Dez anos depois, Felipão reedita sua empreitada patriótica
Na Eurocopa-2004, técnico conseguiu mobilizar os portugueses em torno da seleção. Agora, quer repetir a estratégia – mas esbarra nas críticas ao Mundial
“A torcida pode não estar confiante na seleção, mas vamos trabalhar para que ela entenda que temos a obrigação de vencer. A ideia é tentar novamente uma união, com envolvimento entre a seleção e a população”, disse Felipão ao reassumir o cargo
Exatos dez anos separam duas das partidas mais importantes da carreira do técnico Luiz Felipe Scolari. Em 12 de junho de 2014, ele comandará a seleção brasileira em sua estreia na Copa do Mundo, contra a Croácia, em São Paulo. Será o décimo aniversário do início da Eurocopa de 2004, também num 12 de junho, quando o gaúcho treinava Portugal (espera-se, porém, um desfecho diferente desta vez: na� ocasião, a seleção da casa foi derrotada pela Grécia, por 2 a 1, no Porto). Mas não é apenas a coincidência de datas que une as duas partidas. Às vésperas da Copa, assim como uma década atrás, Scolari enxerga a partida de abertura como o primeiro passo de uma caminhada cujos rumos serão definidos por circunstâncias muito específicas. Como técnico da seleção anfitriã do torneio, ele sabe bem que o apoio da torcida dentro dos estádios e um contexto favorável fora deles podem ser determinantes para empurrar o time até a reta final da competição. Em Portugal, Felipão conseguiu uma façanha: mesmo sendo estrangeiro (e ainda que sofresse alguma resistência por receber um salário considerado exagerado pelo público local), ele foi capaz de mobilizar o país todo em torno de seu time, regendo uma espécie de campanha patriótica que ajudou a conduzir a seleção lusa à decisão. Desde que reassumiu o cargo no Brasil, ele não esconde o plano de repetir a dose na Copa. Mas será que o gaúcho conseguirá reeditar a estratégia de dez anos atrás num país dividido em torno dos problemas do Mundial, com forte rejeição aos gastos excessivos com o evento e sem nenhum ufanismo explícito a apenas dez dias da partida inicial?
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De acordo com o próprio Felipão, a ideia de convocar o apoio da população não foi dele, mas sim de Gilberto Madaíl, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol. Madaíl, que levou o brasileiro para Portugal e desenvolveu uma relação de amizade com o técnico, disse que Scolari deveria pedir abertamente a adesão das pessoas às manifestações patrióticas. O gaúcho relatou o episódio num evento realizado no ano passado, no Museu Nacional do Desporto, no centro de Lisboa. “Vimos passar uma senhora de idade com a bandeira portuguesa na mão. Virei �para o presidente Madaíl e disse: ‘Veja que exemplo lindo’. Ele respondeu: ‘Faça com que todos sigam isso, �convoque esse povo em torno da bandeira e da seleção’.” E assim foi: Felipão inaugurou, de forma improvisada, a campanha por “uma bandeira em cada janela”. Milhões de portugueses compraram o símbolo nacional. Ao longo do torneio, fachadas de prédios e casas no país todo foram tomadas por bandeiras, numa mobilização coletiva que nunca havia sido vista em Portugal. As cores da bandeira também passaram a enfeitar os carros e as ruas. Acredita-se que essa tenha sido a maior onda patriótica vivida por Portugal desde a instauração da República, em 1910. E o auge dessa febre foi a formação de um cordão humano de quase 10 quilômetros, entre o local da concentração da equipe, no centro de treinamento do Sporting, e o Estádio da Luz, palco da decisão. Só faltou combinar com os gregos: a mesma seleção que havia derrotado os portugueses na estreia voltou a vencer na grande final, transformando a ocasião numa espécie de versão local do Maracanazo brasileiro de 1950.
