampeã do mundo e vencedora de quatro medalhas de ouro olímpicas entrou na Justiça com uma ação coletiva contra a federação de futebol exigindo paridade de pagamento em relação aos homens. Lideradas pela atacante Carli Lloyd, a melhor do planeta em 2015 e 2016, elas alegam ter recebido pouco mais de 1,7 milhão de dólares pelo troféu da Copa de 2015 — enquanto a equipe masculina ficou com 5,4 milhões de dólares depois da eliminação nas oitavas de final em 2014, no Brasil. A discrepância é proibida por lei nos Estados Unidos, desde a decretação do Ato de Igualdade de Salários, de 1964, pelo qual americanos e americanas devem receber a mesmíssima remuneração se exercerem o mesmo tipo de função. As reclamantes dizem só ter direito ao “bicho”, o clássico bônus por vitórias, se derrotarem equipes entre as dez primeiras do ranking mundial. Para eles, não importa o adversário, venceu, levou — e em determinadas ocasiões embolsam alguma coisa mesmo em caso de derrota. “A federação não tem nenhuma razão legítima ou não discriminatória para tal disparidade de remuneração que não o gênero”, argumenta o grupo no processo. A rebelião de chuteiras ecoa, tardiamente, um sentimento que já há algum tempo abraça outras porções da sociedade. “O esporte hoje surfa a onda de outros movimentos de empoderamento das mulheres em diversos setores”, diz a professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia, Cecília Sardenberg. “As atletas, finalmente, estão se dando conta dessa situação.” O caso das jogadoras americanas pode ser o mais emblemático, mas não é o único. Há outros:

RECORDE - As jogadoras do Barcelona, entre elas a brasileira Andressa Alves (número 10): mais de 60 000 espectadores Gabriel Bouys/

– A atacante argentina Macarena Sánchez intimou judicialmente seu ex-clube, o Uai Urquiza, e a Federação Argentina de Futebol (AFA) para ser reconhecida como jogadora profissional. “Constantemente dizem que somos amadoras, mas essa não é a realidade. Temos as mesmas exigências, não podemos faltar aos treinos, nos cuidamos fora do campo como qualquer atleta de alto rendimento”, afirma a atacante de 27 anos. Macarena foi desligada do clube no começo do ano, segundo alega, em razão de seus questionamentos. Sua coragem resultou, na semana passada, em uma conquista para as demais atletas: a criação de uma liga profissional feminina. Os salários, porém, serão equivalentes àqueles pagos aos jogadores de quarta divisão (sim, da quarta divisão!): cerca de 15 000 pesos (1 400 reais), pouco mais que os 12 500 pesos do salário mínimo da Argentina.

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– Aos 23 anos, a norueguesa Ada Hegerberg decidiu se aposentar da seleção nacional por sentir-se frustrada com o modo como o esporte é tratado em seu país. Ada não disputará a próxima Copa do Mundo de futebol feminino, em junho, na França. É ausência de peso. Ela foi a primeira mulher a receber a Bola de Ouro — prêmio ao melhor jogador do ano oferecido pela revista France Football —, honraria que era exclusiva dos homens desde 1956. A entrega da Bola de Ouro, aliás, foi outro motivo de constrangimento. O mestre de cerimônias da premiação, o DJ Martin Solveig, tentou tornar sua participação mais engraçada ao perguntar se Ada gostaria de “fazer o twerk” para comemorar. Em outras palavras, Solveig pediu a Ada que rebolasse no palco, o que foi prontamente rejeitado pela jogadora. “Não deixarei esse momento incrível ser arruinado por uma piada estúpida”, disse a atleta em uma carta divulgada depois da premiação.

– Na Colômbia, o levante começou nas redes sociais, com as jogadoras Melissa Ortiz e Isabella Echeverri, radicadas nos Estados Unidos. A dupla denunciou em uma série de vídeos a precariedade das condições de trabalho de suas colegas futebolistas. Entre as situações mais graves estão as denúncias de assédio sexual contra o técnico da seleção sub-17, Didier Luna, que foram minimizadas pelos dirigentes da Federação Colombiana de Futebol — um cartola local chegou a definir a modalidade como “antro de lesbianismo”. Antes das postagens, o campeonato nacional estava sob a ameaça de deixar de ser uma competição profissional para se tornar um torneio sub-23. A revolta virtual foi logo apoiada por jogadoras de outros países e por craques colombianos como James Rodríguez e Falcao García. Dado o apoio popular, virou ponto de discussão no Parlamento. No dia 12 de março, o governo garantiu a realização da competição nacional em 2019.

