O novo Eldorado: o que faz da Premier League a liga mais desejada do mundo
Se antes os jogadores nacionais torciam o nariz para o futebol e para a vida na Inglaterra, hoje o Brasil é a nação estrangeira com mais representantes por lá
Matéria publicada na edição 1501 de PLACAR, de julho de 2023
Quem caminha desavisado pela tranquila Stevenage Road, na zona oeste de Londres, pode não perceber que o belo muro de tijolos vermelhos abriga não um colégio ou uma antiga fábrica, mas um dos estádios da liga mais moderna e desejada do planeta. Inaugurado em 1896, às margens do Rio Tâmisa, o Craven Cottage, a casa do Fulham, mantém sua fachada quase inalterada, o que faz dele um dos campos mais charmosos do Reino Unido. Bem perto da estátua de Johnny Haynes, ídolo das décadas de 1950 e 1970, o brasileiro com mais jogos na história da Premier League (286) estaciona seu Bentley e tira fotos com fãs antes de atender a reportagem de PLACAR. Willian Borges, 34 anos, é só sorrisos no retorno à capital do antigo reino de Albion. Ídolo do Chelsea, ele passou pelo Arsenal e, depois de uma volta inglória ao Corinthians de sua infância, jogou a última temporada em outro rival dos Blues. Vive em paz e convicto de que tomou a decisão certa.
“Sou suspeito a falar, mas aqui é especial, é a melhor liga do mundo. Aprendi a amar este país e é aqui que quero viver depois de me aposentar”, diz o atleta nascido em Ribeirão Pires (SP), hoje oficialmente um cidadão britânico. “Tive que estudar bastante e fazer uma prova sobre a história do Reino Unido. Foi difícil, passei na terceira tentativa”, diverte-se o atacante, um dos destaques do Fulham com cinco gols e duas assistências em 27 jogos. O clube da zona oeste de Londres fez sua melhor campanha na elite desde 2012, terminando na 10ª colocação, à frente do vizinho e rival Chelsea, em mais uma prova da competitividade da Premier. Willian tem futuro indefinido no Fulham, mas, se depender de sua vontade, seguirá na Inglaterra.
Num passado nem tão distante, as ligas italiana e espanhola eram o destino sonhado por nove entre dez atletas brasileiros. O primeiro a se aventurar em solo britânico foi o cearense Francisco Ernandi da Silva, o Mirandinha, em 1987, pelo Newcastle, numa era anterior à Premier, criada cinco anos depois. Na virada do milênio, havia apenas quatro representantes na ilha, enquanto estrelas como Rivaldo, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho desfilavam talento entre os espanhóis. Hoje, no entanto, não há dúvida de que o Campeonato Inglês é o novo Eldorado – o pedaço de terra que, segundo a lenda indígena dos tempos de colonização da América, atraiu aventureiros em busca de ouro.
Na última temporada, Willian contou com a companhia de 34 compatriotas (39, contando aqueles que nasceram no Brasil, mas atuam por outras seleções). É mais que qualquer outra nação, exceto a anfitriã Inglaterra. Na Itália e Espanha, o número caiu para 22 brasileiros em cada uma. São marcas que confirmam um fenômeno. As razões são essencialmente econômicas, mas não só. A receita dos clubes da Premier em 2022 foi de 6,4 bilhões de euros, o dobro da segunda colocada, LaLiga, e o valor gasto em transferências foi de 882 milhões de euros, mais que todas as outras quatro maiores concorrentes somadas, segundo levantamento da Delloite. Há outros atrativos para além das cifras. Os atletas ouvidos por PLACAR na Inglaterra destacaram aspectos como o nível de disputa, os “tapetes” e a sensação de maior segurança em tempos de enorme intolerância no esporte.
“A competitividade é incrível, para ganhar de um time de baixo, tem que suar muito. Os estádios estão sempre cheios, a atmosfera é fantástica, os gramados perfeitos, e esse é o sonho de todo jo gador desde criança. Quando você chega, realmente pensa: UAU”, diz Jorginho Frello, meio-campista catarinense que defende o Arsenal e a seleção italiana. Jorginho, de 31 anos, viveu o auge da carreira no Chelsea com a conquista da Champions de 2021, um mês antes de erguer a Euro pela Azzurra. Na época, chegou a concorrer aos prêmios de melhor do mundo (foi terceiro na Bola de Ouro). Um ano depois, foi vilão ao perder um pênalti que tirou a Itália da Copa do Catar e também perdeu espaço nos Blues. Mudou de clube, mas não de cidade, e disse não ter sofrido qualquer tipo de intimidação com a ida ao Arsenal. “Aqui existe um pouco mais de respeito, eu não me sentia mais parte do projeto e me vi livre para buscar o que eu achava melhor”, diz.