‘União’ – Ainda que o desfecho tenha sido decepcionante, Felipão saiu do torneio como uma espécie de português honorário, muito elogiado, entre outras coisas, por fazer com que a seleção parecesse simpática e próxima dos torcedores. O público abraçou a equipe de tal maneira que até as pessoas que não se importavam com futebol passaram a acompanhar a seleção. A torcida feminina, por exemplo, foi uma novidade – em Portugal, seguir a seleção era coisa de homem. “Ele era criticado, mas provou ser um grande homem”, sentenciou Eusébio, ídolo máximo do futebol local. “Foi um momento de orgulho que vai marcar o país”, disse o ministro José Luís Arnaut, que era o encarregado dos preparativos para o torneio europeu. Corte para oito anos depois. Assumidamente patriótico e desavergonhadamente ufanista, o técnico reassumia a seleção brasileira, no fim de 2012, num momento de crise, com a imagem da equipe abalada por resultados decepcionantes e uma óbvia falta de identificação com o torcedor. Logo em seu primeiro pronunciamento no retorno ao cargo, Felipão já avisava que uma de suas principais tarefas seria angariar o apoio popular. �”A torcida pode não estar confiante na seleção, mas vamos trabalhar para que ela entenda que temos a obrigação de vencer. Não sei se a equipe vai jogar bonito ou feio, só sei que o time vai jogar de um jeito que vai deixar o torcedor satisfeito. A ideia é tentar novamente uma união, com envolvimento entre a seleção e a população”, dizia ele.
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Desde então, tornaram-se comuns os pedidos para que os brasileiros acolham a seleção no Mundial. Na Copa das Confederações, Felipão deu sorte: o contexto foi inesperadamente favorável à sua campanha, e a onda de protestos nas ruas do país acabou se refletindo positivamente sobre o time, empurrado por torcedores que cantavam o hino nacional a plenos pulmões antes de cada jogo. Desde então, contudo, a situação mudou. As manifestações ligadas à Copa ficaram mais violentas e radicais – e, pior ainda, muito mais negativas. Na semana que antecede a abertura, não há manifestações exacerbadas de orgulho nacional, até porque são poucos os motivos para isso quando se trata da organização da Copa. Felipão voltou a pedir um clima de união nacional em torno do time quando apresentou sua lista de convocados, no mês passado. “Espero que os 23 possam ser muito bem recebidos aqui no Brasil”, pediu. Na apresentação dos jogadores, porém, a seleção já virou alvo de manifestantes organizados (professores em greve cercaram o ônibus do time e atrasaram a saída rumo à Granja Comary, em Teresópolis. O técnico, porém, procura distanciar o time da tempestade de críticas aos problemas do evento. “Fora de campo, a Copa não é assunto nosso”, avisou o gaúcho, que já se esquivou de misturar a seleção às reivindicações dos manifestantes em diversas ocasiões. “�Calcio e politica? Non si discute”, disse no ano passado, em Salvador, diante das perguntas dos jornalistas estrangeiros sobre a legitimidade dos protestos que ocorriam às vésperas do jogo entre Brasil e Itália.
Sem clima – Logo no primeiro dia de trabalho na Granja Comary, o assunto voltou a ser abordado – e a comissão técnica renovou a sua confiança em uma recepção positiva em todas as cidades que receberão a equipe durante a Copa. “A seleção é um patrimônio cultural e esportivo. Ninguém está contra a seleção”, disse o coordenador Carlos Alberto Parreira, outro veteraníssimo do futebol que já teve a experiência de treinar uma seleção num torneio importante em casa (na última Copa, na África do Sul, em 2010) e contar com a euforia dos torcedores locais para fazer seu time deslanchar. Assim como no Brasil, os sul-africanos custaram a mostrar grande empolgação com a realização do Mundial – nas semanas que antecederam a abertura, também faltava clima de Copa em Johannesburgo, a sede da estreia da equipe nacional. Mesmo com resultados fracos (e apesar da relação bem menos íntima com o futebol), os sul-africanos acabaram comprando a ideia, e a seleção se despediu num ambiente bastante positivo. Passados quatro anos, é a vez de o brasileiro viver o torneio de perto. O primeiro teste de popularidade da seleção antes da Copa acontece neste início de semana. A seleção chegou a Goiânia na noite de domingo para disputar um amistoso contra o Panamá, na tarde de terça. E a recepção dos torcedores da cidade – que, assim como todas as outras capitais brasileiras, também lida com greves e protestos – será um termômetro importante para Felipão descobrir se conseguirá ou não repetir o fenômeno português de dez anos atrás.