Por força de pressões como a exercida pelas americanas, argentina, norueguesa e colombianas, há indícios de que o jogo do preconceito esteja virando. Houve um momento simbólico no domingo 17, no estádio Wanda Metropolitano, em Madri, que foi palco de um recorde do futebol mundial feminino: nada menos que 60 739 espectadores assistiram das arquibancadas à partida entre as donas da casa, o Atlético de Madrid, e o tradicionalíssimo Barcelona. O jogo, vencido pelo time visitante por 2 a 0, teve a participação da paulistana Andressa Alves, que veste a camisa 10 do clube catalão — a mesma do argentino Lionel Messi na versão masculina do clube. “Um dia inesquecível”, ressaltou Andressa em sua conta no Instagram. A craque brasileira de 26 anos, que neste ano completa três temporadas na Espanha, sabe como poucas da importância da maciça presença de público no estádio, reflexo de um possível aumento de interesse (tudo como sempre: homens torcedores do Atlético fizeram gestos obscenos na direção das jogadoras que comemoravam os gols do Barcelona). Chamada de “Maria-Homem” na infância somente por insistir em jogar futebol com os meninos da rua onde morava, Andressa disse a VEJA dias antes da partida que sua luta diária não é por um “salário de Messi” — cerca de 8 milhões de euros mensais —, mas sim por uma fonte de renda honesta. “Se eu parar de jogar hoje, amanhã tenho de buscar um trabalho para me sustentar. Isso não acontece nem com um jogador de Série B no Brasil.”

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A média de salários entre as jogadoras do futebol europeu gira em torno de 4 000 euros por mês, uma pequeníssima fração do que é pago aos homens. No Brasil, a desigualdade segue toada semelhante. O teto salarial para as jogadoras de Corinthians e Santos, os dois clubes brasileiros mais vitoriosos no futebol feminino nos últimos anos, é de 6 000 reais mensais. O menor salário de um profissional do elenco masculino corintiano é 50 000 reais, oito vezes maior. “É difícil falar em equiparação de salários neste momento”, diz Aline Pellegrino, vice-campeã do mundo com a seleção brasileira e atualmente coordenadora do núcleo feminino da Federação Paulista de Futebol. “Temos de trabalhar antes para que a modalidade seja sustentável, tenha receita, tenha visibilidade.” A situação brasileira só não é pior graças a obrigações impostas por lei. O Profut, programa de renegociação de dívidas de clubes de futebol com a União, prevê que os times tenham um investimento mínimo no futebol feminino. A CBF e a Conmebol agora exigem a manutenção de uma equipe de mulheres para que os times masculinos possam disputar seus campeonatos. Com isso, 52 clubes brasileiros competem nas duas divisões do campeonato nacional feminino.

“Todos pensam que nós, mulheres, devemos ficar contentes com as migalhas que recebemos”, disse certa vez a lendária tenista americana Billie Jean King, ex-número 1 do mundo. “O que eu quero é que todas nós possamos comer o bolo, a cobertura e até a cerejinha no topo.” No tênis, Billie Jean foi um marco na luta por direitos iguais entre homens e mulheres. Foi ela a líder do boicote aos torneios realizados pela associação americana do esporte por não concordar com a disparidade de premiação entre os sexos — atitude que culminou na fundação, na década de 70, da liga profissional feminina, conhecida pela sigla em inglês WTA. Sua história foi recentemente contada no filme Guerra dos Sexos, cujo título foi emprestado do famosíssimo confronto entre Billie Jean e o ex-tenista (e machista assumido) Bobby Riggs, em 1973: o jogo, televisionado para mais de 90 milhões de telespectadores, foi vencido por Billie Jean. Sua audácia em desafiar o status quo abriu caminho para outros avanços: no mesmo ano em que venceu Riggs, ela ajudou a estabelecer um prêmio igualitário para os vencedores do Aberto dos EUA, um dos quatro torneios mais relevantes do mundo. O último Grand Slam a adotar a política de equivalência foi Wimbledon, em 2007. Como se vê, as mudanças vêm de longe — e agora, ao que parece, estão chegando ao ponto de fervura.

Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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