“A recepção da torcida e internamente foi fantásti ca.” Torcedor do São Paulo, Jorginho diz ter dei xado de lado o objetivo de encerrar a carreira no país natal. “Vou ser sincero, eu tinha vontade, mas há muita violência, ameaças à família, invasão de CT, agressão em aeroporto, o jogador não poder ir no shopping com a filha se perder um jogo…”, lamenta. “É uma pena, porque o Brasil é um país maravilhoso, que ama o futebol, mas precisa haver um limite.” O discurso de Jorginho bate com a experiência frustrante de Willian, cria do terrão do Corinthians, que retornou ao Timão em 2021, mas deixou o clube alegando não suportar mais as ameaças a ele e seus familiares nas redes sociais. “Muitas vezes a pressão acaba sendo exagerada. Aqui na Inglaterra é diferente, não que não aconteça, pode ser que aconteça algo nas redes, mas se acontecer com certeza o clube e as autoridades vão agir imediatamente.”
Eis a consagração de um projeto. A revolução do football, na realidade, tem raízes dolorosas. A década de 1980 foi marcada pela violência dos hooligans e pelas tragédias de Heysel, em 1985, e Hillsborough, em 1989, que mataram mais de uma centena de torcedores. A Uefa chegou a punir todas as equipes inglesas com cinco anos de exclusão de suas competições. O governo de Margareth Thatcher entrou no jogo e tomou uma série de medidas que coibiram o vandalismo e a insegurança nos estádios – os críticos da Dama de Ferro, no entanto, apontam que o esporte-rei se tornou cada vez mais elitizado, quase inacessível para as classes mais baixas. Um brasileiro participou da transformação da Premier em fenômeno global. Em 1995, só se falava em Juninho na pequena cidade de Middlesbrough. “Nosso pivete no reino dos punks”, estampou PLACAR em sua edição de dezembro daquele ano. Na época, o atacante já exaltava a qualidade do gramado do estádio Riverside, que segundo a reportagem parecia ser “cuidado por ourives”. “A Premier não era tão popular no Brasil, mas já tinha organização e estrutura. O que mudou bastante de lá para cá foi a competividade, até pela questão financeira, hoje os times são verdadeiras seleções”, diz o ídolo do Boro, pelo qual atuou em três passagens, a última em 2004. “Os estrangeiros elevaram o nível e fico feliz de este mercado ter sido aberto para brasileiros.”
O francês Thierry Henry, o holandês Dennis Bergkamp e o português Cristiano Ronaldo são alguns dos forasteiros que marcaram época. A mudança de patamar foi completa com a chegada de técnicos estrangeiros, e não só popstars como José Mourinho, Jürgen Klopp e Pep Guardiola, mas diversos outros que ajudaram a mandar para escanteio a cultura do kick and rush, os chutões que caracterizavam o estilo inglês. Na temporada 2022/2023, entre demitidos e mantidos, a liga teve 20 treinadores estrangeiros. O carioca Douglas Luiz, por exemplo, teve seu jogo potencializado com a chegada do técnico Unai Emery ao Aston Villa. “Ele agregou bastante, pois veio com a mentalidade espanhola, um plano de jogo de querer jogar e estar com a bola, diferente de alguns treinadores que peguei aqui que priorizavam o estilo mais clássico de bolas longas”, conta o meia revelado pelo Vasco da Gama e figura constante nas listas de Tite para a seleção brasileira (acabou ficando fora da Copa do Catar).
Douglas, de 25 anos, vive em uma confortável casa em Birmingham e aproveita o grande espaço do jardim para praticar as batidas na bola – marcou dois gols olímpicos na temporada – e se divertir no “futmesa” personalizado. É solteiro, mas está sempre rodeado. No dia da visita de PLACAR, tinha a companhia de quase uma dezena de amigos e familiares. “O mais complicado é o frio, ainda mais para mim, que sou do Rio, mas depois você se adapta. É necessário ter companhia. Eu moro sozinho, mas nunca estou só, a gente faz um rodízio de parentes e amigos.” Colegas de clube como Philippe Coutinho e o goleiro Emiliano Martinez, campeão mundial pela Argentina, também são presença constante. “O ‘Dibu’ tem aquele personagem dentro de campo, provocador, mas fora é muito gente boa.”
Os atletas ouvidos por PLACAR foram unânimes ao apontar qual seria o time mais difícil de enfrentar. “Odeio jogar contra o City, você fica sem tocar na bola, é terrível”, resume Douglas Luiz. Entre os estádios mais temíveis, Anfield, do Liverpool, e Old Trafford, do United, foram os mais lembrados. Mas nem tudo são flores. “A gastronomia e o clima aqui não ajudam. Comida a gente até arruma, tem vários restaurantes, mas o frio não tem jeito”, brinca Jorginho. A tendência é que cada vez mais brasileiros marquem presença na Liga. Até mesmo o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, facilitou a ida de sul-americanos, pois foi criado um novo sistema de pontuação, menos rígido, para a obtenção de visto de trabalho para estrangeiros. Para a elite da bola, as portas estão abertas.